Por Márcio Pompeu -
O direito à saúde está expressamente previsto no artigo 196 da Constituição Federal como dever do Estado, a ser garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
Com a facilitação do acesso à Justiça, a judicialização de temas relacionados à saúde tem crescido por meio de demandas que, por exemplo, objetivam internações, reparações por erros médicos, fornecimento de próteses/órteses e, principalmente, medicamentos ou produtos terapêuticos de alto custo, como o canabidiol (CBD).
Em paralelo, nos últimos anos o número de pesquisas relacionadas ao uso do canabidiol para fins medicinais também aumentou.
No Brasil, podemos citar que a Universidade de São Paulo (USP) e a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) têm realizado pesquisas sobre o uso da Cannabis Sativa L e de seus derivados para finalidade terapêutica, especialmente o uso do canabidiol.
Além disso, diante da necessidade de obter, de forma lícita, material para as pesquisas, algumas universidades conseguiram viabilizar judicialmente o plantio da maconha, como a Universidade Federal de Viçosa (UFV) e a Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).
Nesse passo, segundo matéria publicada na revista Globo Rural :
"Pesquisas nas duas escolas (UFV e UFRRJ) vão permitir o cultivo de variedades chamadas genericamente de cânhamo ou cannabis industrial. Essas plantas têm menos de 0,3% de tetra-hidrocanabinol (THC), componente psicotrópico presente nas flores da planta. São variedades que ‘não dão barato’ por isso não interessam ao mercado ilegal".
Em linhas gerais, o canabidiol (CBD) é uma das várias substâncias encontradas na maconha que agem no corpo humano, especialmente no sistema nervoso central.
É bom ressaltar que, ao contrário do que o senso comum imagina, o CBD não possui efeito psicoativo, ou seja, não tem a capacidade de causar euforia ou qualquer tipo de sensação entorpecente.
Mais, a referida substância tem sido utilizada para o tratamento de doenças como epilepsia, esclerose múltipla, Parkinson, esquizofrenia, ansiedade, depressão, dor crônica, fobias sociais, entre outras enfermidades. E os benefícios, aliás, têm sido comprovados cientificamente.
Por sua vez, o avanço das pesquisas ganhou a atenção da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), a qual passou a regulamentar o tema por meio das Resoluções da Diretoria Colegiada (RDC) nºs 17, 327 e 335, que são complementares e foram publicadas em sequência.
De forma resumida, a RDC nº 17/2015 define os critérios e os procedimentos para a importação, em caráter de excepcionalidade, de produto à base de canabidiol em associação com outros canabinoides, por pessoa física, para uso próprio, mediante prescrição de profissional legalmente habilitado, para tratamento de saúde.
Nesse passo, após consulta pública, por meio da RDC nº 327/2019, a Anvisa definiu as condições e procedimentos para a concessão da autorização sanitária para a fabricação e a importação, bem como estabeleceu os requisitos para a comercialização, prescrição, a dispensação, o monitoramento e a fiscalização de produtos de Cannabis para fins medicinais de uso humano.
Por último, a Anvisa publicou a RDC nº 335/2020, a qual definiu os critérios e os procedimentos para a importação de produto derivado de Cannabis, por pessoa física, para uso próprio, mediante prescrição de profissional legalmente habilitado, para tratamento de saúde.
Assim, ao mesmo tempo, também temos dois projetos legislativos que são relevantes, mas que ainda aguardam um desfecho do Poder Legislativo.
O primeiro, o Projeto de Lei nº 399/2015, tem como finalidade viabilizar a comercialização de medicamentos que contenham extratos, substratos ou partes da planta Cannabis sativa em sua formulação.
O segundo, o recente Projeto de Lei nº 361/2021, dispõe sobre a aplicação de Cannabis sativa L e seus derivados na medicina veterinária.
Enquanto o Poder Legislativo não debate os projetos legislativos mencionados acima, a insegurança jurídica do tema relativo ao uso terapêutico do canabidiol tem sido combatida pelo Poder Judiciário, o qual tem assumido a posição de protagonista no assunto.
Nesse cenário, é possível encontrar casos de pacientes que obtiveram salvo-conduto para plantar e extrair o CBD na sua própria residência, por meio de Habeas Corpus preventivo , e até mesmo importar sementes da Cannabis Sativa, valendo-se da mesma ação constitucional na Justiça federal .
Em um dos Habeas Corpus impetrados no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, o desembargador relator, Ricardo Sale Júnior, no julgamento de recurso em sentido estrito , ao abordar a temática relativa à boa-fé dos impetrantes do remédio constitucional, afirmou, precisamente, que:
"Não obstante os impetrantes tenham iniciado o cultivo do vegetal sem autorização para tanto, não vislumbro má-fé em sua conduta, tanto que buscaram, junto ao Poder Judiciário, a regularização de tal situação, em vez de permanecer na clandestinidade (...) a concessão do salvo-conduto aos recorrentes é medida que se impõe, em observância à garantia dos direitos fundamentais ora em xeque, devendo tais direitos prevalecer sobre o interesse punitivo do Estado, mormente em se tratando de conduta destinada à obtenção de produto com finalidade exclusivamente medicinal e na qual não vislumbro qualquer juízo de reprovabilidade".
Prosseguindo, agora em 2021, em decisão proferida em julgamento de Habeas Corpus coletivo, impetrado pela equipe de advogados da Rede Reforma (Rede Jurídica pela Reforma de Política de Drogas), o Tribunal de Justiça de São Paulo concedeu um salvo-conduto em favor dos associados da Cultive — Associação de Cannabis e Saúde .
No caso mencionado acima, o salvo-conduto tem como finalidade impedir as autoridades policiais de realizar a prisão em flagrante dos associados da associação Cultive pelo cultivo, uso, porte e produção artesanal da Cannabis, para fins exclusivamente medicinais, bem como se abster de apreender os equipamentos e os vegetais da planta utilizados para produzir os remédios necessários em benefício dos associados.
Em decisão ainda mais recente, datada de março deste ano, em julgamento de um mandado de segurança, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo autorizou uma farmácia de manipulação a manusear medicamentos derivados da Cannabis.
Entre outros fundamentos, a decisão proferida no citado mandado de segurança ressalta ser inadmissível a distinção de tratamento entre farmácias "com manipulação" e farmácias "sem manipulação", criada pela Anvisa por meio da Resolução da Diretoria Colegiada nº 327/2019, por extrapolar o poder regulamentar, o que limita, consequentemente, o livre exercício das atividades econômicas.
Além disso, em pesquisas de jurisprudência, também é possível encontrar ações judiciais que buscam o fornecimento do canabidiol ajuizadas contra União, estados e municípios e contra operadoras de planos de saúde.
Diante da falta de uma lei que regule de modo satisfatório o uso terapêutico do canabidiol, a estrada do Poder Judiciário é o único remédio que resta aos pacientes e às farmácias de manipulação.
Essas demandas crescem à medida que o tratamento com o canabidiol é financeiramente inacessível à grande parte da população brasileira, pois o custo mensal do tratamento pode se aproximar do valor de R$ 3 mil mensais, ainda mais se houver a necessidade de importação.
Também é bom lembrar que, a depender das circunstâncias do caso concreto, o manuseio da Cannabis sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, pode configurar crime punido com reclusão, conforme prevê o texto da Lei nº 11.343/2006.
No atual cenário, portanto, existe o risco à liberdade de locomoção daqueles que dependem do produto e se aventuram ao extrair o óleo de canabidiol de forma artesanal, como os familiares e pacientes portadores de epilepsia, esclerose múltipla, depressão etc.
Desse modo, embora o Brasil ainda esteja engatinhando nos temas relacionados ao uso terapêutico do canabidiol, é fácil notar que o Poder Legislativo deveria assumir, com urgência, uma posição sobre o tema, trazendo segurança jurídica àqueles que dependem desse produto.