As tendências do direito penal moderno alemão e sua real adequação ao direito penal brasileiro

Válter Kenji Ishida

I – Introdução. É inegável a influência do direito penal alemão sobre a doutrina penal brasileira. Todavia, existem problemas de “adaptação” da teoria alemã em solo brasileiro ou então de onde se origina o pensamento da doutrina alemã. Também fica patente na Alemanha, a superação da doutrina finalista em prol de outros pensamentos “ecléticos” e a “Constitucionalização” do direito penal alemão. Esse artigo pretende de modo simplório, reproduzir algumas ideias extraídas  do “Curso sobre Problemas Fundamentais do Direito Penal e Processual” (Escuela de Verano)que ocorreu em Göttingen, Alemanha, de 22 a 26 de setembro de 2014, com a participação dentre outros de Claus Roxin, Günther Jakobs e Luís Greco. Também foi complementada pela leitura do autor deste artigo de livros e artigos sobre o tema. Pretende-se repensar o direito penal brasileiro, de acordo com a “quebra” de alguns paradigmas estabelecidos pelos penalistas brasileiros, e utilizados pelos acadêmicos em salas de aula e que de certa forma, não correspondem com a atua evolução do direito penal alemão. Existe uma necessidade de se fazer determinados esclarecimentos ou observações. Não se pretende fazer uma crítica expressa aos artigos e livros aqui escritos, mas tão somente adequá-los ao direito penal alemão e suas tendências. Nesse diapasão, procura-se fazer um estudo acerca da utilização na jurisprudência e doutrina penais brasileiras acerca de temas tratados no direito penal e processual penal alemão, sem intenção de esgotar o tema.

II – A superação definitiva do Finalismo na doutrina alemã. Enquanto na doutrina penal brasileira, continuamos a nos socorrer do finalismo de Welzel, acrescentado de algumas inovações como a teoria do domínio do fato de Roxin, na Alemanha, praticamente não se utiliza mais essa teoria. Assim, não existe mais os “ismos” (causalismo, finalismo etc), mas sim um doutrina eclética, pulverizada pela existência de mais de trezentos penalistas em território alemão. Também temas como culpabilidade (proeminente na década de 1970) e estado de necessidade (década de 1920), hoje são ultrapassados nos debates. A doutrina alemã prefere trabalhar temas como o “domínio da organização”, tema esse utilizado pelo Supremo Tribunal Federal, mas como sinônimo de “domínio do fato”.

III - Princípio da insignificância. A localização no ordenamento jurídico alemão. Permite não processar condutas socialmente irrelevantes, assegurando o desafogo da justiça, evitando a estigmatização do infrator e a contribuição para a punição somente da pessoa merecedora do castigo estatal.

A expressão é extraída do direito alemão como uma excludente de tipicidade material../../../../Paulo/AppData/Local/Temp/As tendências do direito penal moderno alemão -versão curta-1.doc - _ftn3. Todavia, no direito alemão, a matéria é localizada topograficamente no direito processual, baseada no princípio da oportunidade da ação penal. Somente em crimes específicos como de lesão corporal, havendo “afetação irrelevante”, como cuspir na pessoa, haveria essa chamada atipicidade material no direito alemão.  Na Alemanha,  vige o princípio da obrigatoriedade. Mas em determinados casos, o direito processual penal alemão adota o princípio da oportunidade nos crimes de bagatela (Bagatellsachen)../../../../Paulo/AppData/Local/Temp/As tendências do direito penal moderno alemão -versão curta-1.doc - _ftn4. Tratar-se-ia na Alemanha do princípio da oportunidade regrada, sistema implementado na Alemanha na reforma do Código de Processo Penal (StPO) em 1974.../../../../Paulo/AppData/Local/Temp/As tendências do direito penal moderno alemão -versão curta-1.doc - _ftn5 O assunto é tratado especificamente na Seção 153, (1) do StPO, mencionando que o Ministério Público poderá prescindir da acusação com a necessidade de homologação pelo tribunal,  se a culpabilidade (como juízo de reprovação) for de menor importância e inexiste interesse público nessa acusação. Continua mencionando que não seria exigida homologação pelo tribunal quando inexistir um aumento da pena mínima e as consequências da ofensividade são mínimas. Existe nesse passo, uma grande semelhança com a lei 9.099/95 brasileira. A segunda parte todavia, chega a tocar na mínima ofensividade que nessa parte se conecta com a tipicidade.

A solução brasileira se mostra melhor que a alemã, mas buscou um argumento de autoridade (Roxin)../../../../Paulo/AppData/Local/Temp/As tendências do direito penal moderno alemão -versão curta-1.doc - _ftn6. Ao tratar do tema, Roxin../../../../Paulo/AppData/Local/Temp/As tendências do direito penal moderno alemão -versão curta-1.doc - _ftn7 menciona realmente a questão da tipicidade: “ações que em princípio seriam puníveis podem, em casos de insignificância, nos quais o bem jurídico protegido por alguns tipos penais não é atingido, serem vistas como atípicas.”

 

O próprio Roxin todavia elencou um exemplo de direito material, mas que fazia parte do Código Alternativo. Como se sabe o atual Código Penal alemão faz menção ao crime de ameaça sexual. No Projeto de Código, Roxin preferiu incluir a expressão "Ações sexuais no sentido desta lei são apenas aquelas que significam considerável lesão ao bem jurídico protegido"../../../../Paulo/AppData/Local/Temp/As tendências do direito penal moderno alemão -versão curta-1.doc - _ftn8.  Talvez não haja compatibilidade da insignificância nos dois direitos: no alemão, é eminentemente processual (no caso dos crimes em que o arquivamento depende da homologação pelo tribunal). Mas existe uma segunda parte do direito alemão que falta em mínima ofensividade. No brasileiro, é material (atipicidade material). O princípio da oportunidade (ou ao contrário, da obrigatoriedade mitigada) só é possível na transação penal e na suspensão condicional do processo.

Dessa forma, pode-se concluir o seguinte: Roxin, em sua ideia difundida no mundo inteiro a partir de 1964, realmente chega a trabalhar com o direito material, especificamente com o conceito analítico de crime e mais ainda especificamente na tipicidade. Ocorre que a “seleção” desses tipos de crimes é feita a partir de uma regra processual penal, com o confronto do princípio da oportunidade ou da obrigatoriedade da ação penal pública. No caso brasileiro, parece ter ocorrido uma “mistura” de conceitos. Aproveitou-se o conceito de Roxin sobre o princípio da insignificância e criou-se requisitos jurisprudenciais muitos semelhantes ao da Seção 153, I do CPP alemão. Veja nesse sentido, a explicação do verbete no site do STF: “Princípio da Insignificância (crime de bagatela) o princípio da insignificância tem o sentido de excluir ou de afastar a própria tipicidade penal, ou seja, não considera o ato praticado como um crime, por isso, sua aplicação resulta na absolvição do réu e não apenas na diminuição e substituição da pena ou não sua não aplicação. Para ser utilizado, faz-se necessária a presença de certos requisitos, tais como: (a) a mínima ofensividade da conduta do agente, (b) a nenhuma periculosidade social da ação, (c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e (d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada (exemplo: o furto de algo de baixo valor). Sua aplicação decorre no sentido de que o direito penal não se deve ocupar de condutas que produzam resultado cujo desvalor - por não importar em lesão significativa a bens jurídicos relevantes - não represente, por isso mesmo, prejuízo importante, seja ao titular do bem jurídico tutelado, seja à integridade da própria ordem social.” Essa criação de requisitos pelo nosso tribunal maior tornou “confuso” o conceito do princípio da insignificância, misturando conceitos processuais penais do direito alemão. Seria mais fácil utilizar-se o conceito de Roxin que menciona a hipótese do bem jurídico protegido por determinados tipos penais não ser atingido.

IV – O pensamento atual de Jakobs sobre o Direito Penal do Inimigo. Trata-se de uma teoria formulada por Günther Jacobs, com base em três pilares: (1) antecipação da punição do inimigo (o agente criminoso); (2) desproporção das penas (permitindo a elevação, a prisão perpétua, o regime integral fechado) e a relativização das garantias processuais; (3) criação de leis específicas de acordo com o tipo de agente criminoso (roubador, homicida etc). Denomina inimigo aquele que não quer adentrar na sociedade, que se afasta permanentemente do direito e portanto não pode ser chamado de cidadão.

Existem autores que dividem o pensamento de Jakobs em três fases. A primeira seria a fase seria a crítica, em que o autor destacava as características do direito penal do inimigo. Uma segunda fase denominada descritiva em que narra os requisitos de aplicação do direito penal do inimigo: a) ampla antecipação da punibilidade (significando a permissão acentuada das medidas cautelares restritivas da liberdade); b) a falta de redução da pena a esta pena (no sentido de inadmissibilidade da detração); c) a transposição de uma legislação própria do Direito Penal para uma legislação combativa (do inimigo, havendo necessidade de uma legislação alternativa); d) a supressão de garantias processuais penais (como a falta de garantia de princípios como o da dignidade humana). Finalmente a fase legitimadora que corresponde à publicação do seu “Direito penal do cidadão e direito penal do inimigo”, publicado na Alemanha em 2014. Cita que essa guerra seria um direito legítimo do cidadão, isto é, um direito seu a segurança.

Quarta fase: a fase liberal. Todavia, o próprio Jakobs ressalta que a sua doutrinal foi mal interpretada no direito penal brasileiro, inexistindo um verdadeiro radicalismo preconizado em território brasileiro. Para o autor, somente o agente criminoso que rejeita de forma absoluta a obediências às normais penais é que pode ser tratado como inimigo. Assim, seria o caso de um terrorista e não propriamente um traficante de drogas, que apesar de praticar grave ilícito penal, de certa forma se adéqua às exigências sociais.  Acrescenta ainda que haveria necessidade de uma adequação ao regime democrático (ou ao “Estado de liberdades”). Para Jakobs, o termo “pessoa” é técnico e designa um portador de papel. Assim, seria aquele cujo comportamento conforme à norma se confia e se pode confiar. Por outro lado, o indivíduo que não se deixa coagir a viver num estado de civilidade, não pode receber as bênçãos do conceito de pessoa.

O que se percebe então é uma aplicação restrita do direito penal do inimigo, sem aquela abrangência que costumávamos extrair do pensamento do ilustre jurista alemão. Na verdade, segundo as próprias palavras de Jakobs, o direito penal do inimigo se aplica de modo restrito naquelas hipóteses já conhecidas como os atentados terroristas contra EUA, Inglaterra e Espanha. A materialização desse direito penal do inimigo já ocorre p. ex. no caso norteamericano em que existe “duas justiças”: uma para os crimes ordinários e outro para o caso de atentados terroristas. Outrossim, Jakobs preocupa-se com as violações de direitos e garantias individuais que o próprio combate ao terrorismo possa ocasionar.Assim, na visão atual de Jacobs, não seriam aceitos exemplos dados por Estefam e Gonçalves (ob. cit., p. 415) como a aplicação da pena ao inimputável quando se constatasse a inexistência de método eficaz para sua cura; ou ainda o exemplo de Tatiane Machado Correia (Apontamentos críticos sobre o conceito funcional de culpabilidade de Jakobs, in  www.leliobragacalhau.com.br, acesso em 11-10-2014, 18h09h), quando menciona que o direito penal do inimigo não exige a prática de um ilícito penal, podendo ser aplicado ao agente perigoso, uma medida de segurança, exceto se aplicar aos terroristas. O que se percebe então não é propriamente que a pesquisa dos doutrinadores brasileiros tenham errado porquanto se basearam em obras de Jakobs ou de outros autores que realmente captaram a ideia do mestre alemão. Ocorre que atualmente sua visão não é tão mais radical e muito mais adequada ao regime democrático de direito.

V – A menção da teoria do domínio do fato de Roxin na APn 470 do STF (“Mensalão”).

Reflexão sobre o tema.  Nos seus esclarecimentos terminológicos da obra “autoria como domínio do fato”, os autores Luís Greco, Alaor Leite, Adriano Teixeira e Augusto de Assis fazem uma explanação acerca do sistema unitário que iguala todas as contribuições causais para o delito e o sistema diferenciador que separa as várias formas de intervenção do delito. Trazem à baila também o conceito restritivo de autor (muito utilizado no direito brasileiro), onde o autor deve realizar a ação prevista no tipo e o conceito extensivo de autor, onde todos os intervenientes realizam a ação prevista no tipo penal. Mais interessante ainda é o argumento dos autores é ressaltar a inutilidade da diferença entre monismo e pluralismo, da qual esse autor também se utiliza este autor (Curso de direito penal, 3ª edição, p. 164) e que o direito penal brasileiro tanto preza. Concluem referidos autores: “Essa discussão é, do ponto de vista teórico, duvidosa e, de uma perspectiva prática, irrelevante; 

A expressão “domínio do fato” surgiu a partir de um artigo de 1939 de Welzel. Mas o desenvolvimento com todos os seus detalhes foi feito com Roxin que desenvolveu sua teoria a partir dos crimes cometidos pelo Nazismo. Na verdade, o sistema brasileiro na prática, não faz diferenciação entre autor e partícipe (ao contrário do CP alemão), imputando no mais das vezes, responsabilidade igual à luz do art. 29.  Na verdade, em uma interpretação literal, haveria adoção pela lei da teoria unitária. Só faria sentido retirar o partícipe dessa posição e introduzi-lo na posição de autor, se a participação fosse apenada de forma diferente na prática forense , que não seria o caso no direito penal brasileiro. No caso do direito alemão, existem diversas formas de participação, como a instigação (que permite o apenamento igual) ou a cumplicidade (com a diminuição obrigatória). Daí a preocupação em incriminar o “partícipe” que tivesse o “domínio do fato”.  A alegada compatibilidade da teoria do domínio do fato com o art. 29. Na verdade, a utilização da expressão “domínio do fato” na referida ação incide sobre a preocupação em punir o núcleo político-partidário.  Nesse sentido, foi utilizada pelo STF como “fundamentação da responsabilidade” e não para distinção entre autor e partícipe. Ao concluir que um dos réus detinha o controle finalístico, estará afirmando que isso estaria comprovado nos autos. Tratar-se-ia então de questão de prova. Nesse sentido, tratou-se da tábua de salvação entre absolver ou condenar e ainda com a dosimetria de pena. Mais do que isso, a teoria do domínio do fato (como gênero) foi confundida com a teoria do domínio da organização (espécie). Nesse caso, o superior tem certeza que a ordem será cumprida por um inferior servil e fungível. Na verdade, não existe uma total irregularidade na aplicação da “teoria do domínio do fato”. Algumas vezes é colocada corretamente, outras confundida com a teoria do domínio da organização e outras utilizada como substrato para fundamentar a existência de prova contra determinado réu. Mas para o direito alemão, a teoria do domínio do fato não vai fundamentar uma responsabilidade onde ela não exista.

VI– Conclusões. Algumas breves conclusões podem ser extraídas dos assuntos expostos. No Brasil, cultua-se muito ainda as teorias finalistas, com o acréscimo das ideias de Roxin. Na Alemanha, quase não se fala mais sobre esse assunto. Quanto ao princípio da insignificância, o Supremo Tribunal Federal perdeu a chance de criar um conceito simples e objetivo à luz da teoria de Roxin, preferindo criar um conceito “confuso”, em parte extraído do StPo (Código de Processo Penal alemão). O pensamento de Jakobs não se adequa ao “direito penal do inimigo brasileiro” e na visão do autor deve ser utilizado com extrema cautela (p. ex. a terroristas) e respeitando o Estado Democrático de Direito. Quanto à teoria do domínio do fato, ela foi utilizada de forma “confusa”  e como forma de prova no processo penal no caso do “Mensalão”, bem distante da ideia preconizada por Roxin.

 

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