Augusto Tarradt Vilela -
Aos que vêm acompanhando a jurisprudência do Tribunal de Justiça de Santa Catarina quanto à tipificação do delito de apropriação indébita tributária, certamente não deixaram de observar que a referida Corte vem entendendo pela possibilidade de condenação daqueles que se apropriam indebitamente de impostos indiretos, situação essa preocupante.
Os delitos contra Ordem Tributária não visam condenar a mera inadimplência do contribuinte, há necessidade de circunstâncias mais relevantes para que determinada conduta revista-se de dignidade penal, tanto que esse foi o posicionamento do Supremo Tribunal Federal quando questionado sobre a legitimidade da norma penal que penaliza com prisão o delito da apropriação indébita tributária, como já foi noticiado aqui no Conjur.
Entretanto, parece que o Supremo Tribunal Federal quedou-se silente em um momento importante, já que o caso em que fora provocado a manifestar-se sobre a prisão por dívida e o crime tributário, de acordo com a fundamentação do acórdão, não adentrou no tema quanto à impossibilidade de apropriação indébita de imposto indireto.
O julgado do STF foi no seguinte sentido:
PENAL E CONSTITUCIONAL. CRIMES PREVISTOS NA LEI 8.137/1990. PRISÃO CIVIL POR DÍVIDA. OFENSA AO ART. 5º, LXVII, DA CONSTITUIÇÃO. NÃO OCORRÊNCIA. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA. CONFIRMAÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA. RECURSO EXTRAORDINÁRIO DESPROVIDO. I - O Tribunal reconheceu a existência de repercussão geral da matéria debatida nos presentes autos, para reafirmar a jurisprudência desta Corte, no sentido de que a os crimes previstos na Lei 8.137/1990 não violam o disposto no art. 5º, LXVII, da Constituição. II - Julgamento de mérito conforme precedentes. III - Recurso extraordinário desprovido. (ARE 999425 RG, Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI, julgado em 02/03/2017, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-050 DIVULG 15-03-2017 PUBLIC 16-03-2017).
O acórdão proferido pelo Egrégio Pretório decorreu do Recurso Extraordinário com Agravo interposto contra decisão do Superior Tribunal de Justiça que julgou pela condenação do recorrente, tendo a Defesa, então, alegado, em sede do Tribunal Constitucional, a violação à Constituição Federal, uma vez que a prisão decorrente do artigo 2º, inciso II, da Lei n. 8.137/90 equiparar-se-ia à prisão civil.
No caso julgado, tratava-se de condenação de cidadão que teria repassado, em razão da característica de tributo indireto, o ICMS no preço de seus produtos aos consumidores e não recolhido o imposto devidamente aos cofres do Estado de Santa Catarina, tendo o Supremo Tribunal Federal assentado seu entendimento tão somente quanto à constitucionalidade do delito frente ao questionamento da prisão civil, nada tendo ponderado, como já referido, quanto à tipificação derivada de apropriação indébita de imposto indireto.
Entretanto, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina vem, ao contrário do STF, enfrentando a matéria, reconhecendo a viabilidade da tipificação do delito quando se tratar de imposto indireto, como se pode observar dos julgados encontrados, em seu acervo eletrônico, que mantêm o referido entendimento, especialmente quanto ao ICMS: Apelação Criminal n. 0907918-48.2015.8.24.0038 , Apelação n. 0007270-64.2013.8.24.0038 , Apelação n. 0018943-79.2011.8.24.0020 , além de tantos outros.
O tipo penal da apropriação indébita tributária está previsto no art. 2º, inciso II, da Lei n. 8.137/90, o qual detém a seguinte redação:
Art. 2° Constitui crime da mesma natureza:
II - deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos;
É fato que o texto normativa possui má redação ao confundir conceitos, especialmente quando narra a qualidade de “sujeito passivo”, ampliando a incidência da norma enquanto deveria agir em cariz restritivo, o que vem permitindo julgamentos como os mencionados acima.
De forma sucinta, observa-se que há duas espécies de tributos que devem ser considerados para análise do tipo, os diretos e os indiretos.
Por tributo direto, entende-se aquele intransferível, o qual o obrigado a realizar o pagamento e recolhimento é o próprio contribuinte, como o IRPF, por exemplo. Em contra partida, indireto é o tributo que propaga a repercussão econômica, isto é, o contribuinte (chamado de contribuinte de direito) do tributo indireto detém a condição de repassar ao tomador/comprador (contribuinte de fato) ônus financeiro do tributo, isso ocorre com o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços – ICMS –, em que o contribuinte pode repassar o custo no valor de venda do produto, e com o Imposto Sobre Serviço de Qualquer Natureza – ISSQN –, cujo contribuinte prestador do serviço poderá agregar o custo do imposto ao valor do serviço prestado. Eis o surgimento das dificuldades interpretativas.
Tanto o imposto direto, quanto o indireto são impostos próprios, devidos pelo, redundantemente, próprio contribuinte, sendo que, se por ele é devido, declarado, mas não pago, trata-se de dívida, não de ilícito penal, já que este valor referente ao imposto não é obrigação tributária repassada ao contribuinte de fato, mas mera repercussão econômica que constitui o preço do serviço/mercadoria do contribuinte de direito.
Ainda há o principal equívoco morfológico da norma penal do art. 2º, inciso II, da Lei n. 8.137/90, a utilização polivalente de “sujeito passivo”.
Sujeito passivo, consoante o artigo 121 do Código Tributário Nacional, pode ser distinguido em contribuinte e responsável, o primeiro possui relação pessoal e direta com a situação que constitui o fato gerador, enquanto o segundo possui responsabilidade de recolher tributo de terceiro, por força de lei, e necessariamente também detém relação com o fato gerador, é o substituto tributário (art. 128 do CTN). Esta diferenciação é necessária, pois a real distorção interpretativa sobre a tipificação do delito de apropriação indébita tributária decorre da conceituação do sujeito passivo elencada na legislação.
Há, ainda, conceituação doutrinária que realiza a dicotomia entre sujeito passivo direto e sujeito passivo indireto, enquanto aquele seria o contribuinte que possui relação direta com o fato gerador, o indireto seria o responsável.Por isso, é imprescindível que se constate que contribuinte (sujeito passivo direto) possui legitimidade passiva de forma geral, isto é, para afastá-la, deverá existir lei para tanto. Já o responsável tributário (sujeito passivo indireto) será responsabilizado à cumprir com obrigação de terceiro, mas sempre será relacionado com o fato gerador do tributo.
É por isso que a nomenclatura utilizada para o delito previsto no art. 2º, inciso II, da Lei n. 8.137/90 é denominado de “apropria indébita tributária”,isso porque o autor do delito deve apropriar-se (tornar seu) daquilo que deteve a posse, mas que não lhe pertence, motivo pelo qual essa norma só poderá ter incidência nos casos de substituição tributária, quando o contribuinte é sujeito passivo indireto, isto é, detém o dever de reter imposto que é devido por terceiro, situação que pode ocorrer, a exemplo, nos casos previstos no art. 6º, §2º, da Lei Complementar n. 116/03 (que dispõe sobre as regras gerais ISSQN), no qual a norma atribui a terceiro a responsabilidade do recolhimento do imposto devido por outrem.
Portanto, o art. 2º, inciso II, da Lei n. 8.137/90 deve ser lido, em verdade, na concepção de “deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social retido na qualidade de substituto tributário”.
Devendo, ainda, ser considerado o que bem pontuam Marafon e Soares os quais ressaltam que, além da impossibilidade do contribuinte que deixou de recolher imposto próprio responder criminalmente, aquele que estiver da condição de substituto tributário, reter o valor, não repassar ao tesouro, mas declarar em guias próprias, também não terá cometido delito, mas sim mera inadimplência:
“Primeiramente porque o tributo é relativo à dívida de operações próprias do contribuinte, ou seja, ele não está obrigado a reter e, posteriormente, recolher o imposto.
Por outro lado, se o tributo foi oportunamente declarado nas guias adequadas, resta indagar se efetivamente não houve pagamento do imposto, caso contrário, estaremos diante de mero atraso no recolhimento”.
Embora o STF não tenha manifestado-se quanto a este tema, entender que o não pagamento de imposto próprio, cuja repercussão econômica foi suportada por contribuinte de fato (tomador do serviço – para o ISS –, adquirente do produto – para o ICMS –), é, certamente, criminalizar a inadimplência, tornando o Estado, maior inadimplente da contemporaneidade, de forma inconstitucional e, consequentemente, imoral, um ente credor desigual aos demais, já que quando estiver na posição de devedor, a norma não autorizará a responsabilidade penal por sua inadimplência.