Rafael Damaceno De Assis
1. DIANTE DO PRINCÍPIO DO NON BIS IN IDEM.
A
discussão doutrinária acerca da constitucionalidade do instituto da
reincidência criminal decorre da violação de princípios vigentes no ordenamento
quando considerado aquele instituto como circunstância agravante na fixação da
pena. Apresentam-se os fundamentos dessa premissa e os entendimentos
doutrinários pertinentes, bem como a posição defendida neste trabalho. De
início, abordaremos o modelo constitucionalista adotado no país, que legitima a
criação das demais leis.
A
Constituição Federal apresenta-se como a positivação de valores econômicos,
políticos e sociais, ou seja, é o conjunto de normas que disciplinam quais leis
materiais serão produzidas pelo legislador infraconstitucional. Para tanto, a
fim de se alcançar a real intenção, a eficácia do preceito emanado da norma
hierárquica superior, é preciso valer-se do ramo da ciência jurídica conhecido
como “hermenêutica”, que visa estudar e sistematizar os princípios e regras de
interpretação do Direito.
A partir
do estudo dessa ciência, pode-se inferir que a interpretação é a atividade
prática de revelar o conteúdo, o significado e o alcance de uma norma, tendo
por finalidade fazê-la incidir em um caso concreto. A aplicação de uma norma
jurídica, por sua vez, é o momento final do processo interpretativo, sua
concretização pela efetiva incidência do preceito sobre a realidade de fato.
A
interpretação constitucional ainda exige a aplicação do que seria o instituto
da construção. Isso porque, por sua natureza, uma Constituição possui
normas com elevado caráter de abstração, visto destinar-se a alcançar situações
que não foram expressamente contempladas ou detalhadas no texto. Sendo assim, a
construção significa tirar conclusões a respeito de matérias que estão fora
e além das expressões contidas no texto e dos fatores nele considerados. São
conclusões que se colhem no espírito, embora não na letra da norma (BARROSO,
2004, p. 104).
Essas
normas consideradas abstratas não especificam a conduta a ser seguida e se
aplicam a um conjunto amplo, por vezes indeterminado, de situações. São os
denominados “princípios”. A obra de Celso Ribeiro Bastos aponta uma noção
elementar ao conceituar princípio:
Princípio
é, por definição, o mandamento nuclear de um sistema, seu verdadeiro alicerce [...] é
disposição fundamental que irradia sobre diferentes normas, servindo de
critério para sua exata compreensão e inteligência (BASTOS, 2001, p. 58).
Os princípios
contêm, então, maior carga valorativa, um fundamento ético, uma visão política
relevante, e indicam uma determinada direção a seguir. Assim, em virtude do
caso concreto, o intérprete deverá fazer escolhas fundamentadas, ponderando sua
aplicação com vistas a respeitar a vontade da Lei Maior. Suas funções são desta
forma descritas pela Professora Ada Pelegrini:
Considerando
os escopos sociais e políticos do processo e do Direito em geral, além de seu
compromisso com a moral e a ética, atribui-se extraordinária relevância a
certos princípios que não se prendem à técnica ou à dogmática jurídicas,
trazendo em si seríssimas conotações éticas, sociais e políticas, valendo como
algo externo ao sistema processual e servindo-lhe de sustentáculo legitimador (CINTRA;
DINAMARCO; GRINOVER, 2002, p. 50).
Então, os
princípios constitucionais são aqueles que guardam os valores fundamentais da
ordem jurídica, regendo, por conseqüência, todas as disposições positivadas no
ordenamento, alcançando todos os ramos do Direito, devendo os postulados do
Direito Penal obedecer às premissas pilares apresentadas na Constituição
Federal.
Portanto,
a legislação infraconstitucional penal deve adequar-se à Lei Maior para evitar
o desrespeito aos valores do ordenamento, proporcionando à coletividade maior
segurança jurídica. Sendo assim, a positivação do instituto da reincidência
criminal deve atentar para esse parâmetro. Muitos doutrinadores apontam afronta
ao texto constitucional quando a majoração da pena confronta-se com a disposição
contida no art. 5º, XXXVI, que dispõe sobre a “coisa julgada”.
No
entanto, para adentrar o mérito da discussão, faz-se necessário apontar os
fundamentos existentes para justificar o aumento da sanção penal em
conseqüência de haver o delinqüente praticado um novo ilícito depois de ter
sido condenado em definitivo por outro delito. As principais teorias são:
a) O
aumento da pena se justifica porque a reincidência demonstra ser o delinqüente
portador de maior “periculosidade”, aqui entendida como maior possibilidade de
o indivíduo praticar novamente um ilícito, sendo, pois, necessária em defesa da
sociedade contra o infrator.
Há
severas críticas a esse entendimento, principalmente as apresentadas por
Zaffaroni. Para ele, essa “periculosidade presumida” – que jamais poderia ser
assim entendida, tendo em vista que, para se fazer tal valoração, é necessária
uma situação fática – não pode ser apresentada juris et de juri porque,
se assim fosse, estar-se-ia admitindo a presença de um fato quando esse fato
não existe, o que seria uma ficção. Ainda para o citado estudioso, nada faz
presumir ser mais provável que venha a praticar um delito de emissão de cheques
sem fundos quem antes causou um homicídio culposo com seu veículo, do que
aquele que nada fez até então (ZAFFARONI, 2001, p. 838-839).
Reproduz-se
agora a lição dos doutrinadores Newton Fernandes e Valter Fernandes, estudiosos
da ciência da criminologia, que admitem a existência de uma periculosidade
ínsita a esses indivíduos, mas que, com a devida vênia, não pode prosperar:
Habita,
nesses delinqüentes recidivantes empedernidos, uma força compulsiva, um
potencial explosivo, endógeno, liberado por um processo verdadeiramente
mórbido. Eles são dotados de um poder irreversível de praticar o mal. Neles não
existe qualquer traço de simpatia humana, não existe qualquer noção de dever
para com a comunidade. O regramento social nada lhes diz. Eles são uns
desengajados afetivos, aferrados a um passado indigno e sem pretensões
salutares em seu horizonte futuro. São marginais destituídos de consciência,
que vivem e gravitam em torno de abjeções e maldades, delinqüindo mais por
instinto do que por cálculo. São criminosos por tendência. Forjados no vício,
no crime e no cometimento do mal, nenhum impulso pode movê-los em direção ao
bem. São portadores de manifesta periculosidade social, e seus desvios já foram
sobejamente pesquisados e atestados pelos criminologistas (FERNANDES,
2002, p. 345-346).
Não
obstante as posições conservadoras, há, por parte de alguns magistrados, a
moderna concepção de repúdio ao instituto da reincidência criminal. Nessa
linha, Amilton Bueno de Carvalho proferiu decisão:
Ementa:
Habeas corpus. Prisão preventiva. Requisitos legais. Presunção de
periculosidade pela probabilidade de reincidência. Inadmissibilidade. A
futurologia perigosista, reflexo da absorção do aparato teórico da Escola
Positiva que, desde muito, têm demonstrado seus efeitos nefastos: excessos
punitivos de regimes políticos totalitários, estigmatização e marginalização de
determinadas classes sociais (alvo do controle punitivo), tem acarretado a
proliferação de regras e técnicas vagas e ilegítimas de controle social no
sistema punitivo, onde o sujeito considerado como portador de uma perigosidade
social, da qual não pode subtrair-se, torna-se presa fácil ao aniquilante
sistema de exclusão social. A ordem pública, requisito legal amplo, aberto e
carente de sólidos critérios de constatação (fruto desta ideologia
perigosista), portanto, antidemocrático facilmente enquadrável a qualquer
situação, é aqui genérica e abstratamente invocada, mera repetição da lei, já
que nenhum dado fático, objetivo e concreto, há a sustentá-la. Fundamento
prisional genérico, anti-garantista, insuficiente, portanto! A gravidade do
delito, por si só, também não sustenta o cárcere extemporâneo: ausente previsão
constitucional e legal de prisão automática por qualquer espécie delitiva.
Necessária, e sempre, a presença dos requisitos legais (apelação-crime
70006140693, j. em 12/03/2003). À unanimidade, concederam a ordem. (Habeas
corpus nº 70006140693, quinta câmara criminal, Tribunal de Justiça do RS,
relator: Amilton Bueno de Carvalho, julgado em 23/04/2003) (CARVALHO,
2005).
b)
Preconizada por Francesco Carrara, o aumento da pena deve ser justificável porque
houve, por parte do delinqüente já condenado, uma insensibilidade, um desprezo
pela primeira reprimenda aplicada. Dessa forma, se a primeira condenação não
foi suficiente para reforçar os mecanismos de contramotivação do autor, faz-se
necessário reforçar a condenação pelo segundo delito (ZAFFARONI, 2001, p. 839).
Nessa
linha de pensamento, pode-se citar o doutrinador brasileiro Júlio Fabrini
Mirabete (2004, p. 301-302: [...] a exacerbação da pena justifica-se
plenamente para aquele que, punido anteriormente, voltou a delinqüir,
demonstrando com sua conduta criminosa que a sanção normalmente aplicada se
mostrou insuficiente para intimidá-lo ou recuperá-lo.
No
ordenamento pátrio há a exacerbação da pena para um crime com sentença
transitada em julgado, inocorrendo ofensa ao princípio do non bis in idem.
Dispõe nesse sentido a Súmula 241 do STJ: reincidência penal não pode ser
considerada como circunstância agravante, e simultaneamente, como circunstância
judicial.
Há
exemplo de aplicação da regra transcrita, dando-se legitimidade aos magistrados
para a agravação da sanção imposta na sentença:
Reincidindo
o réu na prática do mesmo delito, inaceitável, sob pena de lesão a princípios
da lógica criminal, ser o agente punido quando da segunda infração, com reprimenda
menos rigorosa do que a aplicada por ocasião da primeira (TACRIM-SP
– Ver – Rel. Francis Davis – JUTACRIM 22/41). (FRANCO, 2001, p. 1031).
Entretanto,
com relação aos ordenamentos que adotam a reincidência ficta, ou seja, aquela
em que é desnecessário o efetivo cumprimento da pena, como se pode inferir que
o autor do ilícito se apresentará indiferente à sanção que o Estado lhe
aplicará? Ainda, na reincidência real, sabe-se que a pena, que deveria
desmotivar o sujeito e reinseri-lo na vida em sociedade é, antes disso, fator
que seleciona e grava na sua personalidade o rótulo de “desviado”.
c) Em
razão das políticas criminais, e diante da ideologia do Estado garantidor da
ordem social e da segurança jurídica, à medida que o delinqüente retorna à criminalidade
é afetada a imagem do Estado, sendo, portanto, plenamente concebível a elevação
da sanção. Diante dessa concepção, haveria um maior conteúdo do injusto do fato
porque afetaria dois bens jurídicos: o delito cometido depois de um primeiro e
a imagem do Estado, que estaria sendo denegrida, negando-se pelo novo ilícito
sua autoridade e organização, representadas pela advertência contida na
sentença condenatória.
Apesar
dessas posições doutrinárias legitimando a majoração obrigatória da pena, há outros¹ estudiosos que vêem nessa exacerbação uma ofensa ao princípio
do non bis in idem, que consiste numa garantia penal porque veda a dupla
incriminação, ou seja, não se pode punir alguém duas vezes pelo mesmo fato.
Encontra-se positivado no art. 8º, item n. 4, da Convenção Americana sobre
Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica): O acusado absolvido por
sentença passada em julgado não poderá ser submetido a novo processo pelos
mesmos fatos (BRASIL, 1992, DL n. 678).
Os
adeptos dessa posição argumentam que a pena maior imposta na condenação pelo
segundo delito decorre do primeiro, pelo qual o indivíduo já havia sido julgado
e condenado, violando a intangibilidade da coisa julgada preconizada no art.
5º, XXXVI, da Constituição Federal. Dessa forma, quando o juiz agrava a pena na
sentença posterior, está, em verdade, aumentando o quantum da pena do
delito anterior, e não elevando a pena do segundo crime.
Ainda se
pode argumentar nesse sentido com a ofensa aos postulados da legalidade e da
proporcionalidade. Tendo em vista que cada infração penal possui em seu tipo o
mínimo e o máximo da sanção correspondente, não pode o mesmo delito ser punido
várias vezes, ou a sanção de um estender-se ao outro. O princípio da legalidade
antes referido não admite, em caso algum, imposição de pena superior ou
distinta da prevista e assinalada para o ilícito.
Não
compreendem como uma pessoa possa, por mais vezes, ser punida pela mesma
infração. O fato criminoso que originou a primeira condenação não pode, depois,
servir de fundamento a uma agravação obrigatória da pena em relação a outro
fato delitivo, a não ser que se admita um Direito Penal atado ao tipo de autor
(ser reincidente), atitude contrária à lógica democrática deste Estado. Ainda,
aplicada a pena ao caso concreto, encerra-se o poder punitivo do Estado², significando que, se o infrator “pagou” à coletividade, não
pode ser novamente sancionado pela agravante no lapso de cinco anos que
corresponde à reincidiva.
De forma
mais ponderada, Luiz Vicente Cernicchiaro tende a considerar a
constitucionalidade do instituto, desde que sua interpretação seja modificada
(relativização da reincidência, não a considerando como majorante obrigatória).
Nesse sentido, a reincidência não deve ser agravante da pena com base em dados
meramente objetivos, devendo ser analisada no contexto de um sistema
principiológico, legitimada pelo princípio constitucional da individualização
judicial da pena (art. 5º, XLVI, Constituição Federal). Caberia ao juiz
considerar as circunstâncias do caso concreto para decidir a necessidade da
agravante. Assim:
[...] só
há uma forma de conciliar a [reincidência] à Constituição: conjugar os crimes [...]
somente poderá agravar a pena se entre os delitos houver conexão que
recomende recrudescer a sanctio iuris [...] há de ser analisada pelo
juiz; decidirá ser ou não, no caso em julgamento, causa de majoração da pena (CERNICCHIARO,
1996, p. 298).
A
jurisprudência atualmente utiliza-se dessa relativização ao aplicar o contido
no art. 44, § 3º, do Código Penal (substituição da pena privativa de liberdade
por penas restritivas de direitos). A Lei n. 9.714/98 reinseriu no ordenamento
o conceito de reincidência específica, não possibilitando aos indivíduos por
ele abrangidos a concessão do referido benefício. Porém há julgados entendendo
que, na análise do caso concreto (por exemplo, tipo de delito, ofensa ao bem
jurídico), ao se proceder a uma interpretação não-literal da norma, a medida
pode ser aplicada desde que socialmente recomendável, em razão do postulado
penal da aplicação da sanção penal somente em ultima ratio.
Nos
países europeus, como Portugal e Itália, essa forma de aplicação do instituto
recebe a denominação de “reincidência facultativa”, ao passo que a
Alemanha, em 1986, e a Colômbia, em seu Código Penal de 1980, extinguiram-na do
ordenamento.
2. DIANTE DO DESENVOLVIMENTO DA CIÊNCIA PENAL (FUNÇÕES DA PENA).
2.1 INTRODUÇÃO: TEORIAS DA PENA.
Para se
analisar as conseqüências da aceitação do instituto da reincidência criminal no
ordenamento pátrio, torna-se necessário o estudo do conceito de pena, bem como
sua criação e a função a que se destina. Neste tópico, propõe-se a demonstração
de que a ineficácia da pena de prisão pode ser correlacionada à elevada taxa de
reincidência no país.
Para definir
“pena”, Manoel Pedro Pimentel, em sua obra O crime e a pena na atualidade, cita
o doutrinador Aníbal Bruno: [...] no seu sentido propriamente jurídico, a
pena é a reação que uma comunidade politicamente organizada opõe a um fato que
viola uma das normas fundamentais de sua estrutura e, assim, é definido na lei
como crime (PIMENTEL, 1983, p. 176).
A
legitimação dada ao Estado para que exercite o direito-dever de punir encontra
base na teoria elaborada por Rousseau, segundo a qual o indivíduo firma um “contrato
social” com a coletividade, tendo em vista a necessidade de uma força superior
que coordene as vontades singulares em nome da vontade geral, havendo, pois,
uma renúncia ao estado de liberdade de todos os indivíduos em favor do
bem-estar social. Assim, para que efetivamente prevaleça esse bem-estar, o jus
puniendi surge como manifestação do Estado para garantir a coexistência de
seus membros.
Para que
o Direito sirva às pretensões dos indivíduos, o ramo específico da ciência
penal utiliza-se da pena como o instrumento principal para a consecução de seus
fins. Funda-se, então, a legitimidade da pena na imprescritibilidade de sua
existência para que o agregado social possa subsistir [...] a razão que
a impõe é a necessidade (PIMENTEL, 1983, p. 176).
Importará
agora apresentar as teorias existentes sobre a finalidade da pena, enfatizando
qual seria sua função no Estado democrático de Direito diante dos parâmetros e
fundamentos encontrados no texto constitucional.
Retornando
aos primórdios do Direito Penal, a pena era entendida como vingança, ou seja,
como castigo, já que este seria um mal imposto a uma pessoa com uma intenção
diretamente voltada ao mal, em razão de alguma ação que praticou, ou deixou de
praticar. Classificava-se a pena, então, em privada – quando a reação do
ofendido pelo mal causado era, além de um direito, um dever moral diante da
coletividade; e pública – em que a reação de vingança haveria de ser exercida
pela própria coletividade ou por quem a representasse (por exemplo, o chefe da
tribo). Pode-se concluir que no período da vingança a forma primária de reação
penal foi marcada pela autotutela e pela ausência de proporção entre o mal
sofrido e a reação (BARROS, 2001, p. 50).
Para
evitar o contínuo enfraquecimento do grupo social mediante a imposição das
“vinganças”, surgiu como norma limitativa a Lei de Talião, considerada como um
grande progresso moral e jurídico, justamente porque impôs uma medida à reação
pela vindita defensiva (máxima: “olho por olho, dente por dente”).
As transformações
pelas quais passou o sistema de punição estiveram relacionadas com as diversas
fases do desenvolvimento econômico e social dos povos. Dessa forma, o
mercantilismo e o expansionismo colonial trouxeram consigo o implemento das
penas de trabalho forçado devido à necessária demanda por mão de obra.
Posteriormente,
da Idade Média até o Iluminismo, prevaleceram os suplícios, os castigos cruéis,
o sofrimento físico e a exposição pública da punição e do sofrimento,
orientando o sistema penal pela idéia de temor e intimidação. Com o advento do
Iluminismo, buscaram-se alternativas mais humanistas ao sistema punitivo, tendo
em vista que os séculos XVII e XVIII foram marcados por aflições físicas,
torturas e pelo degradante espetáculo público do delinqüente. Como expoente
dessa nova filosofia de aplicação da pena surge o marquês Cesare de Beccaria,
visando proporcionar a sanção na medida do ilícito cometido, tendendo a
racionalizar e delimitar o poder punitivo. A partir de então, surgem teorias
visando explicar qual o sentido da sanção, ou seja, por que se faz necessária a
privação da liberdade de alguns indivíduos.
Pode-se
classificar em três ordens as teorias da pena: absoluta ou retributiva,
relativa ou utilitária e mista.
Informa a
teoria retributiva que a pena é concebida como um castigo, uma reparação, ou
seja, um fim em si mesma. Isso porque sua função é a retribuição, a expiação do
mal pelo mal, bastando que o injusto e a culpabilidade sejam compensados,
eqüitativa e proporcionalmente, não buscando alcançar qualquer fim, mas apenas
a realização da justiça e a reafirmação do Direito. Isso significa dizer que,
com a aplicação da pena, consegue-se a concretização da justiça, que exige,
frente ao mal causado, um castigo que compense esse mal e retribua, ao mesmo
tempo, o seu autor. Nas palavras de Salomão Shecaira (2002, p. 130), a pena,
então, se torna uma necessidade para assegurar a restauração da ordem
jurídica violada. É uma retribuição à perturbação dessa ordem tutelada e se
fundamenta no livre-arbítrio, ou seja, na capacidade de cada cidadão de
distinguir o lícito do ilícito, o justo do injusto.
A
doutrina moderna sustentada nos pilares constitucionais de um Estado
democrático de Direito critica essa finalidade da sanção porque desrespeita o
princípio da dignidade humana ao proporcionar ao autor apenas a retribuição do
mal causado.
Para a
teoria relativa ou utilitária, a pena tem um fim em si mesma, isto é, a razão
de ser e sua função consiste em dissuadir, seja os integrantes da sociedade,
indistintamente (prevenção geral), seja o condenado, em particular (prevenção
especial), pela perpetração de novos delitos. Dessa forma, assim como na teoria
absoluta, a pena é um mal necessário, não somente para a realização da justiça,
mas também pela função que tem de inibir, tanto quanto possível, a prática de
novos ilícitos. Carmen Silva de Moraes Barros, citando Claus Roxin, também
dispõe nesse sentido: [...] a diferença entre as teorias está em que a
retribuição serve apenas à idéia de Justiça e abstrai de todos os fins sociais,
enquanto que as doutrinas preventivas, pelo contrário, prosseguem
exclusivamente a fins sociais, quer se vejam estes na integração social do
agente, na intimidação dele, na segurança da sociedade perante ele ou na
atuação sobre a generalidade das pessoas (BARROS, 2001, p. 56).
Pode ser
classificada em prevenção geral ou especial. Pela primeira, os efeitos da pena
alcançam os indivíduos de modo geral à medida que observam a atuação do Estado
na punição do infrator (prevenção geral negativa). Destina-se, pois, aos
“infratores potenciais”, porque a utilidade da pena consiste na intimidação ou
dissuasão provocada pela mensagem (ameaça) contida na lei penal,
desmotivando-os para a realização de ilícitos ao infundir-lhes um sentimento de
respeito às leis. De outra forma, apresenta também a função de afirmar a
validade da norma, resultando em maior confiança dos cidadãos no ordenamento
jurídico (prevenção geral positiva), conforme explica Bissoli Filho: [...] o
delito é uma ameaça à integridade e à estabilidade sociais, enquanto constitui
a expressão simbólica de uma falta de fidelidade ao direito [...] faz
estremecer a confiança institucional, e a pena é, por sua vez, a expressão
simbólica oposta à representada pelo delito, tendendo a restabelecer a
confiança e consolidar a fidelidade ao ordenamento jurídico (BISSOLI FILHO,
1998, p. 147).
A teoria
da prevenção especial dirige-se exclusivamente ao sentenciado, objetivando que
este não volte a delinqüir. O aspecto negativo dessa corrente consiste na
intimidação do agente, tendo em vista que a pena, ao ser imposta, deve ser
capaz de produzir-lhe o temor necessário para dissuadi-lo de nova prática
criminal, impedindo, assim, a reincidêncial. Já o aspecto positivo refere-se à
socialização, à reeducação ou à correção do indivíduo a fim de readaptá-lo ao
convívio social. Porém, verifica-se elevado índice de reincidência no país³, o que justifica as críticas à legitimidade do poder punitivo
diante dessa função da pena, tendo em vista que não está adequada às pretensões
da sociedade como um todo.
Finalizando,
as teorias mistas compreendem o duplo aspecto da punição, ou seja, o
retribucionista e o utilitarista, podendo ser tanto instrumento de retribuição
dos delitos já consumados como também de prevenção daqueles que estão por ser
praticados. É a teoria adotada pelo sistema penal brasileiro, conforme dispõe o
art. 59, caput, do Código Penal: o juiz [...] estabelecerá,
conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do
crime [...].
2.2 REINCIDÊNCIA CRIMINAL E FUNÇÃO DA PENA.
Após
discorrer sobre a função legitimadora da aplicação da pena no Estado de
Direito, retorna-se à análise de sua influência na reincidência criminal.
Conforme a predisposição deste estudo, passa-se a expor sobre a pena privativa
de liberdade e sua eventual contribuição para a análise do instituto vigente.
Quando o
órgão jurisdicional prolata uma sentença condenatória, impondo como medida uma
pena a ser cumprida em regime semi-aberto ou fechado, formaliza-se uma relação
de antagonismo entre o delinqüente e a sociedade. A partir de então, tendo em
vista o acima exposto sobre a utilidade dessa sanção, visa-se à reclusão do
detento com o posterior intuito de reeducá-lo e reinseri-lo no convívio social.
Assim sendo, caberia ao Estado garantista prover a instrumentalização dessas
metas.
No
entanto, a realidade do sistema prisional brasileiro põe em discussão a
concretização de tais objetivos. Alvino Augusto de Sá (1998, p. 117-123) afirma
serem de duas ordens os principais problemas do cárcere: de um lado, existem
aqueles decorrentes da má gestão da coisa pública – em razão da falta de
pessoal administrativo, de segurança, de agentes penitenciários com formação
técnica e profissional; de outro, a falta de interesse político, o que resulta
na precária infra-estrutura dos presídios diante da superpopulação carcerária.
Existem
ainda as questões inerentes à própria natureza da pena privativa de liberdade,
tais como: o isolamento do preso em relação à sua família, sua segregação em
relação à sociedade, relações contraditórias entre o pessoal da administração e
o sentenciado, entre outras. Talvez o principal problema advindo da permanência
do detendo no estabelecimento penal seja o fenômeno da prisionização.
Augusto
Thompson dispõe pioneiramente sobre o referido fenômeno em sua obra A
Questão Penitenciária: [...] todo homem que é confinado ao cárcere
sujeita-se à prisionização, em alguma extensão. O primeiro passo, e o mais
integrativo, diz respeito ao seu status: transforma-se, de um golpe,
numa figura anônima de um grupo subordinado; traja as roupas dos membros desse
grupo; é interrogado e admoestado; aprende as classes, os títulos e os graus de
autoridade dos vários funcionários; e, usando ou não a gíria da cadeia, ele vem
a conhecer o seu significado [...]4.
De forma
inevitável, diante do novo ambiente que lhe é proporcionado, o sentenciado deve
adaptar-se aos padrões da prisão, diante da necessidade de sobreviver e de ser
aceito pelos demais detentos. Forma-se uma cultura paralela, havendo o
desenvolvimento de novos hábitos e valores, os quais, com o passar do tempo,
integram-se à pessoa do infrator. Manoel Pedro Pimentel afirma: [...] o
sentenciado, longe de estar sendo ressocializado para a vida livre, está sendo
socializado para viver na prisão. Assim, um observador desprevenido pode supor
que um preso de bom comportamento é um homem regenerado, quando o que se dá é
algo completamente diverso: trata-se apenas de um homem prisonizado (PIMENTEL,
1983, p. 158).
Da
afirmação pode-se inferir que o bom comportamento demonstrado pelo detento na
prisão torna-o apenas adepto dos valores nela existentes, não significando que
está apto a retornar à sociedade por ter sido ressocializado. Dessa forma, ao
voltar à liberdade, por haver-se adequado àquela ordem imposta no cárcere, não
consegue adaptar-se de forma satisfatória às situações-problema, o que, de
acordo com a teoria adaptativa já exposta, tende a motivar a prática de novos
delitos.
Em
conseqüência dessa situação, há uma vertente de doutrinadores que, diante da
ação criminógena no cárcere e da ação deformadora da prisão sobre o condenado,
legitima a inversão absoluta na concepção normativa da reincidência como
circunstância agravante. Nesse sentido, Juarez Cirino dos Santos: O reconhecimento
da ação criminógena [...] exige redefinição do conceito de reincidência
criminal, levando em conta os efeitos deformadores da prisão (e do processo de
criminalização) sobre o condenado: se os efeitos criminógenos da prisão são
reconhecidos, então a ineficácia da prevenção especial reduz a execução penal
ao terror retributivo. E a questão é esta: se a pena criminal não tem eficácia
preventiva – mas ao contrário, possui eficácia invertida pela ação criminógena
exercida –, então a reincidência criminal não pode ser considerada
circunstância agravante (SANTOS,1985, p. 245).
Diante da
assertiva de que o sentenciado, ao invés de adquirir valores que colaborem para
a sua reintegração social, muitas vezes assimila os fatores criminógenos do
presídio, gerando uma verdadeira desordem em sua personalidade por perder sua
identidade (transformando-se numa figura anônima dentro de um grupo subordinado
e segregado pela sociedade), como poderia o Estado garantista recrudescer ainda
mais a sanção penal aplicada?
Pelo
exposto, novamente citando os ensinamentos do Professor Juarez Cirino dos
Santos, avaliando o instituto da reincidência criminal de forma lógica e com
base na realidade social do país, há quem a considere uma das circunstâncias
atenuantes quando da aplicação da pena.
3. TRATAMENTO DA REINCIDÊNCIA: FRACASSO DA RESPOSTA TRADICIONAL.
Cabe
agora indagar se existe qualquer resposta positiva pela aplicação dos efeitos
da classificação do detento como reincidente.
Inicialmente,
a questão precisa ser observada sob o prisma da política criminal, considerada
como ciência e técnica destinada a promover a interpretação crítica do sistema
para então formular as propostas de correção. Logo, é voltada para a realização
de uma política de desenvolvimento social que visa alcançar a readaptação do
delinqüente inserido no sistema prisional, observando os direitos inerentes à
pessoa humana, reflexos da adoção de um Estado democrático.
Poder-se-ia
inferir que, com a criação do instituto da reincidência, a intenção do
legislador ao prever uma sanção maior em resposta à agravação da pena –,
gerando, conseqüentemente, um maior tempo de reclusão do detento, e diante dos
parâmetros e princípios buscados pela política criminal – seria torná-lo apto a
retornar ao convívio em sociedade (função utilitarista da pena).
Classificado
como um Direito Penal moderno, vigora no atual sistema o princípio da
humanidade, segundo o qual, e consoante os ensinamentos do Professor Zaffaroni
(2001, p. 114), o réu, antes de ser estereotipado de qualquer forma, é um ser
humano, tendo inerente a essa qualidade o direito a ser tratado de forma digna.
A Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão (1948) adverte nesse
sentido, e, com relação ao tema aqui tratado, dispõe, no art. 5º: Ninguém
será submetido a tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou
degradante.
Em razão
dessa principiologia garantista, objetivando um novo parâmetro humanitário e
social para o sistema de penas, promulgou-se, em 11 de julho de 1984, a Lei de Execuções
Penais (Lei n. 7.210) – antecipando até mesmo os preceitos democráticos
posteriormente legislados pela norma superior –, que teria a precípua função de
concretizar objetivos que resultariam na melhoria da situação prisional no país
como um todo, afetando, por via reflexa, o tratamento dos encarcerados.
Com o
surgimento da nova tendência que viria a viabilizar a função de ressocialização
do sentenciado – consoante disposição expressa do art. 1º da referida Lei –, no
intuito de alcançar níveis significativos de correção, preocupou-se a nova
legislação em diminuir o elevado índice de reincidência. Assim sendo, atendendo
à individualização da pena na fase de execução penal, o título destinado à
elaboração de regras pertinentes aos estabelecimentos penais dispõe: Art.
84. O preso provisório ficará separado do condenado por sentença transitada em
julgado. §1º: O preso primário cumprirá pena em seção distinta daquela
reservada para os reincidentes.
Contudo,
ainda que a doutrina penal tenha se preocupado em readequar o cumprimento da
reprimenda diante do princípio da individualização, percebe-se hoje que não há
a aplicação prática do preceptivo tendo em vista a problemática realidade
prisional do país, que pode ser comprovada pela superlotação carcerária, maus-tratos,
impossibilidade de exercer ofício ou profissão (remição pelo trabalho), e,
principalmente, pelo elevado índice de reincidência.
No
sentido da afirmação retro, pode-se citar: [...] um dos dados freqüentemente
referidos como de efetiva demonstração do fracasso da prisão são os altos
índices de reincidência, apesar da presunção de que durante a reclusão, os
internos são submetidos a um tratamento reabilitador [...] é
inquestionável que a delinqüência não diminui [...] e que o sistema
penitenciário tradicional não consegue reabilitar o delinqüente, ao contrário,
constitui uma realidade opressiva e serve apenas para reforçar os valores
negativos do condenado (BITENCOURT, 1993, p.149).
Com a
demonstrada crise do sistema carcerário, doutrinadores tendem a apontar
soluções, as quais são objeto de deliberação em cursos e seminários. Dentre as
orientações a serem observadas, destacou René Ariel Dotti em sua obra: [...] entre
os pontos fundamentais, destaca-se: a) a substituição do vigente sistema de penas;
b) melhores condições de dignidade para o tratamento do preso; c) o
reconhecimento de que a pena privativa de liberdade tem-se mostrado inadequada
em relação aos seus fins, tanto sob o ângulo retributivo como sob os aspectos
preventivos; d) necessidade de reservar a prisão penal para os casos de maior
gravidade; e) a recomendação da efetiva aplicação do regime de prisão aberta e
outras medidas substitutivas da prisão (DOTTI, 1998, p. 117).
Diante
dessa rápida conclusão, e utilizando-se dos caminhos propostos pela política
criminal, observa-se que a tendência jurisdicional mais moderna consiste na
aplicação de sanções alternativas ao cárcere – perda da liberdade – para, ao
lado de outras questões de cunho econômico-financeiro, eliminar os efeitos
advindos da prisionização.
Não
seria, então, contraditória a intenção do legislador nessas duas concepções?
Vale dizer, ao mesmo tempo em que permite a aplicação da sanção penal em ultima
ratio, diante da moderna concepção de intervenção mínima, majora, obrigatoriamente,
o quantum da pena, implicando, em alguns momentos, até mesmo a cominação
de um tipo mais severo de regime de cumprimento da sanção!
A
assistência material e moral ao egresso e à sua família e a ajuda prestada pelo
Patronato são de fundamental importância para dirimir os conflitos mais comuns
existentes no período crítico de sua reinserção. Assim sendo, se o sentenciado,
após permanecer na unidade prisional, alcançou o objetivo de tornar-se
sociável, não deveria o Estado investir em programas pós-prisão?
Deveríamos
pressupor que, com vistas a legitimar a intenção precípua de correção do
sentenciado, os estabelecimentos penais de regime aberto deveriam ser
numerosos, com a devida infra-estrutura, e dispor de programas de
profissionalização e reinserção no mercado de trabalho, inter-relacionando
novamente o indivíduo com a comunidade.
Porém, de forma
diversa, verificam-se insuficientes as condições estruturais do Patronato,
tendo em vista a diminuída quantidade de funcionários, as instalações precárias,
bem como a ausência de parcerias com entidades que promovam ensino
profissionalizante.
NOTAS.
1 Nessa linha de raciocínio encontramos Eugênio Raúl Zaffaroni,
Salo de Carvalho e Juarez Cirino dos Santos.
2 Deve-se entender essa expressão diante da fase processual,
porque é evidente que ainda na fase de execução penal existe a presença do
Estado dotado de competência jurisdicional.
3 Noticiou a revista Veja, edição 1618, de 6/10/99, p. 46-47, que,
segundo pesquisa realizada pelo Instituto Latino Americano das Nações Unidas
para a Prevenção do Delito e Tratamento do Delinqüente – ILANUD, 45% dos presos
brasileiros que cumpriram pena em cadeia se tornaram reincidentes. Dispôs
ainda que 80% dos presos em regime fechado também retornaram ao mundo do crime.
4 Há parcela da doutrina que adota nomenclatura diversa – prisionalização
– como sinônimo. Existe, ainda, em nota inserida na página 22, outra
explanação, também do referido autor (THOMPSON, 1976, p. 52).