Por Luiz Edson Fachin, Suzana Massako Hirama Loreto de Oliveira e Fernando Quadros da Silva -
Tramita no Supremo Tribunal Federal, aguardando ser chamado para julgamento pelo colegiado da Segunda Turma, o Habeas Corpus coletivo que diz respeito à superlotação nas unidades destinadas ao cumprimento das medidas socioeducativas de internação dos adolescentes em conflito com a lei. Em salutar debate tem emergido reflexões sobre o mérito dessa importante impetração. Aqui, com o objetivo de contribuir com esse diálogo entre conhecimento e experiência, são aportadas ponderações de índole exclusivamente acadêmica e à luz do que já consta publicamente do respectivo processo no atual estado da arte.
Principie-se pela lei, precisamente porque, antes e acima de tudo, o ordenamento normativo (constitucional e infraconstitucional) é o limite para todos num Estado de Direito democrático. Para os casos em que se verificar a prática de atos infracionais por adolescentes, não se deve, portanto, olvidar que o Estatuto da Criança e do Adolescente (artigo 112) prevê um rol de medidas que incluem a advertência, a obrigação de reparar o dano, a prestação de serviços à comunidade, a liberdade assistida, a inserção em regime de semiliberdade e a internação em regime educacional. As medidas são aplicadas levando em conta a capacidade de cumpri-la, as circunstâncias e a gravidade do ato infracional. A dicção legal não deixa margem de dúvida quanto à natureza das internações e dos estabelecimentos que devem ser educacionais. Ao Poder Público cabe a construção ou adequação de unidades socioeducativas, núcleos de atendimento integrado e casas de semiliberdade. Tais diretrizes correspondem à incidência de princípios e regras que, da sede da Constituição da República, se projetam como luzidia norma de vinculação a gestores e a aplicadores da lei.
O Habeas Corpus coletivo tem se mostrado eficiente remédio, quer do ponto de vista da eficaz proteção dos direitos fundamentais, quer sob a perspectiva de política judiciária. Nesta última dimensão, a concessão de ordem coletiva tem o condão de evitar a impetração de centenas ou até milhares de medidas idênticas com os indesejáveis efeitos de morosidade e insegurança jurídica diante de possíveis decisões díspares.
Não é demasiado relembrar a peculiar análise de Daniel Sarmento que também identifica uma tendência contemporânea de tutela coletiva de direitos individuais com vistas a promover economia e celeridade processuais, a igualdade de tratamento entre os jurisdicionados e o pleno acesso à Justiça, especialmente para os hipossuficientes, mormente na esfera penal, em que a seletividade do aparelho repressor do Estado deixa especialmente vulnerável a camada populacional mais pobre, sendo o Habeas Corpus coletivo um instrumento necessário à tutela da liberdade de locomoção em uma sociedade de massa, marcada pela desigualdade, como a brasileira.
Na sua vetusta obra, William Blackstone rememorava que o writ of habeas corpus nos seus primórdios foi utilizado originariamente como instrumento de administração da Justiça para transferir a custódia de pessoas aprisionadas de um tribunal geralmente para uma corte superior.
Com efeito, proclamado pela doutrina clássica como a "maior salvaguarda da liberdade" o writ of habeas corpus ocupa há muito tempo um lugar reverenciado em todas as jurisdições e, dos seus contornos iniciais, se transformou no mais importante instrumento de preservação da integridade física e da liberdade, com notável primazia entre os remédios processuais que lhe valeram o merecido epíteto The great writ.
No âmbito do Supremo Tribunal Federal, conforme percuciente análise de Matheus de Andrade Bueno, “em 2018 foram concedidas 642 Habeas Corpus (...) com clara distinção de postura entre os ministros com relação à concessão das ordens, além de um evidente predomínio de decisões monocráticas sobre colegiadas.” No direito pátrio, na seara evolutiva do instituto, destaca-se a concessão pela 2ª Turma, em 20/02/2018, de Habeas Corpus coletivo para determinar a substituição da prisão preventiva por domiciliar para todas as mulheres presas, em todos o território nacional, que sejam gestantes ou mães de crianças até 12 anos ou de pessoas com deficiência, sem prejuízos da aplicação de medidas previstas no artigo 319, do Código de Processo Penal.
Adolescentes em conflito com a lei são, a toda evidência, titulares de direitos de proteção; combate-se a infração à lei com o respeito à própria norma, especialmente a tutela dos direitos humanos. Seres em formação não se transformam em objeto de ilegítima violência regularmente atribuída ao Estado nas democracias.
Há algum tempo, dados levantados por respeitáveis instituições públicas e privadas, têm revelado a superação do limite máximo previsto para algumas unidades de internação que serviu de fundamento para que as defensorias públicas de determinadas unidades da federação viessem bater às portas do Supremo Tribunal Federal pleiteando uma solução. É uma dessas hipóteses em que não basta decidir em abstrato; cumpre ânimo resolutivo, mais do que promover andamento formal de papéis.
Informações foram solicitadas, dados estatísticos constituíram promoção, culminando com o deferimento pelo relator de provimentos liminares nos casos em que restou evidenciada a superlotação, reservando-se para julgamento definitivo o mérito. Não se trata de questão nova e nem de provimento judicial que veio colher de surpresa as autoridades encarregadas. Há algum tempo é notada a necessidade de ampliar a capacidade de recebimento de adolescentes nas unidades socioeducativas. Na maioria dos estados não se verifica a superlotação, nada obstante em alguns houve a necessidade de atuação jurisdicional. Lê-se nos autos que a medida foi deferida não porque se verificou uma pequena e episódica estrapolação da capacidade de internação, e sim uma sistemática e contínua internação que compromete a própria dignidade humana.
Inevitável, como soe acontecer, que medidas judiciais interventivas causem desconforto e imponham mudança de procedimentos. É inerente ao sistema jurídico de controle, quando verificada a violação dos direitos fundamentais, aos destinatários o dever de adotar medidas para fazer cessar o estado de coisas que conduziu ao deferimento da medida judicial.
Ao examinar as possíveis reações dos agentes públicos quando o Judiciário interfere nas suas atuações, Robert J. Hume realça que os órgãos administrativos destinatários podem resistir às decisões das cortes judiciais por razões ideológicas ou por falta de tempo ou de recursos financeiros para programar as alterações em suas políticas de atuação (HUME, Robert, J. How courts impact Federal Administrative Behavior, New York London, Routledge, 2009, p. 148). A inércia, contudo, é confronto com a norma e com a autoridade das decisões judiciais.
A proibição de superlotação nas unidades socioeducativas de adolescentes não traz em seu bojo, como se poderia simploriamente argumentar, a puras e simples libertações de adolescentes que praticaram atos infracionais, mas sim uma obrigação de se adotar outras medidas possíveis também elas previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, como a liberdade assistida ou internação domiciliar, conforme a gravidade da infração.
A utilização do habeas corpus coletivo para impedir o tratamento degradante, corolário inevitável do excesso de lotação de custodiados, também não constitui novidade. No direito comparado, para ficar apenas no âmbito do Mercosul, tem-se o emblemático julgado da Corte Suprema da Argentina que, no caso Verbitsky, admitiu o uso de writ para determinar a interrupção de tratamento degradante ao qual estavam sendo submetidos detentos que cumpriam penas em estabelecimentos prisionais de Buenos Aires. Naquela decisão de maio de 2005 a Corte Suprema daquele país proferiu decisão que afetou em torno de seis mil pessoas, detidas em delegacias de polícia a espera de julgamento, tendo considerado que “la presencia de adolescentes y enfermos en establecimientos policiales y/o en comisarias superpobladas de la Provincia de Buenos Aires era susceptible de configurar un trato cruel, inhumano o degradante u otros análogos y generar responsabilidad del Estado Nacional, con flagrante violación a los principios generales de las Reglas Mínimas para el tratamiento de reclusos de las Naciones Unidas.”
No caso similar que pende de exame pelo Supremo Tribunal Federal, deferiu-se um provimento liminar para fazer cessar a internação de adolescentes nas unidades que já se encontrassem com a capacidade atingida. Não se engessou os destinatários da decisão com a adoção compulsória de medidas concretas, como a determinação de construção de novas unidades e disponibilização de novas vagas; tão somente se impediu o que parece óbvio: se um estabelecimento destinado à recepção de seres humanos foi projetado e construído para receber 100 pessoas não se pode admitir que aí se internassem 140 ou 180. Pessoas em formação não são objeto e sim sujeitos de direitos, mesmo que se encontrem imputados de condutas em confronto com a lei; ao eventualmente considerado o pior dos piores não se pode destinar nada menos, no plano dos direitos fundamentais e da dignidade humana, daquilo que se atribui ao eventualmente considerado ao melhor dos melhores; uma verdadeira sociedade republicana não faz distinções desumanizadoras. Impõe limites e deveres, no entanto esse múnus não transforma estabelecimentos de internação em depósitos inumanos.
Com a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB) o legislador procurou chamar a atenção do intérprete para os efeitos das decisões evitando que interpretações jurídicas dissociadas da realidade conduzam a resultados que somente produzam ainda mais a insegurança jurídica. As informações solicitadas e trazidas ao processo pelos destinatários da ordem, os argumentos apresentados pelos amici curiae e a segura constatação de não se tratar de cenário episódico, mas de permanente superlotação, demandou uma solução em caráter liminar. Não se determinou a libertação indiscriminada de infratores, mas sim a adoção de medidas que preservem a dignidade da pessoa humana, razão primeira da existência do catálogo de direitos inserido na Constituição da República.
A concessão da medida que impede a superlotação nas instituições socioeducativa tem como foco a proteção da dignidade humana dos adolescentes, sem ingressar na complexa seara das soluções que cabem aos demais poderes das unidades da federação. Eis um debate relevante, a merecer a atenção de todos que são capturados pelo compromisso da esperança numa sociedade justa e responsável. Ao Judiciário, na autocontenção e nos limites que são próprios, impende manter-se dentro do ordenamento jurídico, sem ir além de seus afazeres nem ficar aquém de seus deveres.