Por Danilo Knijnik -
Recentemente, o ministro Alexandre de Moraes suspendeu determinados procedimentos fiscalizatórios realizados pela Receita Federal, considerando os indícios de dirigismo e seletividade na definição dos alvos a serem fiscalizados. Segundo a decisão, “não se verificou a necessária atuação de forma técnica e impessoal, pois a escolha fiscalizatória em relação a agentes públicos foi realizada sem critérios objetivos”, com “real possibilidade de direcionamento da atividade fiscalizatória para atingir alvos predeterminados” e “quebra das necessárias legalidade e impessoalidade”.
Tal importantíssima decisão bem pode ter inaugurado, entre nós, o fenômeno examinado nos Estados Unidos a partir das chamadas ações retaliatórias, Bivens actions ou ações civis por privação de direitos. Cuida-se de tutela jurisdicional indenizatória, de competência da Justiça Federal americana, contra atos praticados por agentes públicos, tendentes a cercear ou retaliar o exercício das liberdades constitucionais, como o direito à livre manifestação, privacidade, isonomia, não autoincriminação, petição etc. A respectiva causa de pedir, tratando-se de autoridade estadual, foi instituída em 1871 com o advento do 42 USC §1983; e, tratando-se de autoridade federal, deduzida diretamente da Constituição em Bivens, julgado pela Suprema Corte em 1970.
A rigor, desde tempos remotos, a common law concebia ações de indenização contra prisões ou processos retaliatórios. A grande dificuldade das Bivens actions, porém, sempre residiu no fato de que, via de regra, o ato da autoridade reveste-se de aparente legalidade formal, como, aliás,parece ter sido o caso examinado pelo ministro Alexandre de Moraes. Nem por outra razão, este foi o punctum dolens revisitado em 28 de maio de 2019 pela Suprema Corte americana em Nieves, que se debruçou sobre uma prisão realizada no contexto de uma altercação verbal, sustentando o demandante, de um lado, que tudo não passou de retaliação pelo exercício do seu direito de crítica, afirmando os policiais, por outro lado, que apenas prenderam um cidadão embriagado. À raiz do problema, pois, encontra-se a seguinte vexata quaestio: teria a autoridade invocado a justa causa apenas como pretexto para fazer represália, sendo este seu real animus?
Para ficar apenas com a história recente, a Suprema Corte americana, em 2006, decidiu Hartman, um caso de processo retaliatório, fixando o entendimento de que a “falta de justa causa para as imputações subjacentes” seria um requisito à admissibilidade da demanda indenizatória nessa hipótese. A isto seguiu-se, em 2012, Reichle, versando sobre uma prisão, ocasião em que a Suprema Corte esclareceu o alcance limitado de Hartman a hipóteses de ações penais retaliatórias. Em 2018 foi a vez de Lozman, envolvendo uma suposta perseguição estatal a um cidadão muito contestador e crítico da gestão do município, vítima de uma prisão infrequente, sendo invocado Hartmann a defesa do órgão público, tendo a Suprema Corte esclarecido que “a existência de justa causa [para a prisão] não impede a ação retaliatória de Lozmanpor violação à 1ª Emenda”. Porém, em 2019, Nieves examinou a prisão de um cidadão supostamente embriagado após opor-se criticamente à ação dos policiais. Nessa oportunidade, entre Hartman e Lozman, a Suprema Corte ficou com a tese de que a existência de justa causa, em princípio, torna inadmissível a ação retaliatória, salvo demonstração objetiva de que, não fosse o exercício do direito constitucionalmente protegido, a prisão não teria ocorrido. Nas palavras do presidente da Corte, justice J. Roberts, “se um indivíduo está protestando verbalmente sobre a conduta policial e é preso por atravessar a rua em zigue-zague, a proteção da 1ª Emenda seria insuficiente se a demanda por prisão retaliatória fosse rechaçada pela existência da justa causa”. Portanto, “o requisito da inexistência de justa causa não deve ser aplicado se o autor apresenta evidências objetivas de que foi preso enquanto pessoas em situação semelhante, não envolvidas em algum tipo de discurso constitucionalmente protegido, não foram”.
Diferentemente, o acórdão recorrido do 9º Circuito havia consagrado a tese de que, tratando-se de prisão retaliatória, a ausência de justa causa não faria inadmissível a demanda, como no caso de processo penal retaliatório. Nas palavras da decisão reformada, “o autor não pode promover uma demanda contra uma ação penal retaliatória se as acusações estão embasadas em justa causa, mas isso não se aplica às prisões retaliatórias”. O racional dessa orientação consistiria no fato de que “o indivíduo tem o direito de ser estar livre de ações policiais retaliatórias, mesmo existindo justa causa para essas ações (...). Assim, o juízo singular errou ao concluir que a demanda contra a prisão retaliatória de Bartlett era inviável apenas porque os policiais tinham justa causa para prendê-lo”.
A restrição parcial operada em Nieves foi impactada pelo risco de submeter aventuras judiciais ao júri, com excesso de litigiosidade e riscos aos policiais. O acórdão atenua a distinção entre processos e prisões retaliatórios, afirmando que “em ambas demandas, é particularmente difícil determinar se a ação governamental adversa foi causada pela intenção do agente ou pela conduta potencialmente criminosa do autor”. Por isso, “o autor que ajuíza uma ação contra prisão retaliatória deve alegar e provar a inexistência de justa causa para prisão”. Através desse recurso, não se passa diretamente ao exame do elemento subjetivo do agente, de difícil comprovação e passível de subjetivismos, fazendo-se antes um teste objetivo relativo à justa causa, sob pena de “ações duvidosas contra prisões retaliatórias prosseguirem apenas com base em alegações sobre o estado mental do agente policial”, o que é “fácil de alegar e difícil de desmentir”.No fundo, como ponderou o justice N. Gorsuch, “a história mostra que governos algumas vezes tentam regular nossas vidas no detalhe, aguda, completa e exaustivamente. (...). Se o Estado pudesse usar leis não para a sua finalidade, mas para silenciar quem verbaliza ideias impopulares, pouco restaria das liberdades da 1ª Emenda e pouquíssimo nos separaria das tiranias do passado ou dos feudos malignos de nossa própria era”.
Tornando à decisão proferida pelo ministro Alexandre de Moraes, consta na hipótese analisada que “não se verificou a necessária atuação de forma técnica e impessoal, pois a escolha fiscalizatória em relação a agentes públicos foi realizada sem critérios objetivos e com total ausência de razoáveis indícios de ilicitude”, donde não haveria justa causa “para atingir alvos predeterminados”. Ademais, “de forma oblíqua e ilegal”, constatou-se a pretensão de “de investigar diversos agentes públicos, inclusive autoridades do Poder Judiciário, incluídos ministros do Supremo Tribunal Federal, sem que houvesse, repita-se, qualquer indício de irregularidade por parte desses contribuintes”. Assim, abstração feita a qualquer juízo de mérito, pois desconhecidos os fatos subjacentes, o decisum proferido no Inquérito 4.781 reuniu os principais aspectos examinados nas chamadas ações retaliatórias, prenunciando entre nós, quiçá, uma nova forma de tutela contra atos com desvio de finalidade.
Pois bem, em 2001, a 1ª Turma do STF anulou busca pessoal realizada por agentes policiais, registrando que a suspeita “não pode fundar-se em parâmetros unicamente subjetivos, exigindo elementos concretos que indiquem a necessidade da revista”, “sob risco de referendo a condutas arbitrárias ofensivas a direitos e garantias individuais e caracterizadoras de abuso de poder”. Em 2016, o Pleno do STF estabeleceu que “muito embora o flagrante delito legitime o ingresso forçado em casa sem determinação judicial, a medida deve ser controlada judicialmente”, de modo que “os agentes estatais devem demonstrar que havia elementos mínimos a caracterizar fundadas razões (justa causa) para a medida”, o que deve ser examinado a posterior, sob pena de “nulidade dos atos praticados”. Por fim, em 2019, o ministro Alexandre de Moraes examinou a legitimidade de ação fiscal desencadeada pela Receita Federal, considerando a falta de justa causa e suas características de seletividade e dirigismo.
Posso estar enganado, mas, salvo melhor juízo, podemos nos encontrar nos umbrais de uma específica e nova forma de tutela jurisdicional, semelhante àquela proporcionada pelas Bivensactionse pelo 42 USC § 1983, que não pode passar despercebida da comunidade jurídica.