Por Samara Carina Albuquerque França -
Na América Latina, feminicídio e femicídio são as duas terminologias comumente utilizadas para se referir à morte violenta de mulheres por razões de gênero. Ambos os termos tiveram origem na palavra inglesa femicide, cujo emprego mais marcante data de 1992, com a obra "Femicide: The Politics of Woman Killing" , um compilado de artigos organizado por Diana Russell e Jill Radford, grandes estudiosas na área de gênero .
Em um dos artigos, Russell e Jane Caputi definem femicide como o extremo do terror antifeminino, o qual envolve uma série de abusos verbais e físicos, que vão desde o estupro, a exploração sexual e o assédio, até a maternidade forçada, a cirurgia estética, entre outras formas de violação. Nota-se, portanto, ser um conceito bastante abrangente, que abarca toda morte feminina resultante de alguma expressão do terrorismo sexista — seja ele uma violência doméstica ou um aborto clandestino, por exemplo. Além disso, as autoras acreditam que chamar o assassinato misógino de femicide remove o "véu obscuro" de termos como homicide e murder, que são generalizados, ou seja, alheios à problemática de gênero .
Porém, a partir da tradução de femicide para o castelhano, surgiram os termos feminicídio e femicídio, que receberam conteúdos diferenciados a depender do contexto histórico em que foram introduzidos. Até hoje, contudo, a conceituação de cada um deles não possui um consenso entre os pesquisadores .
O uso da palavra feminicídio, especificamente, aparece com a mexicana Marcela Lagarde. Para a autora, feminicídio significa genocídio contra as mulheres, que ocorre quando as condições históricas permitem diversas violências contra a integridade, a saúde, as liberdades e a vida das mesmas .
Lagarde confere ao termo um caráter político, uma vez que o enxerga como consequência da omissão e da negligência das autoridades incumbidas de prevenir esses delitos. Dessa forma, feminicídio é visto como um crime de Estado, pois quando este não realiza com eficiência as suas funções, preserva a estrutura patriarcal da sociedade, que consagra a dominação dos homens sobre as mulheres .
A mexicana justifica a utilização de feminicídio em detrimento de femicídio porque, segundo ela, este se restringiria ao mero homicídio de mulheres, em sentido homólogo ao termo homicídio (assassinato de homens). Por isso, prefere o termo feminicídio, para revelar as violações de direitos humanos que englobam os crimes contra a mulher .
Entretanto, com a costarriquense Ana Carcedo, a expressão femicídio recebeu uma conceituação mais aprimorada. De acordo com ela, femicídio distingue-se do simples homicídio de mulheres, denominando-o como toda morte decorrente da subordinação feminina, que abrange tanto os homicídios quanto os suicídios derivados da violência e das condições de discriminação, assim como as ações e omissões que, nesse contexto, provocam a morte de alguma mulher .
Observa-se que o conceito de femicídio utilizado por Carcedo e outras autoras se diferencia do feminicídio definido por Lagarde, pois, neste último, espera-se o componente da impunidade estatal. Femicídio, portanto, é o termo que mais se aproxima do femicide conceituado por Russell e Caputi.
Dito isso, tem-se que, na América Latina, o conceito de feminicídio/femicídio adquiriu diversos significados. Contudo, não convém ao Direito Penal expandir demais essa conceituação. Com base na relevância penal da conduta e no princípio da tipicidade, deve-se excluir toda ação ou omissão que não pode ser considerada como crime , como um suicídio provocado pela discriminação de gênero, por exemplo.
Dessa forma, em consonância ao posicionamento de Adriana Ramos de Mello , entende-se que o conceito de feminicídio/femicídio mais adequado ao Brasil é o assassinato de mulheres cometido por motivação de gênero, tanto no contexto doméstico de subordinação, quanto naquele provocado por pessoa desconhecida .
À vista disso, nota-se que o feminicídio não se limita a um único contexto. Inspirando-se na classificação tradicional, é possível dividi-lo em três tipologias básicas: 1) feminicídio íntimo; 2) feminicídio não íntimo; 3) e feminicídio por conexão.
O feminicídio íntimo ocorre quando as vítimas possuem alguma relação com seus algozes, seja afetiva, familiar ou de mera convivência. Ressalvado o feminicídio por conexão, o feminicídio não íntimo é residual, abarcando os homicídios em que não havia qualquer relação afetiva, familiar ou de convivência anterior. Já o feminicídio por conexão refere-se às mulheres que não eram as vítimas virtuais do intento criminoso, mas acabam atingidas. Ocorre, por exemplo, quando o agressor pretende matar a filha, a amiga ou a mãe da vítima real, mas depara-se com um aberratio ictus (erro na execução ou erro por acidente) .
Existe ainda a categoria do feminicídio sexual, que constitui o homicídio de mulheres motivado por desejos sádicos libidinosos, em que as vítimas são geralmente sequestradas, estupradas, torturadas e abandonadas seminuas em lugares ermos . Tais crimes possuem um requinte de crueldade e exaltam o controle masculino sobre os corpos femininos, o qual transforma mulheres em meros objetos de prazer que, ao fim, são descartados, em sinal ostensivo de misoginia.
Como se vê, as formas de feminicídio observadas pelos pesquisadores são muitas, o que impossibilita traçar uma classificação infalível desses contextos. Os cenários das mortes incluem as mulheres em ocupações estigmatizadas, como as prostituídas, que são mortas pelas funções que ocupam no espaço social; as mulheres vítimas do tráfico ou do contrabando de pessoas; as mulheres executadas em conflitos armados; as mulheres que padecem da lesbofobia, da transfobia ou do racismo ; as mulheres perseguidas por seus países de origem em razão do gênero; entre tantas outras.