Por Laís Menna Barreto de Azevedo Silveira -
O novo Código de Processo Civil (Lei 13.105/15), apesar de já ter completado dois anos de vigência no ordenamento jurídico brasileiro, ainda traz alguns questionamentos quanto à sua aplicabilidade e interpretação. O presente artigo visa explanar a sua possibilidade de utilização no processo penal, com algumas de suas alterações e implicações processuais.
Por primeiro, cumpre ressaltar que há duas formas de aplicação das disposições do CPC ao processo penal: expressa e analógica. Esta última ainda é subdividida entre aplicação analógica supletiva e subsidiária. Por aplicação expressa entende-se aquela em que há menção da utilização dos artigos do CPC no próprio Código de Processo Penal. As aplicações analógicas, por sua vez, são aquelas em que o CPP não traz expressamente os artigos do CPC a serem aplicados, mas eles o são para preencher lacunas (aplicação supletiva) ou para complementar as normas trazidas pelo diploma legal (aplicação subsidiária).
A única aplicação expressa do CPC trazida pelo CPP diz respeito à modalidade de citação por hora certa. De acordo com o artigo 362, do CPP, “verificando que o réu se oculta para não ser citado, o oficial de justiça certificará a ocorrência e procederá à citação com hora certa, na forma estabelecida nos arts. 227 a 229 da Lei 5.869, de 11 de janeiro de 1973 – Código de Processo Civil”. Verifica-se, contudo, que o diploma legal faz referência ao CPC revogado, o que é facilmente resolvido por uma simples atualização, de acordo com o artigo 1.046, parágrafo 4º, do próprio Código de Processo Civil. Assim, sem maiores dificuldades, vê-se que, para proceder a citação por hora certa no processo penal, serão seguidas as normas trazidas pelo CPC, mais precisamente as dos artigos 252 a 254, sendo aplicadas, ainda, as alterações por ele trazidas, como a necessidade de apenas duas tentativas de citação, contra as três mencionadas pelo diploma legal já revogado.
As complicações começam a aparecer quando o assunto é aplicação analógica. Isso porque o artigo 15 do CPC traz a seguinte redação: “Na ausência de normas que regulem processos eleitorais, trabalhistas ou administrativos, as disposições deste Código lhes serão aplicadas supletiva e subsidiariamente”. Da leitura do artigo, percebe-se que não há menção aos processos penais, o que trouxe duas correntes sobre a sua possibilidade de aplicação: a primeira determina que o rol trazido pelo CPC é exemplificativo, o que permite o acréscimo dos processos penais às possibilidades de aplicação analógica; a segunda, por sua vez, defende a taxatividade do rol, excluindo os processos penais e determinando o preenchimento de suas possíveis lacunas com a aplicação do Código de Processo Penal Militar. Prevalece, no entanto, o entendimento de que o rol é meramente exemplificativo, permitindo o preenchimento de lacunas ou complementação do CPP com os dispositivos do CPC.
Passemos, então, a analisar algumas das possibilidades, ou não, de aplicação analógica (supletiva ou subsidiária) do CPC ao CPP.
A primeira diz respeito à réplica do autor. O artigo 396 do CPP determina que o juiz, após receber a denúncia ou queixa, deve mandar citar o acusado para que apresente resposta à acusação em 10 dias. Na resposta à acusação, o réu poderá alegar preliminares e apresentar documentos, de acordo com o artigo 396-A, também do CPP. No entanto, não há menção à possibilidade de a acusação se manifestar acerca das eventuais preliminares arguidas e documentos juntados. No CPC, por sua vez, o artigo 351 determina que haverá concessão de 15 dias para que o autor se manifeste sobre as preliminares alegadas e documentos juntados na contestação.
O Superior Tribunal de Justiça resolveu o preenchimento dessa lacuna determinando que haverá aplicação supletiva da norma trazida pelo artigo 351 do CPC ao CPP. Dessa forma, será concedido prazo para que a acusação possa se manifestar após a apresentação de resposta à acusação pelo réu. Contudo, como o procedimento especial do júri faz menção expressa ao prazo de cinco dias para manifestação da acusação sobre as preliminares ou documentos (artigo 409, CPP), será esse o prazo aplicado também ao procedimento ordinário, e não os 15 dias previstos pelo CPC.
Outra questão relevante diz respeito ao princípio da perpetuatio jurisdictionis. Apesar de o CPP trazer menção expressa ao princípio, no artigo 81, ele restringe a sua presença apenas quando houver conexão ou continência. O CPC, por seu turno, prevê, no artigo 43, a perpetuação da competência, independentemente de conexão ou continência, quando houver registro ou distribuição da petição inicial, sendo irrelevantes as modificações do estado de fato ou de direito ocorridas posteriormente. No mesmo artigo, o diploma processual civil traz algumas exceções à regra: quando houver supressão de órgão judiciário ou modificação da competência absoluta.
A pergunta que fica é: haverá aplicação subsidiária das exceções à perpetuatio previstas no CPC ao CPP? E a resposta, mais uma vez, é positiva. Apesar de não haver precedentes em relação ao tema, a exceção à regra do princípio da perpetuação da competência em âmbito penal ficou clara quando houve a extinção dos tribunais de Alçada, oportunidade em que os processos de sua competência foram remetidos ao Tribunal de Justiça. Portanto, o CPC, mais uma vez, complementou as normas trazidas pelo CPP.
Ainda vale mencionar o princípio da identidade física do julgador. O parágrafo 2º, artigo 399, do CPP prevê expressamente que “o juiz que presidiu a instrução deverá proferir a sentença”, o que gera nulidade por incompetência funcional aos processos que não observarem a norma legal. O Código de Processo Civil de 1973, quando ainda estava em vigor, trazia algumas exceções ao princípio, como nos casos de aposentadoria, promoção, remoção e morte do juiz que presidiu a instrução. As exceções eram aplicadas ao processo penal sem maiores questionamentos, e o novo juiz, se assim desejasse, poderia até mesmo produzir as provas novamente.
Entretanto, o novo CPC não possui previsão expressa nem do princípio da identidade física do julgador nem de nenhuma exceção que antes era prevista no diploma legal revogado, o que gerou dúvidas sobre continuidade da sua aplicação em âmbito penal. Os tribunais superiores, então, dirimiram o questionamento, determinando que, por estar incorporada no Código de Processo Penal, as exceções ao princípio, mesmo revogadas, continuam sendo-lhe aplicadas.
Quanto à motivação das decisões, o CPP exige apenas que o juiz as fundamente, mas não especifica como essa fundamentação deverá ser feita. Assim, há aplicação subsidiária do artigo 489, parágrafo 1º, do CPC, que determina aquilo que não pode ser utilizado como fundamentação pelo juiz, como, por exemplo, a mera indicação de atos normativos e utilização de conceitos jurídicos indeterminados, entre outros. A aplicação, nesse caso, será subsidiária porque, apesar de o CPP prever a necessidade de fundamentação, não faz menção ao que configura ou não uma fundamentação adequada.
Interessante questão versa também sobre os embargos infringentes e de nulidade. Com a vigência do novo CPC, tais instrumentos passaram a ter a forma de técnicas de julgamento, e não mais de recursos, como trazia o diploma legal revogado, o que tornou desnecessária a provocação pela parte (artigo 942, parágrafo 3º, do CPC). O CPP, por sua vez, traz previsão expressa sobre os embargos, tanto os infringentes quanto os de nulidade, como recursos privativos da defesa, prevendo o prazo de dez dias para que esta os interponha, como dispõe o artigo 609, parágrafo único, do mencionado diploma legal.
Deste modo, por haver previsão expressa no Código de Processo Penal, não haverá aplicação do CPC em tal aspecto no âmbito penal. Portanto, os embargos infringentes e de nulidade, quando tratarem de matéria criminal, continuam tendo a forma de recursos, e não serão técnicas automáticas de julgamento.
Por fim, o último caso aqui analisado de aplicabilidade analógica do CPC ao CPP diz respeito à possibilidade de suspensão das demandas repetitivas em recurso extraordinário com repercussão geral reconhecida. De acordo com o artigo 1.035, parágrafo 5º, do CPC, em relação aos recursos extraordinários, reconhecida a repercussão geral, o relator no Supremo Tribunal Federal determinará a suspensão do andamento de todos os processos pendentes, individuais ou coletivos, que versem sobre a questão e tramitem no território nacional.
Tal suspensão será aplicada em face de processo penal? Desta vez, novamente haverá aplicação analógica do CPC. Entretanto, ao contrário do que acontece em matéria civil, quando se tratar de matéria penal, a suspensão não será automática e dependerá da observância de alguns critérios: a suspensão será uma faculdade do relator, não se aplicará aos réus presos e suspenderá também a prescrição. Esta última consequência, apesar de não estar prevista no CPC, será aplicada ao CPP com base no artigo 116, inciso I, do Código Penal, que determina a suspensão da prescrição nos casos em que houver questões prejudiciais.
Assim, vê-se que, apesar de tratarem de matérias completamente distintas, o Código de Processo Civil tem o condão de preencher inúmeras lacunas que ainda existem no Código de Processo Penal, além de complementá-lo, já que este possui redação muito antiga (se trata de norma do ano de 1941) e precisa se adequar ao decurso do tempo e às necessidades contemporâneas.