Luiz Flávio Gomes -
Pertinência da audiência de custódia. Para proteger a liberdade das pessoas, diz a Constituição brasileira (art. 5º, inc. LXI) que ninguém pode ser preso sem ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo o caso do flagrante (ou de transgressão militar). A prisão em flagrante é um ato administrativo (ainda que concretizada por particular, como permite o art. 302 do CPP). Como ato administrativo, que independe de ordem judicial, deve ser rigorosamente fiscalizado pelo Judiciário. Daí a pertinência da audiência de custódia (apresentação do preso em 24h a um juiz, para analisar sua legalidade, necessidade e conveniência), que se reveste da maior importância protetiva.
Onde está prevista essa audiência de custódia? Na Convenção Americana de Direitos Humanos (art. 7º, 5), subscrita e ratificada pelo Brasil. Vigente desde novembro de 1992, diz: “toda pessoa detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada pela lei a exercer funções judiciais”. Qual o valor dessa Convenção? Vale mais que a lei e menos que a Constituição (disse o STF, no RE 466.343-SP). Tem valor superior à lei. É totalmente compatível com a Constituição brasileira. Trata-se de norma vigente no ordenamento jurídico (mas ignorada pela quase totalidade dos operadores respectivos). Qual o problema? Fixar o prazo em que o preso deve ser apresentado ao juiz. Que ele deve ser apresentado não há dúvida. Resta apenas saber em qual prazo isso deve acontecer.
O sistema judicial do mundo inteiro mais civilizado que o brasileiro (nesse ponto, ao menos) já fez isso. O prazo vai de 6h (caso da Argentina) a 72h (caso da Espanha): Chile, 24h; Colômbia, 36h; México, 48h; Peru etc. O CNJ, o Ministério da Justiça e o Tribunal de Justiça de SP estão regulamentando o assunto (e estão fixando o prazo em 24h; poderia ser até 48h, sem perda da razoabilidade). Hoje, somente a “papelada” do flagrante vai ao juiz em 24h. Mas essa papelada (que vem da nefasta tradição ibero-americana) não substitui a apresentação do preso em pessoa, estabelecendo-se em seguida o contraditório entre o acusador e a defesa (para se saber se a prisão em flagrante se converte em prisão preventiva ou se o preso é liberado sob determinadas condições).
Almas inquisitoriais. Parcelas das entidades policiais, do Ministério Público e da Justiça estão criticando a medida. Almas errantes impregnadas de inquisição (que não morreu; e se morreu, ainda não foi sepultada; não é difícil matar um elefante em estado de necessidade, difícil é sepultá-lo). Francisco (nome fictício) estava no sofá quando a polícia quebrou o portão e invadiu a sua casa gritando, com armas em punho; o coletor de lixo não reagiu nem para dizer que era trabalhador de carteira assinada; uma pessoa foi sequestrada; depois de liberada disse que o sequestrador tinha uma tatuagem no braço; a polícia olhou seus arquivos e logo chegou ao Francisco, que ficou preso durante dois meses, porque “reconhecido” pelos policiais pela “tatuagem”; a vítima, quando o viu, descartou prontamente sua participação no crime; Francisco foi liberado (sem nenhuma indenização) e perdeu o emprego. Uma vida, uma família e um emprego foram destroçados (veja Agência Pública). Tirania policial e estatal. Milhares de prisões acontecem assim diária e anualmente. A audiência de custódia pode ser um corretivo para esses abusos.
Pode-se também corrigir os abusos na fixação dos valores das fianças. Valores absurdos servem apenas para manter a prisão. A fiança aqui se transforma em fraude libertária. Prisão usada prioritariamente para a contenção da população pobre (ainda que muitos pratiquem crimes não violentos). Daí a presença nas prisões de pouquíssimos ricos (que também praticam crimes escabrosos). O critério da violência (e sua decorrente periculosidade) deveria ser o eixo de mandar ou não mandar alguém para a prisão. Não importa se se trata de rico ou pobre: a violência é um razoável critério de mandar alguém para a cadeia.
Evitar o abuso. O mundo civilizado diz que a prisão de um ser humano deve ser um ato excepcional, não a regra (nesse mesmo sentido é a letra da nossa Constituição); é por isso que ele deve preencher uma série de requisitos legais, constitucionais e internacionais. O que se pretende é, em pleno século XXI, evitar o abuso (ou seja, não permitir que tiranetes e inquisidores torquemadas suprimam indevidamente a liberdade das pessoas).
Ninguém certamente é contra a prisão (instrumento necessário para o controle social e preservação da integridade das outras pessoas), incluindo-se a cautelar (antes da sentença condenatória final): o problema é o abuso, o excesso, a tirania, a tortura ou o despotismo, que é herança da inquisição, impregnada na alma do brasileiro (Darcy Ribeiro). O Brasil (com quase 600 mil presos; 300 para cada 100 mil pessoas) é o 4º país do mundo que mais prende (está atrás de EUA, China e Rússia). Se considerada a prisão domiciliar, passamos para o 3º lugar (com mais de 711 mil presos). De 1990 a 2013, nenhum país do mundo teve mais crescimento da população carcerária que o Brasil (507% de aumento). Ou seja: comparativamente aos outros países, prende-se muito no Brasil. Esse é mais um motivo para se promover o estrito controle do ato excepcional da prisão em flagrante.
Prendemos muito e exorbitantemente mal. As prisões estão abarrotadas e a criminalidade aumenta a cada dia: em 1980, tínhamos 11 assassinatos para 100 mil pessoas; em 2012, chegamos a 29 para 100 mil; das 50 cidades mais violentas do planeta, 19 são brasileiras. Prendemos mal pelo seguinte: 51% dos presos não praticaram crimes violentos (prendemos fundamentalmente marginalizados e muitos deles não são violentos; prende-se inclusive por fatos insignificantes e deixa-se escapar milhares de criminosos violentos).
Conforme o InfoPen, do Ministério da Justiça, o Brasil contava (em 2013) com 41% de presos provisórios. Justiça morosa (demora muito para julgar), que faz da prisão cautelar instrumento de controle social. A falta de educação de qualidade (no século XXI) é o equivalente moral da escravidão dos séculos XVI-XIX (Eduardo Giannetti). A prisão massiva aloprada (no século XXI) é o equivalente imoral da inquisição (dos séculos XVI-XIX). A Justiça “torquemada” (Torquemada foi o inquisidor geral da Espanha, no final do século XV) é o equivalente imoral no século XXI do Santo Ofício.
O déficit de vagas supera 230 mil. O desrespeito a todo tipo de legalidade é abrumador. Dignidade humana não existe nesse local (que o digam os executivos ricos que foram presos recentemente). No Amazonas, mais de 70% dos presos são provisórios. Pior: pesquisa feita em parceria entre o Depen (Departamento Penitenciário Nacional) e o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) apontou que em 37,2% dos casos em que há aplicação de prisão provisória, os réus não são condenados à prisão ao final do processo ou recebem penas menores que seu período de encarceramento inicial. O abuso prisional está mais do que demonstrado. Como combater o mau uso da prisão no Brasil?
Um dos salutares caminhos é a “audiência de custódia” (apresentação do preso em 24h a um juiz, para analisar a legalidade, necessidade e conveniência da prisão, aplicando as medidas substitutivas do art. 319 do CPP, quando o caso). A audiência de custódia representa a civilização (e a racionalidade). Quem a combate (ou cria empecilhos para ela) são as almas impregnadas de inquisitorialismo, de torquemadismo, de autoritarismo patriarcal. Constitui um erro desprezar esses torquemadas remanescentes da Idade Média: eles existem. Aliás, não devemos menosprezar nem sequer a Idade Média: ela inventou uma série de coisas (como o manual da tortura, chamado Malleus Maleficarum) que ainda nos atormentam (diz Umberto Eco). Quando os trogloditas da sociedade anárquica imaginária de Montesquieu (Cartas Persas) procuraram um velho sábio para comandar a cidade, dele ouviram o seguinte: “vocês estão, na verdade, procurando se desfazer do fardo pesado do dever ético e moral; querem substituí-lo pelas leis e pela Justiça, quando a ética e a moral já seria suficiente”.