Alinne de Souza Marques -
"Estupro é um dos crimes mais terríveis da Terra. O problema dos grupos que lidam com o estupro é que eles tentam ensinar às mulheres como se defender. Enquanto que, o que precisa ser feito é ensinar aos homens a não estuprar." - Kurt D. Cobain.
Resumo: Este artigo busca um breve estudo sobre a possibilidade de aplicação do instituto da indignidade, constante no Código Civil Brasileiro, aos casos de violência sexual. Isso porque hoje nossa sociedade se encontra carente de preceitos morais e éticos, o que enseja a prática de atos indignos. Assim, buscam-se meios para que seja aplicado o instituto da indignidade por analogia a casos que não estão descritos no art. 1.814 do CC, mas, que também são indignos. É sabido que o que causa indignidade é a prática de atos gravíssimos contra o autor da herança ou contra pessoa próxima a ele pelo fato de que a indignidade está fundada em valores morais e éticos relevantes, supondo uma relação de afeto, solidariedade e consideração entre o autor da herança e o sucessor. Há de se reconhecer, entretanto, que não teve o legislador como prever até aonde iria a imaginação - ou a crueldade - do ser humano, prevendo todas as hipóteses possíveis, de modo que não se pode fazer uma leitura seca da lei, sob pena de cometer injustiças. A violência física ou sexual contra as mulheres é alarmante. Trata-se de um problema mundial não havendo distinção de classes sociais, etnias, religiões. Perdem-se mais anos de vida saudável, com incapacidade gerada, do que em doenças graves como câncer da mama ou de colo de útero. Pacientes que sobrevivem aos traumas físicos ou psicológicos gerados por tais violências não merecem ser chamadas de vítimas e sim de sobreviventes. A lei, ao permitir o afastamento do indigno, faz um juízo de reprovação, em função da gravidade dos atos praticados. É moral e lógico que quem pratica atos de desdoura contra quem vai lhe transmitir uma herança torna-se indigno de recebê-la. Vale lembrar aqui dos princípios gerais do direito, da analogia e dos costumes conforme preceitua o art. 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro e, de que na aplicação da lei o juiz deve atender aos fins sociais a que a norma se destina para que esta cumpra sua verdadeira função social e atenda as exigências do bem comum coibindo praticas ilícitas. Neste caso então, vale salientar a validade da aplicação analógica do referido dispositivo legal que trata dos casos de indignidade de modo a ampliar sua aplicabilidade para que a justiça prevaleça.
1. Introdução
A violência física ou sexual contra as mulheres é alarmante. Trata-se de um problema mundial não havendo distinção de classes sociais, etnias e religiões. Perdem-se mais anos de vida saudável, com incapacidade gerada, do que em doenças graves como câncer da mama ou de colo de útero. Dentre as diversas causas estão: O reconhecimento social do poder do homem sobre a mulher; o condicionamento da mulher a atos de mando, agressões e violências; e, sua relação aos atos de prostituição, uso abusivo de drogas lícitas e ilícitas, gravidez indesejada, aborto, suicídio, etc. Pacientes que sobrevivem aos traumas físicos ou psicológicos gerados por tais violências não merecem ser chamadas de vítimas e sim de sobreviventes, segundo o médico Jefferson Drezett, um dos maiores estudiosos brasileiros nesta área (apud JÚNIOR, 2010).
Em 2011 o Ministério da Saúde reconheceu a violência sexual como questão de saúde pública e ainda apontou que uma em cada quatro mulheres no mundo é vítima de violência de gênero com perda de um ano de vida potencialmente saudável a cada cinco anos. No Brasil, 70% dos crimes contra a mulher acontecem no ambiente doméstico e são praticados, na sua maioria, pelos parceiros íntimos.
É necessário enfrentar essa problemática nos âmbitos públicos da segurança, do direito e da saúde, pois a violência sexual provoca uma gama variada de consequências nas suas vítimas. A violência contra a mulher é o retrato da desigualdade de gênero existente no país, que determina papéis, posições e deveres diferentes do feminino e do masculino.
2. Um Breve Histórico Sobre Violência de Gênero
O estupro é um ato tão antigo quanto o homem. Existem registros de uma trajetória da história da violência sexual durante todo o período na França dos séculos XVI ao XX. No Antigo Regime, período anterior à Revolução, era muito pouco penalizado pela justiça, ainda que fortemente condenado pelos textos legais (PEREIRA, apud MARQUES, SANTOS). Os olhos da população desviavam dessa violência e a carência de legislação específica crescia. O vocábulo "estupro" inexistia naquele momento. O ataque sexual é punido eventualmente, e quase sempre quando desferido contra crianças, porque feria um bem secreto: a inocência. Os processos de estupro em que a vítima é uma mulher adulta eram geralmente recusados, principalmente quando não há nem assassinato, nem ferimento físico grave. O relaxamento é tal, que em caso de guerra é perfeitamente admitido pelos jurisconsultos, como o mero ato sistemático representando simbolicamente a posse de um território (PEREIRA, apud MARQUES, SANTOS).
Essa mentalidade refere-se ao fato de que o estupro era primeiramente uma transgressão moral, associado ao comportamento pecaminoso, e não ao criminoso; ele pertence ao universo do impudor, antes de pertencer ao da violência; é gozo ilícito antes de ser ferimento ilícito (PEREIRA, apud MARQUES, SANTOS). A vítima é, então, envolvida, confundida com a indignidade do ato.
Logo após a Revolução, pode-se observar mudanças significativas. Talvez a principal delas seja o reconhecimento de uma autonomia da mulher, em relação a quem passam a ser analisados os crimes de agressão sexual, desviando o olhar tradicional do regime anterior. Agora, a vítima é um sujeito mais independente de seus tutores e do erro moral no qual estava mantida. Não obstante, a suspeita sobre o consentimento da mulher ainda permeia os processos. Aqui, a legislação é totalmente ampliada, para comportar uma categorização dos crimes, que inclusive faz distinção entre os comportamentos sexuais privados "luxuriosos", tais como a "fornicação ilícita" e a sodomia, e os comportamentos sexuais criminosos que utilizam violência.
Outra mudança notável é a presença constante da opinião pública, que acompanha de perto os processos e as mutações da lei. Finalmente, é na metade do século XX, que a psicologia desvia completamente o olhar do Estado sobre o estupro, quando elege o trauma como o elemento central do processo: não mais o peso moral ou social do drama, não mais a injúria ou o aviltamento, mas a desestabilização de uma consciência, um sofrimento psicológico cuja intensidade é medida por sua duração, ou até por sua irreversibilidade (PEREIRA, apud MARQUES, SANTOS).
Atualmente a Violência sexual contra a mulher é uma das expressões da violência baseada no gênero, que tem como origem o desequilíbrio de poder existente entre homens e mulheres, com maior ou menor intensidade, em todos os países do mundo. Essa violência então sempre existiu, mas nunca foi muito discutida. A aceitação social no interior da família e fora dela, faz com que a mulher acabe não denunciando, levando a um desconhecimento da real ocorrência. Portanto, isso nos mostra que a figura feminina foi muito reprimida através dos séculos como dito anteriormente ao ponto de não procurar por seus próprios direitos já que uma vez que revelasse o ocorrido poderia ser rejeitada pela sociedade por mais que fosse apenas uma vítima.
Embora a violência de gênero seja um fenômeno antigo, no Brasil, só ganhou visibilidade nas três ultimas décadas, em função da grande mobilização feminista em torno da questão, que resultou em algumas conquistas como a criação dos Conselhos da Condição Feminina, das delegacias de Defesa da Mulher e em mudanças na legislação relacionadas às medidas de proteção das vítimas e punição do agressor. O reconhecimento público do problema tem levado a propor soluções que têm recebido apoio internacional, particularmente nas Conferências do Cairo (1994) e Beijing (1995).
A ONU define violência de gênero como "qualquer ato de violência baseado no gênero que resulte ou possa resultar em dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico a uma mulher; incluindo ameaça de tais atos, coerção, privação arbitrária da liberdade, seja no âmbito público ou privado" (Conselho Social e Econômico, Nações Unidas, 1992). Apesar de que a violência baseada no gênero pode afetar também os homens, na imensa maioria dos casos a vítima é uma mulher e o agressor é um homem. A mulher tem direitos a uma vida sexual livre de violência sem se preocupar com riscos de gravidez ou adquirir doenças graves, é um dos direitos sexuais e reprodutivos mais básicos de uma mulher.
Apesar de altas freqüências e tantos comentários enfatizando a saúde em risco das vítimas, a violência sexual permanece sendo ignorada e não faz parte dos programas de saúde sexual e reprodutiva até mesmo nas faculdades de medicina no Brasil. Infelizmente não há a atenção necessária para prevenir as graves consequências. Médicos especializados como Ginecologistas precisam estar preparados e informados sobre o tema.
A luta continua, crescendo a cada dia. As mulheres finalmente estão indo atrás de seus direitos através de manifestações e indo contra a "cultura do estupro" que continua sendo pregada na sociedade. O abuso contra as mulheres foi um dos problemas que levantou a questão do feminismo em busca da igualdade entre os gêneros. A voz das multidões incentivam várias mulheres no silêncio em expor seus casos de violência sexual, o que ajuda a termos dados mais concretos e realizar a justiça contra estes tipos e criminosos.
3. A Violência Sexual na Legislação Penal
Nosso ordenamento jurídico, embora a reconhecendo desde sempre, o crime de estupro sempre foi um tabu. No inicio existia a figura da mulher "honesta", legando às prostitutas um prejuízo moral histórico. Enquanto que no estupro da mulher honesta, a mulher levava consigo a mancha indelével com a que poluiu o estuprador (se for virgem o dano assume proporções irreparáveis), implicando em duas violações: contra a liberdade sexual e contra a honra, na mulher meretriz apenas o primeiro bem é ferido.
Doutrinadores mais antigos, como Nelson Hungria e E. Magalhães Noronha entendiam não haver o crime de estupro, ainda que o marido constrangesse a mulher à pratica de relações sexuais mediante o emprego de violência ou grave ameaça. Para esses doutrinadores inexistia a cópula fosse ilícita (fora do casamento). A cópula decorrente do matrimônio era considerada dever recíproco dos cônjuges, constituindo verdadeiro exercício regular de direito; somente podia a mulher escusar-se se o marido, por exemplo, estivesse acometido por moléstia venérea.
ESTUPRO. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE. O restabelecimento da sociedade conjugal pré-existente entre ofendida e o agente do delito constituiu-se, a partir da interpretação analógica in bonan partem do artigo 107, VII, do Código Penal, causa extintiva da punibilidade. Decretaram extinta a punibilidade. Unânime. (Apelação Crime Nº 70009464470, Quinta Câmara Criminal, TJRS, Relator: Luís Gonzaga da Silva Moura, Julgado em 06/10/2004).
No mesmo diploma legal e doutrina reconhecia como causa de extinção de punibilidade, o estuprador que casasse com a sua vítima:
ESTUPRO. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE. É admitido o perdão da vítima em ação penal pública condicionada à representação, por força do disposto nos artigos 105, 107, V, e 225, §§ 1º e 2º, todos do CP. O casamento da ofendida com terceiro, em não tendo o crime sido cometido com violência real ou grave ameaça e não havendo pedido de prosseguimento da ação penal, constitui causa extintiva da punibilidade. Inaplicável as disposições da Lei 11.106/2005, que revogou o artigo 107, VIII, do CP, já que vigente lei mais benéfica ao tempo do fato. Decretaram extinta a punibilidade. Unânime. (Apelação Crime Nº 70013371620, Quinta Câmara Criminal, TJRS, Relator: Luís Gonzaga da Silva Moura, Julgado em 19/07/2006).
Daí o fato de que até 1995, o estuprador que casasse com a sua vítima a sua punibilidade era extinta. Observa-se claramente a aplicação no que se refere aos costumes, pois naquele tempo (quando da lei em vigor) a preocupação era com a desonra da mulher, era com o fato de ter sido aflorada e não "conseguir arranjar marido", o que não faz sentido algum para a nossa atual sociedade.
Com o advento da Lei 12015 de 2009 que promoveu diversas modificações no instituto, dentre elas o disposto no título, modificando de Crimes Contra a Honra para Crimes Contra a Dignidade Sexual. Podemos observar que o nome do título trazia a ideia de bons costumes, mais ligado à ofensa da honra e não de dignidade como foi introduzido pela lei 12015/2009. Dessa forma, com o novo diploma legal, houve uma maior preocupação do legislador pela dignidade sexual. Houve uma maior repulsa pelo delito cometido, ao passo que nos crimes contra os costumes ficava a critério da vítima ou do meio social ao qual pertencia classificava contra costumes.
Vale ressaltar que no antigo artigo 213 do CPB(14), alterado pela Lei 12.015 de 2009, o núcleo do tipo era se consubstanciava no verbo constranger mulher a conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça. Constranger significa forçar, compelir, coagir a mulher a manter com o agente conjunção carnal.
4. A indignidade no Código Civil Brasileiro
4.1. Princípios que Permeiam o Instituto da Indignidade
A indignidade é uma pena civil cominada ao herdeiro ou ao legatário que cometer atos criminosos, ofensivos ou reprováveis, contra a vida, a honra e a liberdade do de cujus ou de seus familiares, privando-os do direito à herança. Trata-se de um instituto previsto no ordenamento civil que objetiva excluir da sucessão os herdeiros ou legatários considerados indignos.
É uma forma de exclusão de herdeiros legítimos e testamentários, e abrange, portanto, a sucessão legítima e a testamentária; embora tendo a capacidade para suceder, o excluído perde-a, como pena civil, pela prática de determinados atos determinados pela lei, como danosos à vida, à honra ou à liberdade de testar do autor da herança.
Pelo prestígio à dignidade da pessoa humana, princípio maior da Constituição Federal, elementar razão de ordem ética, quem desrespeita a dignidade do outro merece ser punido. Quando a afronta se dá entre pessoas que têm vínculo familiar e afetivo tão estreito, a ponto de ser um herdeiro do outro, a forma encontrada pela lei para inibir tais ações é de natureza patrimonial. Merece ser alijado da sucessão o herdeiro que age contra a vida ou a honra do autor da herança ou comete atos ofensivos contra os membros de sua família. Também se sujeita à mesma penalidade se obstaculiza a manifestação de vontade do testador.
A legislação, ao permitir o afastamento do herdeiro indigno, nada mais faz do que um juízo de ponderação desaprovando a conduta praticada, levando em consideração sua negativa intensidade. Nos moldes hodiernos da sociedade brasileira, é possível perceber a emergência de fatos individuais e coletivos que revelam uma dialética em diversos setores sociais, inclusive, exigindo a regência normativa imprescindível do Direito para legitimar e manter a paz social.
Sob esse enfoque, confluem um conjunto de valores morais e princípios jurídicos referentes à pessoa humana que são de observância obrigatória no momento de subsunção desses fatos às normas jurídicas legais, de tal maneira que formam um alicerce fundamental para aplicação do Direito tendo em vista a conservação e respeito aos bens jurídicos e humanos.
4.2. O Instituto da Indignidade
A indignidade é a privação do direito, cominada por lei, a quem cometeu certos atos ofensivos à pessoa ou ao interesse do hereditando, ou seja, o legislador cria uma pena, consistente na perda da herança, aplicável ao sucessor legítimo ou testamentário que houver praticado certos atos de ingratidão contra o de cujus. Trata-se de uma pena civil que priva do direito à herança não só o herdeiro, mas também o legatário que cometeu atos criminosos, ofensivos ou reprováveis, taxativamente enumerados em lei, contra a vida, a honra e a liberdade do de cujus.
A lei, ao permitir o afastamento do indigno, faz um juízo de reprovação, em função da gravidade dos atos praticados. É moral e lógico que quem pratica atos de desdouro contra quem vai lhe transmitir uma herança torna-se indigno de recebê-la. Daí porque a lei traz descritos os casos de indignidade, isto é, fatos típicos que, se praticados, excluem o herdeiro da sucessão hereditária. A lei ao permitir o afastamento do indigno, faz um juízo de reprovação, em função da gravidade dos atos praticados.
A indignidade não se opera automaticamente, havendo a necessidade da propositura de uma ação de rito ordinário, movida por quem tenha interesse na sucessão e na exclusão do indigno, sendo que os casos descritos no rol do artigo 1.814 do Código Civil devem ser provados no curso da ação. Supõe capacidade para suceder e se funda em motivos pessoais do indigno. O indigno adquire a herança e a conserva até que passe em julgado a sentença que o exclui da sucessão.
As hipóteses do artigo 1.814 do Código Civil são comuns à indignidade e à deserdação. Para a deserdação, abrem-se outras possibilidades nos casos descritos nos artigos 1.962 e 1.963 do Código Civil pátrio. Porém, o fundamento de ambos os institutos é idêntico, necessitando-se de uma ação e de uma sentença, para afastar o sucessor indigno ou deserdado.
Art. 1814 - São excluídos da sucessão os herdeiros ou legatários:
I - que houverem sido autores, co-autores ou partícipes do homicídio doloso, ou tentativa deste, contra a pessoa cuja sucessão se tratar, seu cônjuge, companheiro, ascendente ou descendente;
II - que houverem acusado caluniosamente em juízo o autor da herança ou incorrerem em crime contra a sua honra, ou de seu cônjuge ou companheiro;
III - que, por violência ou meios fraudulentos, inibirem ou obstarem o autor da herança de dispor livremente de seus bens por ato de ultima vontade.
Enquanto que a deserdação só alcança os herdeiros necessários. A indignidade pode alcançar herdeiros legítimos, necessários, facultativos, testamentários ou legatários.
Vemos que causa indignidade a prática de atos gravíssimos contra o autor da herança ou contra pessoa próxima a ele pelo fato de que a indignidade está fundada em valores morais e éticos relevantes, supondo uma relação de afeto, solidariedade e consideração entre o autor da herança e o sucessor.
Além do mais, a indignidade está pautada também nesses valores, pois, é moralmente condenável em nossa sociedade um cônjuge que pratica violência sexual com a mulher e recebe a herança. Este tipo de conduta se permitida, sempre abre precedentes para a perpetuação desses casos nos arranjos familiares. Isto é devido o atual estágio em que se encontra nossa sociedade, pobre e escassa em preceitos morais, éticos e valores como a solidariedade, fraternidade, respeito ao próximo dentre vários outros valores que poderiam aqui ser enumerados.
4.3. A Aplicabilidade do Instituto da Indignidade por Analogia
É sabido que o que causa indignidade é a prática de atos gravíssimos contra o autor da herança ou contra pessoa próxima a ele pelo fato de que a indignidade está fundada em valores morais e éticos relevantes, supondo uma relação de afeto, solidariedade e consideração entre o autor da herança e o sucessor.
Há de se reconhecer, entretanto, que não teve o legislador como prever até aonde iria a imaginação - ou a crueldade - do ser humano, prevendo todas as hipóteses possíveis, de modo que não se pode fazer uma leitura seca da lei, sob pena de cometer injustiças.
Por essa linha de raciocínio, já identificamos julgados que aplicam por analogia por analogia o instituto da indignidade. Existe precedente do TJRS, que teve como voto divergente vencedor, o da então desembargadora Dra. Maria Berenice Dias, em um caso de um genro que assassinou o sogro, no qual a esposa, com quem era casado em regime de comunhão universal de bens, ajuizou ação declaratória de indignidade, para que seu marido não tivesse direito aos bens deixados pelo pai da mesma, contra quem seu cônjuge havia cometido homicídio. O TJRS aplicou o instituto da indignidade a esse caso:
Assim, se há omissão de norma legal, deve sempre que prevalecer o princípio consagrado pelo legislador que, indiscutivelmente, é o de não permitir a quem atenta contra a vida de outrem possa dele receber alguma coisa, seja como sucessor, seja como cônjuge ou companheiro do sucessor, Essa é a intenção do legislador e a função da Justiça é exatamente fazer incidir a orientação ditada pela lei. (TJRS, Apelação Cível Nº 70005798004, 7ª Câmara Cível, J. 09/04/2003).
Em outro caso o TJMG aplicou, por analogia, o instituto da indignidade ao Contrato de Seguro. Assim, o beneficiário do seguro, que assassinou o contratante do seguro em seu favor, após ser declarado indigno, perdeu o direito à percepção do Seguro.
Declaratória - Caso Concreto - Previsão legal - Ausência - Analogia - Costumes- Princípios Gerais do Direito- Possibilidade. Seguro de vida- segurada- homicídio- beneficiário- indignidade- declaração- indenização- herdeiros. Não havendo previsão legal quanto à determinada situação apresentada à apreciação do julgador, deve utilizar-se da analogia, dos costumes e princípios gerais do direito. Inteligência do art. 4º da LICC. Vindo a pessoa que indicou como beneficiário do seguro de vida o seu algoz, se por ele assassinada, deve ser reconhecida a indignidade deste, sob pena de malferir os mais comezinhos princípios do direito. Declara a indignidade do beneficiário do seguro de vida, deve este ser pago aos herdeiros do segurado. (TJMG, 1.0518.02.016087-6/001 (1), rel. José Amâncio, Dj 07.04.2006).
5. As Consequências da Violência Sexual Para a Vítima
No Brasil, o Ministério da Saúde (2011) delineia os impactos que a violência sexual acarreta para as vítimas. Entre as principais consequências estão lesões físicas, gravidez indesejada, doenças sexualmente transmissíveis e o impacto psicológico, na maioria das vezes, irreversível. Também são citados os danos à saúde mental, como ansiedade, depressão e suicídio.
Outros aspectos, como sentimentos de medo da morte, sensação de solidão, vergonha e culpa são acrescentados. Podem ocorrer, ainda, transtornos da sexualidade, incluindo vaginismo, dispareunia, diminuição da lubrificação vaginal e perda do orgasmo, que podem evoluir para a completa aversão ao sexo.
A violência sexual pode gerar outras consequências como problemas familiares e sociais, abandono dos estudos, perda do emprego, separação conjugal, abandono da casa e prostituição, como parte dos problemas psicossociais relacionados a essa dinâmica. Pode levar, ainda, à delimitação confusa das próprias barreiras e dos próprios limites, estigmatização, vergonha, traição, dissociação e repetição. A invisibilidade é o desejo de muitas vítimas de violência sexual.
Há certo tom de fatalidade em relação ao futuro de uma pessoa que sofre violência sexual, especialmente se foi crônica ou se ocorreu na infância. É como se a sobrevivente do trauma estivesse inclinada a ocupar a posição de vítima de novas traumatizações, impossibilitada de obter conscientemente o controle da própria vida.
A violência sexual pode trazer diversas consequências por meio de transtornos, mas também nas relações cotidianas. Quando os sintomas se tornam frequentes e permanentes, passam a se expressar de forma patológica, como transtorno de stresse pós-traumático (TEPT), transtornos alimentares, depressão, tentativa de suicídio, dificuldade nas relações afetivas e sexuais.
Uma investigação realizada para verificar a relação entre violência sexual, saúde e comportamentos de risco, indicou que mulheres que sofreram violência sexual tiveram maior incidência de saúde mental debilitada, baixa satisfação com a vida, limitação de atividades, tabagismo e consumo esporádico de bebida alcoólica. A associação entre saúde mental e física debilitada e a violência sexual foi mais prevalente em mulheres, com consequências que persistem ao longo do tempo.
Entre 1980 a 2008 foi realizado meta-análise com 37 estudos sobre associação entre abuso sexual e transtornos psiquiátricos. Os resultados indicaram relação entre o antecedente de abuso sexual, o diagnóstico e a duração do transtorno de ansiedade, depressão, transtornos alimentares, TEPT, distúrbios do sono e tentativa de suicídio. A relação entre abuso sexual e transtornos psiquiátricos mostrou-se persistente, independentemente do sexo da vítima e da idade na qual o abuso ocorreu. Além disso, observaram associação entre abuso sexual e desordens somáticas, incluindo-se alteração funcional gastrointestinal, dor pélvica crônica, convulsões psicogênicas e dor crônica não específica.
Estudo realizado de caráter comparativo entre mulheres que sofreram episódio de estupro consumado e vítimas de tentativa de estupro e avaliaram 13 aspectos: saúde, autoestima, autopercepção de atratividade, autopercepção do valor do parceiro, relações familiares, trabalho, vida social, reputação, reputação sexual, desejo de fazer sexo, frequência do sexo, prazer de fazer sexo e relação estável e duradora. Mulheres que sofreram estupro consumado apresentaram índices significativamente mais negativos em 11 aspectos. Os mais afetados foram autoestima, reputação sexual, frequência do sexo, desejo de fazer sexo e autopercepção do valor do parceiro. No entanto, mulheres que sofreram tentativa de estupro também reportaram vivências negativas em vários aspectos.
6. Considerações Finais
Após esse breve estudo sobre a aplicação por analogia do instituto da indignidade, bem como as graves consequências de uma violência sexual, como um grave problema social, foi possível observar que, mesmo, com todo o processo evolutivo sofrido pela legislação, principalmente na seara penal, há que se designar atenção especial às questões desse instituto que muito deixa a desejar. Não contemplam de forma efetiva os princípios do Direito Pátrio e o interesse social, cujos objetivos são inerentes à própria função do direito.
De tal modo, hoje o instituto da indignidade hoje pode e deve ser aplicado em casos de violência sexual, pois não seria moral e ético no Direito o estímulo à esse ato de violência para o recebimento de benefícios contratuais simplesmente pelo fato de que os casos de indignidade não poderiam ser aplicados, por analogia, em relação ao que está definido no art. 1.814 do Código Civil.
Os princípios gerais do direito, da analogia e dos costumes conforme preceitua o art. 4º da LICC e, de que na aplicação da lei o juiz deve atender aos fins sociais a que a norma se destina para que a esta cumpra sua verdadeira função social e atenda as exigências do bem comum coibindo práticas ilícitas repudiadas moral e eticamente.
Nada obsta a aplicabilidade do instituto da indignidade por analogia, pois esta apesar de ser uma penalidade, não possuiu natureza jurídica penal não tendo que se falar no ramo de direito civil do respeito à tipicidade que é inerente e própria do ramo de direito penal que decorre do princípio da reserva legal absoluta (art. 5º, XXXIX, CF/88). Entretanto, é sabido que há posicionamento diverso que entende que não pode ser aplicado o instituto da indignidade por analogia.
Neste caso então, vale salientar a validade da aplicação analógica do referido dispositivo legal que trata dos casos de indignidade de modo a ampliar sua aplicabilidade para que a justiça prevaleça. A indignidade é um instituto previsto no ordenamento jurídico brasileiro e que sua função é disciplinar as questões que envolvem a ética e a moral na sucessão, uma vez que, ao se punir os herdeiros ou legatários que cometeram os atos ofensivos previstos em lei contra o autor da herança ou de seus familiares com a exclusão da sucessão, faz-se valer a lógica jurídica no que tange ao respeito às relações de parentesco que, por si só, pressupõem o vínculo afetivo e solidário entre o autor da herança e o herdeiro.
A sociedade demanda ações que coíbam práticas ilícitas e imorais e que na maioria das vezes já está positivado em nosso ordenamento jurídico faltando apenas que os instrumentos já existentes sejam postos em prática como o da aplicação analógica da lei dentre outros instrumentos que buscam a realização e promoção da justiça social. Por fim, é necessário analisarmos a possibilidade de aplicação deste dispositivo legal por analogia para que se possa ter a finalidade social como escopo e prevalecendo a justiça.