Por Alneir Fernando S. Maia -
A Lei nº 13.964/2019, conhecida como lei "anticrime" ou pacote "anticrime", entrou em vigor em janeiro de 2020. Não podemos deixar de considerar que 2020 foi um ano atípico, tendo em vista a pandemia da Covid-19. Em 2021 a lei fez um ano de vigência. Que balanço podemos fazer dessa lei?
Nesse período de um ano o que houve de mudança? Qual a posição da jurisprudência acerca de determinados pontos? A lei atendeu à finalidade que foi propagada pelo legislador quando de sua edição?
Algumas dessas questões serão expostas rapidamente nessa reflexão.
O pano de fundo da lei "anticrime" foi a diminuição da criminalidade no país, através do endurecimento de vários pontos ligados ao Direito Penal e à execução de pena. Já na parte processual penal a lei apresentou pontos de abrandamento.
Mas fato é que a violência e os crimes graves não reduziram em razão da edição da lei. Mesmo com a pandemia, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), o primeiro semestre de 2020 teve alta de 7,3% no volume de mortes violentas intencionais, em comparação com o mesmo período do ano anterior. Nos seis primeiros meses de 2020, foram registradas 25.699 ocorrências de mortes violentas (Anuário Brasileiro de Segurança Pública).
Dessa forma, o advento da lei não arrefeceu, em tese, a ocorrência de delitos.
Então para que serviu a lei "anticrime" afinal? O que pensar dela?
Na verdade, ela aumentou o encarceramento, pois a pena máxima a ser cumprida no país passou de 30 para 40 anos. Ou seja, mais pessoas ficarão presas por mais tempo. Some-se a isso o fato de que a progressão de regime ficou mais difícil em relação a alguns crimes (hediondos, por exemplo), tendo em vista os percentuais de cumprimento de pena trazidos pela lei para a mudança (abrandamento) de regime.
E como estão sendo decididas pelos tribunais algumas questões que sofreram interferência pela lei "anticrime"?
Duas regras benéficas trazidas pela lei ainda não entraram em vigor e estão judicializadas. Uma delas é a criação do juiz de garantias, com o acréscimo dos artigos 3ª-A a 3º-F ao CPP. Esse juiz seria o responsável pela primeira fase da persecução penal, garantindo ao investigado maior isenção e verificação de possíveis abusos na fase investigativa. Sem falar que o juiz de garantias não seria o mesmo juiz que apreciaria as provas na instrução. A outra medida é a exigência de realização de audiência de custódia no prazo máximo de 24 horas após a prisão em flagrante, conforme nova redação dada ao artigo 310 do CPP. Ambas as determinações da lei estão suspensas por liminar do Supremo Tribunal Federal — ministro Luiz Fux, relator das Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305. Nos resta aguardar. Essa discussão já era para ter sido finalizada!
Um dos pontos mais frequentes de discussão nos tribunais após a edição da lei "anticrime" é a prisão cautelar. Nos termos da redação conferida ao artigo 315 do CPP, a segregação provisória exige expressamente que a imposição de preventiva ou de qualquer outra prisão cautelar deve estar fundamentada em motivação concreta relacionada a fatos novos ou contemporâneos e na demonstração da imprescindibilidade da medida restritiva.
O STJ, na 6ª Turma, tem aplicado o princípio da contemporaneidade, ou seja, há que existir fato contemporâneo a justificar a prisão. Do contrário, a segregação não se justifica (HC nº 553.310).
Em relação à "conversão" do flagrante em preventiva, o STJ tem entendido não ser possível. Essa prisão somente é cabível, segundo a 5ª Turma, mediante manifestação das partes, do Ministério Público ou da autoridade policial (HC 590.039), como reflexo direto da lei "anticrime", portanto.
Situação que mudou muito pouco nos tribunais é a revisão da prisão preventiva a cada 90 dias. Vê-se, na prática, que essa parte da lei não tem sido devidamente aplicada, com prisões provisórias se estendendo por longo tempo. Além disso, o STJ tem decidido no sentido de que a obrigação de rever a preventiva a cada período de 90 dias vale apenas para o juiz ou o tribunal que impuser a segregação provisória.
Sobre o livramento condicional, o STJ vem decidindo no sentido de que o não cometimento de falta disciplinar grave nos 12 meses anteriores permite a concessão do benefício (a Súmula 441 do STJ reconhece que a falta grave não interrompe o prazo para a obtenção de livramento condicional). Os julgados do STJ são no sentido também de que, além do período de um ano sem falta grave, a Lei nº 13.964/2019 demanda a existência de circunstâncias pessoais favoráveis para se autorizar o benefício do livramento.
Em relação ao acordo de não persecução penal, que foi introduzido na norma "anticrime", fica a discussão de quando e como ele deve ser oferecido.
Até a presente data não se tem uma definição precisa. O STF irá decidir a questão com repercussão geral no HC nº 185913, cujas dúvidas são as seguintes: a) o ANPP pode ser oferecido em processos já em curso quando do surgimento da Lei 13.964/19? Qual é a natureza da norma inserida no artigo 28-A do CPP? É possível a sua aplicação retroativa em benefício do imputado?; b) é potencialmente cabível o oferecimento do ANPP mesmo em casos nos quais o imputado não tenha confessado anteriormente, durante a investigação ou o processo?
Já no STJ a situação é a seguinte sobre o ANPP: a 6ª Turma afetou a matéria para julgamento na Terceira Seção (HC nº 596.340). A 5ª Turma, por sua vez, vem firmando a tese de que a retroatividade do acordo de não persecução penal só é válida se a denúncia não tiver sido recebida (AgRg no REsp 1.886.717).
Como se trata de uma norma que comporta conteúdo material, não apenas processual, deve retroagir por ser o acordo de não persecução penal benéfico ao réu. Em qualquer fase do processo, salvo melhor juízo.
De qualquer forma, sobre o ANPP, na prática temos visto o Ministério Público, sem o menor lastro indiciário, oferecer o benefício ora impondo algumas regras abusivas (mesmo em se tratando de um acordo), ora oferecendo o benefício em situações com feição muito mais cível do que penal, ora tentando se livrar de denunciar e instruir um processo.
Já no HC nº 610.201, a 3ª Seção do STJ está começando a decidir sobre a retroatividade da lei "anticrime" sobre o delito de estelionato, que hoje, com a edição da lei, pressupõe representação da vítima. Entre as turmas do STJ há divergência. Para a 5ª Turma, a mudança legislativa não pode ser aplicada aos processos em que o Ministério Público já ofereceu denúncia. Em outro sentido, a 6ª Turma decidiu, por unanimidade, pela retroatividade da exigência de representação da vítima em todos os processos por estelionato ainda não transitados em julgado, mas sem a extinção automática da punibilidade naqueles em que o ofendido não tenha se manifestado favoravelmente à persecução penal. A questão é que a lei, antes da mudança, não exigia essa representação. Daí a necessidade de um entendimento uniforme sobre o tema.
O ano de 2020 foi atípico por tudo que passamos sob o ponto de vista sanitário, temos que aguardar mais um tempo para o devido assentamento do entendimento sobre os reflexos da lei "anticrime" e torcer para que seus preceitos tenham a melhor e mais justa interpretação possível.