AMORTIZAÇÃO DO ÁGIO, MULTA QUALIFICADA E REPERCUSSÕES PENAIS

Por Frederico Pompeo Parreira - 

1) Amortização do ágio

Na década de 1990, para atrair capitais estrangeiros ao programa de privatização das estatais, o Estado brasileiro tornou possível deduzir, como despesa, a amortização de ágio, com fundamento na rentabilidade futura, nos casos de incorporação, fusão ou cisão (artigos 7º e 8º da Lei 9.532/1997). Desde então, grandes empresas têm utilizado esse expediente como método de planejamento tributário. Sem dúvida, essa matéria é uma das mais debatidas nos julgamentos do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), questionando-se a sua dedutibilidade na apuração do Imposto de Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ) e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) .

O Carf entende que só existe ágio válido quando as operações são feitas entre partes independentes e se comprovado o respectivo gasto financeiro. Ou seja, as operações não podem ser entre partes vinculadas (intragrupo) .

Schoueri e Pereira discordam dessa visão da Receita, defendendo que há casos de aquisição com ágio de empresas do mesmo grupo em que existe o efetivo pagamento. Entendem que o Carf deve apenas efetuar o controle de legalidade do ato, não devendo extrapolar e anular operações contratuais legítimas .

O contribuinte tem liberdade para conduzir suas atividades econômicas, com base na livre iniciativa, prevista no artigo 170 da Constituição Federal de 1988. Dessa forma, ninguém é obrigado a optar por uma reorganização societária que represente maior ônus fiscal .

O Carf tem aplicado a teoria do propósito negocial, estabelecendo que o planejamento tributário só é válido se respeitar a lei, tiver um propósito econômico subjacente e não pretender apenas a redução da carga tributária. Como se sabe, o auditor fiscal tem competência para examinar os fatos que ocorreram, eventualmente desconsiderando um negócio jurídico se ele estiver eivado de fraudes, caso em que exigirá o tributo devido com os respectivos acréscimos legais .

A reestruturação societária ocorre principalmente por incorporação, fusão e cisão. A incorporação é a operação pela qual uma ou mais sociedades são absorvidas por outra, que lhes sucede em todos os direitos e obrigações. Cisão é a operação pela qual a companhia transfere parcelas do seu patrimônio para uma ou mais sociedades. No procedimento de incorporação ou cisão, o ágio apurado poderá ser amortizado como despesa, reduzindo-se a base de cálculo do IRPJ e CSLL, no mínimo, em 60 meses .

A Lei 12.973/2014 trouxe algumas inovações, entre as quais, a restrição ao aproveitamento do ágio em operações realizadas entre partes subordinadas e a necessidade de elaboração de laudo de avaliação por peritos independentes .

2) Aplicação de multa qualificada e as repercussões penais

A princípio, no caso de não pagamento de tributo, incide a multa de mora, prevista no artigo 61 da Lei 9.430/96, limitada a 20%. Mas há previsão de outros tipos de multa no artigo 44 da Lei 9.430, no caso de lançamento de ofício. A multa qualificada é aquela exigida na proporção de 150% do valor do débito nos casos de sonegação, fraude e conluio (artigos 71, 72 e 73 da Lei 4.502/1964), independentemente da aplicação de outras penalidades administrativas ou criminais cabíveis. Nos casos de ágio irregular pode ser aplicada multa qualificada. Nesses casos, também haverá representação fiscal para fins penais, remetida ao Ministério Público, para verificar a eventual prática de crime .

A multa qualificada é aplicada pelo fato de a Receita entender que, no caso, há indícios de crime contra a ordem tributária. Assim, depois de findo o julgamento no Carf, o processo é remetido ao Ministério Público Federal, o qual apresentará denúncia ou não, de acordo com sua prudente avaliação.

Sonegação é toda ação ou omissão dolosa tendente a impedir ou atrasar o conhecimento, por parte do Fisco, da ocorrência do fato tributário. O conluio, por sua vez, é a combinação, a cumplicidade, visando a fraude. Cabe ao Fisco provar o nexo entre a conduta ilícita e a sonegação, a fraude ou o conluio. O Fisco deve provar o dolo, não sendo possível presunção nesses casos. É necessária a produção de provas inequívocas de que tenha ocorrido pelo menos uma das condutas referidas nos artigos 71, 72 e 73 da Lei 4.502/64. A conduta deve ser individualizada para que a multa qualificada seja aplicada. Nisso se aproxima muito do que é exigido no próprio âmbito penal .

Assim, a multa qualificada deve ser aplicada só nos casos de omissão intencional (dolosa) do sujeito passivo. Não basta apurar mera omissão de receita ou de rendimentos .

Se o contribuinte omite informação, ou presta declaração falsa ao Fisco, tal como previsto no inciso I, do artigo 1º da Lei 8.137/1990, de maneira dolosa, poderá ser enquadrado no crime de sonegação já que estará impedindo ou retardando o conhecimento da ocorrência do fato gerador da obrigação tributária, tal como previsto no artigo 71 da Lei 4.502/1964. Como já foi dito, é imprescindível que exista o dolo do agente, no intuito de não prestar declaração ou prestá-la com erro e, dessa maneira, suprimir ou reduzir determinado tributo .

Como o artigo 1 da Lei 8.137/90 em momento algum aceita que as condutas previstas possam ser culposas, elas, então, devem necessariamente ser dolosas .

Por outro lado, se o contribuinte comete a fraude, prevista no artigo 72 da Lei 4.502/1964, também buscará inserir informações, em suas declarações fiscais, que omitam a situação tributária. Em outras palavras, todos os incisos I a V do artigo 1 da Lei 8.137/1990 envolverão a sonegação, pois implicam na conduta de o contribuinte impedir ou retardar o conhecimento, por parte da autoridade fazendária, da ocorrência do fato gerador .

Entretanto, se um contribuinte segue orientações jurídicas sobre a legalidade da prática de determinadas operações, é possível dizer que ele atua de boa-fé. Nesse caso, não se aplica multa qualificada e não há crime contra a ordem tributária, pois há falta de consciência na atitude de lesar o Fisco. A sonegação, a fraude e o conluio são condutas que exigem o dolo para sua configuração, tanto na esfera criminal, como na tributária. A multa qualificada deve ser aplicada apenas em situações excepcionais .

No processo judicial penal 5032649-10.2020.4.03.0000, o Tribunal Regional Federal da 3° Região aborda as seguintes questões: ágio interno (entre empresas do mesmo grupo), multa qualificada e crime de sonegação .

Trata-se de um Habeas Corpus, com pedido de liminar, que questiona a instauração de inquérito policial, mediante requisição ministerial. O pedido de abertura de inquérito baseou-se em representação fiscal para fins penais e visa a apurar a suposta prática do crime tributário (artigo 1º, I e II da Lei n. 8.137/90), cometido pelos representantes legais da empresa.

No entender dos impetrantes, a investigação careceria de justa causa, uma vez que não estaria exaurida a via administrativa quanto à pena de multa qualificada, como exige a Súmula Vinculante 24 do Supremo Tribunal Federal. Os impetrantes contestam ainda o entendimento da Receita de que teria ocorrido amortização indevida de ágio em investimentos, com a consequente supressão do pagamento dos tributos IRPJ e CSLL. Prosseguem dizendo que não ficou caracterizada fraude, ocultação ou dissimulação na reestruturação societária. Pediram a suspensão do inquérito policial até que fosse decidido o mérito da ação anulatória de débito fiscal, por se tratar de questão prejudicial.

O TRF-3 discordou de todas as alegações dos impetrantes, tendo em vista que o Carf manteve a glosa do ágio referente à aquisição da empresa e restabeleceu a multa qualificada de 150%. O TRF-3 entendeu ainda que já houve o encerramento do processo administrativo fiscal, com a constituição definitiva do crédito tributário, existindo inclusive execução fiscal ajuizada e representação para fins penais. Cabe agora, na esfera penal, apenas a verificação da existência de fatos delituosos.

Desse modo, foi respeitada a Súmula Vinculante 24 do Supremo Tribunal Federal, a qual determina o encerramento do processo administrativo e a constituição do crédito tributário, como condição necessária para o aperfeiçoamento da tipicidade material do crime de sonegação (artigo 1º, da Lei 8.137/90).

A decisão do TRF-3 concluiu ainda que não há justificativa para a suspensão do inquérito policial em comento, já que a existência de ação cível anulatória do crédito tributário não impede o prosseguimento do inquérito policial ou até mesmo eventual oferecimento de denúncia, em respeito à independência das esferas cível e criminal.

 

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