Andrea Marighetto -
Sobre a discussão da natureza jurídica dos acordos de colaboração premiada, evidencia-se a necessidade de disciplina-los à luz do princípio da boa-fé e demais princípios e valores do Ordenamento Jurídico e do Estado Democrático de Direito . À completeza da discussão, vale destacar [ainda que separadamente] reflexões referentes à aplicação do instituto da rescisão dos acordos. A teoria geral das obrigações e a teoria geral dos contratos nos ajudam novamente.
Entre as várias formas patológicas que caracterizam a extinção dos negócios jurídicos por fatos supervenientes que podem levar à ineficácia do negócio jurídico [mesmo que processual], destacam-se os institutos da: a) resolução; b) resilição; e c) rescisão. A doutrina costuma descrever esses institutos como: a) a rescisão é uma expressão “plurivalente”, utilizada [ao mesmo tempo] para indicar casos de resolução e de resilição; b) a resolução é a típica consequência estabelecida por Lei em caso de inadimplemento do contrato (artigo 475 CC e etc.); c) a resilição é o desfazimento do contrato — sem causa — pela simples manifestação de vontade de uma (por denúncia, ex artigo 473 CC) ou ambas as partes contratuais (que se manifesta com o distrato, ex artigo 472 CC) e encontra a sua fonte na Lei ou no próprio Contrato.
A resolução por descumprimento voluntário é o típico caso de resolução contratual ou rescisão por inadimplemento. O descumprimento ocorre por culpa ou dolo do devedor e obriga o próprio devedor ao ressarcimento das perdas e dos danos, conforme previsto no artigo 475 CC segundo o qual “a parte lesada pelo inadimplemento pode pedir a resolução do contrato, se não preferir exigir-lhe o cumprimento, cabendo, em qualquer dos casos, indenização por perdas e danos”.
Evidentemente, o recurso à Justiça para declarar, por sentença, a resolução dos efeitos do negócio jurídico é justificada pela necessidade de manter e garantir o equilíbrio das prestações das partes [sinalagma] na base da estrutura negocial. Em caso de ruptura deste equilíbrio, caberá ao credor requerer judicialmente o desfazimento da obrigação como prevê o artigo 475 CC. Para entender o modelo da resolução por descumprimento voluntário do devedor, o juiz deverá apurar a imputabilidade da causa da possível resolução.
Conforme o ilustre jurista Orlando Gomes “resolução é, portanto, um remédio concedido à parte para romper o vínculo contratual mediante ação judicial”. Igualmente, para o ministro Ruy Rosado de Aguiar Jr., a resolução é “um modo de extinção dos contratos, decorrente do exercício de direito formativo do credor diante do incumprimento do dever. Pode constar de cláusula contratual expressa (resolução convencional, artigo 474 CC); mas, exista ou não previsão contratual, a regra do artigo 475 do Código Civil incide sobre todos os contratos bilaterais, autorizando o credor pedir em juízo a resolução do contrato descumprido (resolução legal)”.
O juízo em relação à demanda avançada pelo credor para obter a declaração de resolução contratual por inadimplemento, deve apurar o grão de culpa ou dolo no comportamento de quem descumpriu o negócio jurídico. O professor Alvino Lima, em uma das mais clássicas e ricas contribuições ao Direito Brasileiro frisa que a teoria da culpa está consagrada como princípio fundamental do sistema de Direito, e remete, implícita ou expressamente a um juízo comportamental, sendo que “as necessidades prementes da vida, o surgir dos casos concretos, cuja solução não era prevista em lei, ou não era satisfatoriamente amparada, levaram a jurisprudência a ampliar o conceito da culpa e acolher, embora excepcionalmente, as conclusões das novas tendências doutrinarias”.
O postulado reflete e integra toda a tradição recente do sistema de Direito. Assim, destaca-se “[...] para definitivamente superar o século XIX, não basta ultrapassar a formulação clássica do contrato como expressão perfeita da vontade. A crise não é apenas de modelo do pensamento jurídico, e nem é apenas um incidente no legado teórico” sendo que “[...] o direito contemporâneo é, nestes termos, funcionalizado, como o são as relações por ele reguladas. A expressão da vontade individual, assim, não pode servir apenas aos interesses do sujeito desconectado da sociedade na qual se insere, mas, ao contrário, deve atender e respeitar o programa funcional e principiológico estampado na Constituição Federal” .
Neste contexto, integra-se a teoria do adimplemento substancial [veja-se En. 361, IV JDC] que decorre dos princípios gerais contratuais, de modo a fazer preponderar a função social do contrato e o princípio da boa-fé objetiva, balizando a aplicação do artigo 475 CC. Em outras palavras, o Juiz, dentro do seu poder e dever de analisar o comportamento culposo das partes na execução do negócio jurídico, poderá e deverá ter em consideração também quanto do negócio jurídico foi cumprido e, aplicando os princípios gerais da função social do contrato ex artigo 421 e da boa-fé objetiva ex artigo 422 do Código Civil, poderá e deverá dispor a sua manutenção, no respeito do fundamental princípio da conservação do negócio jurídico.
A teoria do adimplemento substancial nasce para garantir a Justiça material e regulamentar o risco do exercício abusivo de posições jurídicas [ainda mais se privilegiadas], além de responder à lógica principiológico-sistemática do Sistema de Direito Brasileiro, baseado no princípio da conservação do negócio jurídico e, consequentemente, no direito à purgação da situação de eventual inadimplemento (que sempre deve prevalecer e ser apurado), respeito ao remédio da resolução, que — vale lembrar — possui uma natureza residual, sendo configurável como “Direito formativo extintivo”, constituindo exceção ao princípio da estabilidade e conservação do vínculo negocial.
A jurisprudência, acolhendo integralmente a teoria do adimplemento substancial, frisa — de vez — “o adimplemento substancial do contrato pelo credor não autoriza ao credor a propositura de ação para a extinção do contrato, salvo se demonstrada a perda do interesse na continuidade da execução, [...]”, que [evidentemente] não é o caso.
Mutatis mutandis, nos acordos de colaboração premiada, costuma-se referir-se à cláusula de rescisão por descumprimento do colaborador de Justiça (solevando até dúvidas sobre a própria legitimidade constitucional das mesmas cláusulas). A rescisão — nos casos de quo — evidentemente não integra um direito à resilição por uma das partes, mas reenvia ao instituto da resolução por inadimplemento (supra citado ex artigo 475 CC), ainda que formatado — impropriamente — sob forma de cláusula resolutiva expressa, cuja natureza jurídica — descrita pelo artigo 474 § 1° CC. — prevê — excepcionalmente à regra — que a efetividade da resolução opere de pleno jure ou seja, sem necessidade de uma declaração judicial.
Mesmo admitindo que a presente cláusula nos acordos de colaboração premiada represente uma verdadeira cláusula resolutiva expressa, há a se evidenciar que a efetividade de pleno jure não acontece na maioria das vezes. Para a validade e a efetividade do funcionamento da cláusula resolutiva expressa — nas relações jus-privatistas — “é preciso que as prestações estejam perfeitamente definidas e indicadas quais delas, e em que modalidades, são passíveis de resolução pelo descumprimento, não bastando a referência genérica às prestações contratuais e ao seu incumprimento. Se assim ocorrer, considerar-se-á que se trata apenas de uma cláusula de estilo, a reforçar o disposto no artigo 475 CC, sendo caso de resolução legal”.
Evidencie-se que a ratio precípua da cláusula resolutiva expressa é de proporcionar à segurança jurídica da relação negocial, razão pela qual sua aplicação condiciona-se à perfeita configuração e correspondência do referido incumprimento.
No plano jus-privatista, a própria questão sobre a validade e a efetividade da cláusula resolutiva expressa é objeto de discussão e debate, e a Jurisprudência, se monstra vacilante a respeito do tema fornecendo três diferentes tipologias de sentenças: a) decisões que reconhecem a plena eficácia da cláusula resolutiva expressa, admitindo a resolução extrajudicial sempre que condicionada à exigência de uma comunicação ao devedor sobre a opção feita pelo credor; b) decisões que reconhecem a plena eficácia da cláusula resolutiva expressa, admitindo a resolução extrajudicial, sempre que condicionada à notificação extrajudicial através da qual constitui-se em mora o devedor; c) decisões que não reconhecem a plena eficácia da cláusula resolutiva expressa, transformando de facto a cláusula resolutiva expressa em cláusula resolutiva tácita, ou seja, de estilo, com a única função de evidenciar a possibilidade que o negócio seja necessária e efetivamente passível de ser submetido à intervenção do Juiz para que seja acertado o fato que — presume-se — justifique a declaração da resolução em linha com o artigo 475 CC.
Considerado que [nos acordos de colaboração premiada]: a) os interesses envolvidos não são unicamente de natureza jus-privatista, mas também de ordem público, que refletem a necessária promoção e manutenção da segurança jurídica das relações jurídicas envolvidas; b) os interesses tutelados afetam a própria funcionalidade e legitimação do instituto da colaboração premiada e, por isso, entre as Partes, deve ser garantido o respeito do princípio da boa-fé e os demais princípios e valores do Ordenamento Jurídico e do Estado Democrático de Direito; c) a colaboração [mediante a apresentação de informações etc.] necessariamente deve já ter sido apresentada pelo colaborador de Justiça “no momento da conclusão do negócio que comporta a concessão da prestação premial a favor do colaborador (sinalagma estrutural e funcional)”, deixando de fato em andamento uma relação de continua colaboração caraterizada para ser uma “área cinza”, ou seja, não definida ou definível, por se entender que o mecanismo de rescisão do acordo de colaboração tenha que — necessariamente — ser também acertado e declarado pela intervenção do juiz, após juízo sobre a efetiva culpabilidade do colaborador (inclusive verificando as condições de aplicação da teoria do adimplemento substancial).
O acertamento de fatos (criminais), que ordinária e geralmente em si necessitam ser analisados e comprovados judicialmente, mediante o respeito de princípios cardins do Sistema Penal Nacional, ou seja, mediante a aplicação e o respeito de princípios como o da Legalidade, do Acesso ao Direito de Defesa, do Justo Processo e do Contraditório, não pode (em um Estado Democrático de Direito) ser realizado de forma unilateral e autoritária por uma das Partes envolvidas nestes acordos, mediante o presuntivo (talvez arbitrário) exercício de um direito de resolução frente à não bem definida (pelo menos não acertada judicialmente) situação de cumprimento de negócio jurídico.
O respeito dos princípios constitucionais de tutela da integridade e dignidade da pessoa humana não podem ser superados ou inibidos pela aplicação de uma cláusula de natureza jus-privatista (negocial), cuja ratio é evidente a de garantir maior segurança jurídica na regulamentação das situações negociais, como pela interrupção do negócio jurídico por falta de pagamento da prestação em um contrato de consultoria, por exemplo.
Em outras palavras — entende-se — os próprios Princípios Constitucionais, baseando-se nos ideais, antes que valores, de Integridade, Liberdade, Igualdade, Solidariedade, Acesso ao Direito à Justiça e aos Direitos Fundamentais, não podem justificar práticas conflituosas ou abusivas na tutela dos interesses, sendo que a realização da Justiça concreta persegue, não a criação abstrata do pensamento técnico-formal [no caso a conceptualização da eventual rescisão do acordo], mas a estruturação da função material das categorias jurídicas na tutela do Princípio da dignidade da pessoa humana e dos outros Princípios Fundamentais, especialmente quando [a aplicação formal de um instituto] comporta de facto a limitação ou a privação das liberdades fundamentais da pessoa.