Por Victor Luiz Barreto -
Há muito, aponta-se que o sistema de Justiça Criminal, um complexo de instituições voltadas para o enfrentamento à criminalidade, desempenha, mesmo que com a inconsciência de boa parte dos seus atores, um papel fundamental na sustentação das desigualdades sociais.
"Punição e estrutura social", de Rusche e Kirchheimmer, lançado ainda em 1939, já evidenciava a relação concreta entre formas de punição e modo de produção, com os tipos de pena utilizados em cada período histórico atendendo invariavelmente às demandas do interesse econômico dominante. A obra impulsionou a crítica criminológica que avança até os dias atuais, incorporando outros importantes elementos, como raça e gênero, na compreensão da repressão penal.
A partir de tanto já produzido no âmbito das criminologias críticas, não se torna tarefa das mais difíceis enxergar a deficiência do Direito Penal para lidar com os problemas sociais. Em nosso país, facilmente se pode perceber que a criatividade legislativa para a concepção de um sem-fim de novos tipos penais e o constante endurecimento das punições nas últimas décadas não tem resultado na diminuição da violência. O crescente número de 887.139 pessoas presas (CNJ, jan/2021) sem que sequer 30% dos homicídios sejam solucionados (Instituto Sou da Paz, 2020), num país em que há mais de dez anos são assassinadas pelo menos 50 mil pessoas anualmente, ajudam a ilustrar o fracasso do sistema de Justiça Criminal.
Desse modo, a expansão do aparelho de repressão estatal só encontra guarida no papel (não mais tão) oculto que desempenha em favor das classes dominantes, perpetuando uma camada de pessoas marginalizadas e o bloqueio à formação de laços nos grupos subalternos da sociedade, que poderia resultar na confrontação do status quo, cada vez mais concentrador de renda no alto da pirâmide social em detrimento da qualidade de vida dos trabalhadores.
A insegurança é bastante lucrativa para as classes mais abastadas: ganham, com ela, desde a diversificada indústria privada na área da segurança até os políticos que se elegem com o discurso populista calcado no medo, passando pela parte sensacionalista da mídia de massa, que obtém audiência com a exploração da violência. Como de costume, perde o povo, que continua sem usufruir de políticas públicas sérias e baseadas em evidências para a superação dos problemas sociais mais graves.
Diante desse cenário, não é de impressionar a capacidade de atores políticos para continuar batendo na mesma falida tecla que aponta a atuação do Direito Penal como resposta para toda a sorte de adversidades, até mesmo a falta de perspectiva de vacinação em meio à pandemia da Covid-19.
A mais recente iniciativa nesse sentido foi o PL 5.555/2020, apresentado no Senado, que altera o Código Penal para tornar crime a omissão e oposição à vacinação, a propagação de notícias falsas sobre a eficácia da vacina e o desestímulo à adesão ao programa de vacinação. Conforme a proposta, quem se omitir, sem justa causa, na condição de pais ou responsáveis legais, à vacinação obrigatória de criança ou adolescente, em situação de emergência de saúde pública, fica sujeito a pena de reclusão de um a três anos. Para quem deixar de se submeter, sem justa causa, à vacinação obrigatória e criar, divulgar ou propagar, por qualquer meio, notícias falsas sobre as vacinas do programa nacional de imunização ou sobre sua eficácia, a pena é de reclusão de dois a oito anos e multa. Além disso, se o autor for agente público, as penas poderão ser aplicadas em dobro, sem prejuízo de punição por improbidade administrativa.
Para além da atecnia da proposição, cujo texto, repleto de obscuridades, não protege o cidadão do arbítrio estatal, o projeto, mesmo que seja dotado das melhores intenções — embora inúteis —, serve como obstáculo e desperdício de energia para um enfrentamento eficiente à pandemia, que não precisa de novos delitos ou penas, mas de políticas públicas de saúde apoiadas na ciência, que encarem o problema e comecem a resolvê-lo, como já o fazem tantos outros países, governados pelas mais diversas ideologias.
Inúmeras outras proposições legislativas na Câmara dos Deputados e no Senado Federal seguem a mesmo linha de recrudescimento do Direito Penal como medida de enfrentamento à pandemia da Covid-19, a exemplo das seguintes:
— O PLC 858/20 aumenta em um terço a pena para o funcionário público que infringir determinação do poder público para impedir chegada ou propagação de doença contagiosa;
— O PLC 1.068/20 criminaliza a disseminação de informações falsas ou orientações contrárias às do poder público, em conformidade com a Organização Mundial de Saúde em casos de epidemia, pandemia ou calamidade pública;
— O PLC 1265/20 triplica a pena de furto e dobra a de roubo praticados durante estado de calamidade pública por pandemia;
— O PLS 3.075/20 prevê que o delito de peculato que recaia sobre dinheiro, valor ou bem móvel destinado ao enfrentamento de epidemia seja punido com pena de reclusão de 12 a 30 anos e multa, e estabelece que tal conduta seja considerada crime hediondo.
— O PLS 1.871/2020 insere no rol dos crimes hediondos os delitos contra a Administração Pública cometidos em ocasião de calamidade pública.
No quase deserto de propostas legislativas que indiquem caminhos seguros para a minimização dos efeitos da pandemia e sejam capazes de garantir a vacinação da população, conscientizando a sociedade acerca da importância dessa e de outras medidas em larga escala, a repressão penal e todo o seu simbolismo carregado de ineficiência funciona como cortina de fumaça para criar a ilusão coletiva de que algo está sendo feito pelo poder público para lidar com a pior crise de saúde pública dos últimos cem anos — quando muito pouco de relevante se consegue notar.
Para mais, esse tipo de atuação legislativa representa uma deturpação do próprio Direito Penal enquanto campo do conhecimento fundamentado por princípios como a intervenção mínima, que preceitua a excepcionalidade da intervenção penal, cuja utilização deve se dar tão somente em situações estritamente necessárias à proteção dos bens jurídicos mais importantes; a subsidiariedade, pela qual o Direito Penal deve funcionar como última instância do controle social, atuando apenas quando os demais meios de controle não funcionarem; ou a fragmentariedade, que limita a incidência do Direito Penal — o mais invasivo dos instrumentos estatais contra o cidadão — a uma pequena parte do conjunto de condutas humanas, que em regra são lícitas.
Vale lembrar que o ordenamento penal brasileiro já dispõe de condutas consideradas criminosas relacionáveis à pandemia e que estão sendo praticadas à vista de todos sem que isso represente ameaça a quem as comete ou mínima contribuição no enfrentamento à Covid-19 até aqui, com destaque para o artigo 268 do Código Penal, que considera delito infringir determinação do poder público destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa. As inúmeras aglomerações ocorridas na campanha eleitoral de 2020 e as que vêm acontecendo nas festas de verão pelo país não deixam dúvidas a esse respeito.
O fácil e frágil discurso populista penal que insiste em indicar a expansão da repressão criminal como solução para toda sorte de problemas sociais não resiste, portanto, a uma rápida análise quanto à sua eficiência. A criação de novos tipos penais termina sendo sempre medida tomada para que as coisas continuem como estão. E elas não estão nada bem, pelo menos para a maioria – com a frequente e indispensável contribuição do Direito Penal para tanto.