Marcelo Herval Macêdo Ribeiro e Roberto Barbosa de Moura -
A Lei 13.654/18, em vigor desde o dia 23 de abril, promoveu diversas alterações nos tipos penais concernentes aos delitos de furto e de roubo. Consubstanciando-se na pretensa justificativa de reduzir as ocorrências de assaltos a agências bancárias, o legislador entendeu por aumentar a pena aos referidos delitos, quando praticados mediante o emprego de substâncias explosivas ou arma de fogo.
Ademais, o novo diploma legal, em seu artigo 4º, revogou expressamente o dispositivo referente à majoração da pena pela utilização de “arma”, constante no inciso I do parágrafo 2º do artigo 157 do Código Penal. Neste ponto, o que se observou, com efeito, foi a exclusão do ordenamento jurídico da norma alusiva à circunstância majorante do crime praticado com uso de arma branca (faca, canivete, espada) e arma imprópria (pedra, pedaços de pau, tijolos) — quanto à hipótese de utilização de arma de fogo, a majoração se dará nos termos da nova lei, a saber, 2/3 da pena.
Não obstante, em recente decisão, o juiz de Direito da 2º Vara de São Pedro (SP) reconheceu a inconstitucionalidade formal da Lei 13.654/18, de modo a condenar o réu à majoração da pena em razão do emprego de arma branca (facão), arrimando-se na disposição prevista no (revogado) inciso I, parágrafo 2º, do artigo 157 do Código Penal.
Consoante entendimento do magistrado, “(...) reconheço, ainda, incidentalmente, a inconstitucionalidade da Lei 13.654/18, que revogou o §2º, I, do art. 157 do CP, uma vez que foi na Comissão de Redação Legislativa (CORELE) onde se decidiu pela revogação do §2º, I, sem que houvesse, sobre a matéria, deliberação dos congressistas. Assim, a redação do art. 157, §2º, não corresponde àquela aprovada pelo Congresso, pois suprimido, indevida e ilegalmente, o seu inciso I na fase final de revisão do texto, antes de ser enviado à sanção, padecendo de inconstitucionalidade formal”.
No mesmo diapasão, a 4ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo decidiu pelo reconhecimento da inconstitucionalidade do artigo 4º da Lei 13.654/18. No entendimento do colegiado, “obviamente, a supressão do inciso I do §2º do artigo 157 do Código Penal se deu sem a aprovação do Congresso Nacional, sendo suprimido ilegalmente pela Coordenação de Redação Legislativa (CORELE), e, portanto, criada em ambiente diverso do parlamento, por pessoas não competentes para tanto, não sendo discutida e emanada de parlamentares, antes de ser enviado para a sanção pelo presidente da República”.
Nesse sentido, depreende-se que o fundamento utilizado pelos juízes para declarar, incidentalmente, a inconstitucionalidade do artigo 4º da nova lei repousa no argumento de que, sobre a matéria, não houve escorreita deliberação pelo Congresso Nacional, uma vez que a supressão do dispositivo que previa o aumento de pena pela utilização da arma (leia-se arma branca ou imprópria) havia sido feita pela Coordenação de Redação Legislativa, sem as devidas discussões parlamentares.
No entanto, não é isso que se observa a partir de uma análise mais cuidadosa da tramitação legislativa do diploma em exame.
Inicialmente, cabe salientar que o projeto de lei originário (PLS 149/2015), em seu texto inicial, já previa expressamente a revogação do dispositivo referente à majoração da pena pela utilização de arma. Com efeito, o artigo 3º daquele texto legal dispunha, in verbis, que “fica revogado o inciso I do § 2º do art. 157 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 dezembro de 1940 (Código Penal)”.
Além disso, o próprio parecer da relatoria no Senado (Parecer SF 141) — datado de 8 de novembro de 2017, anterior, portanto, ao envio do texto à Corele — aludia claramente em seu relatório à revogação do mencionado preceito normativo. Conforme narrou o relator do projeto, senador Antonio Anastasia, “trata-se do Projeto de Lei do Senado (PLS) nº 149, de 2015, de autoria do Senador Otto Alencar, que prevê aumento de pena para o crime de roubo, quando praticado com emprego de arma de fogo ou quando houver destruição ou rompimento de obstáculo, mediante o emprego de explosivo ou artefato análogo que cause perigo comum. O projeto ainda aumenta o limite máximo da pena do crime de roubo de que resulta lesão corporal grave e revoga, ao final, o inciso I do § 2º do art. 157 do Código Penal (CP)”.
Relativamente à intervenção da Corele no projeto em análise, vale destacar que sua atuação se restringiu à inclusão da Emenda I (aprovada na 49ª Reunião Ordinária), de autoria da senadora Simone Tebet, pela qual se visou coibir, nos termos consignados pela autora, “tanto a utilização de explosivos para a prática de crimes de furto como o próprio furto de substâncias explosivas ou acessórios que conjunta ou isoladamente possibilitem a sua fabricação, montagem ou emprego”.
O ponto questionado pelos magistrados reside na suposta supressão indevida levada a cabo pela Corele, nomeadamente no que diz respeito à circunstância majorante relativa ao emprego de arma (branca e/ou imprópria). Ocorre, no entanto, como precisamente observam Veiga e Neto, a coordenação apenas “somou o Projeto original e a emenda aditiva I, constando a revogação aprovada pelo CCJ”. Ou seja, apenas se consignou o dispositivo que já constava em texto anteriormente aprovado.
Diante disso, resta descabida a afirmação de que o dispositivo concernente à revogação da circunstância majorante alusiva ao emprego de arma de fogo foi “criado em ambiente diverso do parlamento”, como exarou o acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo.
A um, porque a disposição revogativa constava desde a redação inicial do projeto de lei originário. A dois, porque o próprio relator do projeto reconheceu a revogação da referida circunstância majorante. A três, porquanto a matéria foi devidamente submetida à discussão no Plenário — tanto na Câmara dos Deputados, em reunião ocorrida no dia 28 de fevereiro (cuja aprovação se deu na forma do substitutivo apresentado pelo deputado Alberto Fraga), quanto no Senado Federal, em reunião em 27 de março.
Portanto, faz-se imperioso reconhecer o descabimento da alegação de inconstitucionalidade formal no que diz respeito ao dispositivo que revogou a majoração da pena em razão da utilização de arma branca e/ou imprópria.
Ademais, como sabiamente asseveram Veiga e Neto, ainda que se pudesse cogitar eventual irregularidade decorrente da indevida inclusão de artigo revogativo por iniciativa da Corele (o que se afigura inegavelmente desarrazoado, pelas razões já expostas), “o projeto retornou à casa primeva e foi aprovado em sua totalidade pelo Plenário, sanando, portanto, qualquer vício supostamente existente”.
Vale dizer: a Corele encaminhou o projeto de lei originário à Câmara dos Deputados, que, por sua vez, aprovou o substitutivo apresentado; a matéria retornou ao Senado Federal, no qual foi recebido como “Substitutivo da Câmara de Deputados I, 2018”. No dia 26 de março, o Senado aprovou, sem modificações, o respectivo substitutivo.
Em arremate, como igualmente afirmam Veiga e Neto, “quanto à intenção dos parlamentares, de coexistência das duas majorantes, impossível de se prever, principalmente quando, desde o projeto inicial, havia a expressa revogação do I do parágrafo 2º do artigo 157 do Código Penal”.
Esse cenário se apresenta como um sintoma do que Rubens Casara denomina de “pós-democracia”, pois sua antípoda, democracia, seria “um estado constitucional, em que os direitos e garantias fundamentais de cada pessoa não podem ser afastados ao bel-prazer dos agentes estatais”, algo que a revés do caso apresentado restou evidente “o desaparecimento dos limites” ou, por outras palavras, um limite completamente descartável.
Os julgados apresentam um verdadeiro malabarismo decisório para a concretização da vontade de punir — representante de uma flagrante ilegalidade —, em desrespeito à independência dos Poderes, assim como uma aplicação do check and balances no próprio processo legislativo político criminal, sendo algo completamente controvertido ao fio e ao cabo por irromper toda uma estrutura democrática e constitucional.
O mais grave dessa fissura estrutural, como aponta Casara com esteio nas lições de Piero Calamandrei, é o fato de este regime de ilegalidade gerar uma impossibilidade objetiva da liberdade. Ou seja, esta “(...) mutação simbólica que fez com que a lei tenha perdido importância na regência do Estado levou à perda de uma importante garantia do direito à liberdade de locomoção” (2017, p.147).
A grande questão é até quando será tolerado que a magistratura cometa condutas ao arrepio de todo ordenamento jurídico e em uma completa afronta à liberdade de sujeitos, valor este tão caro, sem passar pelo crivo de instrumentos de legitimação.
Ao fim e em total repúdio a essa ginástica hermenêutica punitiva, cumpre rememorar os ensinamentos de Alberto Silva Franco ao lecionar qual é e qual deveria ser o papel da magistratura: “Juiz penal não é policial de trânsito; não é vigia da esquina; não é zelador do patrimônio alheio; não é guarda do sossego de cada um; não é sentinela do estado leviatânico... É, em resumo, o garante da dignidade da pessoa humana e da estrita legalidade do processo. E seria melhor que nem fosse juiz, se fosse para não perceber e não cumprir essa missão”.