Sergio Fernando Moro
O art.
2.º, II, da Lei 9.613/1998 estabelece o princípio da autonomia do processo e
julgamento do crime de lavagem:
"Art. 2.º O processo e julgamento dos crimes
previstos nesta Lei:
(...)
II - independem do processo e julgamento dos crimes
antecedentes referidos
no artigo anterior, ainda que praticados em outro país;
(...)"
Na
mesma linha, o § 1.º dispõe que "a denúncia será instruída com indícios
suficientes da existência do crime antecedente, sendo puníveis os fatos
previstos nesta Lei, ainda que desconhecido ou isento de pena o autor daquele
crime".
As
regras têm importantes reflexos processuais.
A
autonomia do crime de lavagem significa que pode haver inclusive condenação por
crime de lavagem independentemente de condenação ou mesmo da existência de
processo pelo crime antecedente.
De
forma semelhante, não tendo o processo por crime de lavagem por objeto o crime
antecedente, não se faz necessário provar a materialidade deste, com todos os
seus elementos e circunstâncias, no processo por esse tipo de crime.
Certamente, faz-se necessário provar que o objeto da lavagem é produto ou proveito
de crime antecedente, o que exige produção probatória convincente em relação ao
crime antecedente, mas não ao ponto de transforma-lo no objeto do processo por
crime de lavagem, com toda a carga probatória decorrente.
A
prova do crime antecedente pode ser, na esteira do § 1.º do artigo 2.º,
meramente indiciária. É de se questionar, em vista do que ele estabelece, se a
prova indiciária do crime antecedente seria igualmente suficiente para uma
condenação criminal pelo crime de lavagem, uma vez que o dispositivo se refere
a uma exigência da denúncia? Além disso, se a denúncia pode ser instruída apenas
com indícios do crime antecedente, qual é a exigência probatória em relação ao
próprio crime de lavagem?
Em
realidade, tal dispositivo encerra apenas uma armadilha interpretativa. Afinal,
qualquer crime pode ser provado exclusivamente por meio de prova indireta.
Vale, no Direito brasileiro, o princípio do livre convencimento fundamentado do
juiz, cf. art. 157 do CPP, o que afasta qualquer sistema prévio de tarifação do
valor probatório das provas. O conjunto probatório, quer formado por provas
diretas ou indiretas, ou exclusivamente por uma delas, deve ser robusto o
suficiente para alcançar o standard de prova próprio do processo penal,
de que a responsabilidade criminal do acusado deve ser provada, na feliz
fórmula anglo-saxã, acima de qualquer dúvida razoável.
Nessas
condições, é certo que o termo "indícios" foi empregado no referido
dispositivo legal não no sentido técnico, ou seja, como equivalente a prova
indireta (art. 239 do CPP), mas sim no sentido de uma carga probatória que não
precisa ser categórica ou plena, à semelhança do emprego do mesmo termo em
dispositivos como o art. 126 e art. 312 do CPP1.
Portanto,
para o recebimento da denúncia, basta “prova indiciária”, ou seja, ainda não
categórica, do crime antecedente e, a bem da verdade, do próprio crime de
lavagem, como é a regra geral para recebimento da denúncia em qualquer proceso
criminal. Já para a condenação, será necessária prova categórica do crime de
lavagem, o que inclui prova convincente de que o objeto desse delito é produto
de crime antecedente. Tal prova categórica pode, porém, ser constituída apenas
de prova indireta.
No
Direito Comparado, tem-se entendido que a prova indiciária é fundamental no
processo por crime de lavagem de dinheiro, inclusive quanto à prova de que o
objeto da lavagem é produto de um crime antecedente.
Assim,
por exemplo, nos Estados Unidos, tal prova pode ser satisfeita com elementos
circunstanciais, a expressão usualmente utilizada para representar a prova
indireta. Ilustrativamente2:
a) -
Em United States v. Abbel, 271 F3d 1286 (11th Cir. 1001), decidiu-se que
a prova de que o cliente do acusado por crime de lavagem era um traficante,
cujos negócios legítimos eram financiados por proventos do tráfico, era
suficiente para concluir-se que as transações do acusado com seu cliente
envolviam bens contaminados;
b) -
Em United States v. Golb, 69 F3d 1417 (9th Cir. 1995), entendeu-se que,
quando o acusado por crime de lavagem faz declarações de que o adquirente de um
avião é um traficante e quando o avião é modificado para acomodar
entorpecentes, pode ser concluído que o dinheiro utilizado na aquisição era
dinheiro proveniente de tráfico de entorpecentes;
c) -
Em United States v. Reiss, 186 f. 3d 149 (2d Cir. 1999), a utilização de
subterfúgios para o pagamento de um avião envolvendo conhecido traficante foi
considerada suficiente para estabelecer a procedência ilícita dos recursos
empregados na compra;
d) -
Em casos como United States v. Hardwell, 80 F.3d 1471 (10th Cir. 1996) e
United States v. King, 169 F.ed 1035 (6th Cir. 1999), decidiu-se que a
falta de prova de renda legítima ou suficiente para justificar transações
feitas por criminoso era prova suficiente da origem criminosa dos recursos
empregados.
De
forma semelhante, o Supremo Tribunal Espanhol – STE vem entendendo que a
condenação pelo crime de lavagem não exige a condenação pelo crime antecedente,
que a prova de que o objeto da lavagem é produto de crime antecedente pode ser
satisfeita com prova indiciária e que esta, em geral, tem um papel fundamental
no processo por crime de lavagem de dinheiro. Exemplo3:
a) -
na STS 392/2006 entendeu-se que a prova de que o acusado figurava como
proprietário de embarcação de alta velocidade em Ceuta, do tipo comumente
utilizada para transporte de droga na região do Estreito de Gibraltar, sem ter
renda lícita que pudesse justificar tal propriedade, aliada à prova de que a
embarcação, na única vez em que utilizada, teria sido conduzida por pessoa com
antecedente de crime de tráfico de drogas, eram suficientes para caracterizar o
crime de lavagem de dinheiro;
b) -
na STS 33/2005 decidiu-se que a aquisição de quatro embarcações de alta
velocidade e um veículo, sem que ele tivesse renda de fonte lícita ou fornecido
explicações para as aquisições e para o destino dos bens, aliada à prévia
condenação por tráfico de drogas e à prova de que ele seria dependente de
drogas, eram suficientes para caracterizar o crime de lavagem de dinheiro;
c) -
na STS 1637/1999 entendeu-se que a realização, por pessoa com antecedentes por
tráfico de drogas, de transações elevadas em dinheiro aliada à inexistência de
operações comerciais ou negócios que pudessem justificar a origem da expressiva
quantidade de dinheiro, constituía prova indiciária suficiente de lavagem de
dinheiro proveniente de tráfico de drogas;
d) -
na STS 1704/2001 decidiu-se que a prova do crime de lavagem não depende de
sentença quanto ao crime antecedente e que da realização de operações bancárias
extravagantes envolvendo dinheiro proveniente de tráfico de drogas pode-se inferir
dolo do crime de lavagem5.
Da
referida STS 392/2006, é oportuna transcrição, ainda que longa, da
fundamentação que vêm sendo empregada pelo STE quanto à avaliação da prova
indiciária em geral e desta em relação ao crime de lavagem.
"1. Es doctrina reiterada de esta Sala la eficacia
probatoria de la prueba de indicios y la exigencia de una serie de requisitos
relativos a los indicios y a la inferencia.
'La prueba indiciaria, circunstancial o
indirecta es suficiente para justificar la participación en el hecho punible,
siempre que reuna unos determinados requisitos, que esta Sala, recogiendo
principios interpretativos del Tribunal Constitucional, ha repetido hasta la
saciedad. Tales exigencias se pueden concretar en las siguientes:
1) De carácter formal: a) que en la sentencia
se expresen cuáles son los hechos base o indícios que se estimem plenamente
acreditados y que van a servir de fundamento a la deducción o inferencia; b)
que la sentencia haya explicitado el razonamiento a través del cual, partiendo
de los indicios, se ha llegado a la convicción del acaecimento del hecho
punible y la participación en el mismo del acusado, explicitación, que aún
cuando pueda ser sucienta o escueta se hace imprescindible en el caso de prueba
indiciaria, precisamente para posibilitar el control casacional de la
racionalidad de la inferencia.
2) Desde el punto de vista material es
preciso cumplir unos requisitos que se refieren tanto a los indicios en si
mismos, como a la deducción o inferencia.
Respecto a los indicios es necesario:
a) que estén plenamente acreditados. b) de
naturaleza inequívocamente acusatoria. c) que sean plurales o siendo único que
posea uma singular potencia acreditativa. d) que sean concomitantes al hecho
que se trate de probar. e) que estén interrelacionados, cuando sean varios, de
modo que se refuerzen entre sí.
En cuanto a la deducción o inferencia es
preciso:
a) que sea razonable, es decir, que no
solamente no sea arbitraria, absurda e infundada, sino que responda plenamente
a las reglas de la lógica y la experiencia. b) que de los hechos base
acreditados fluya, como conclusión natural, el dato precisado de acreditar,
existiendo entre ambos un 'enlace preciso y directo según las reglas del
criterio humano.'
2. En el delito de blanqueo de capitales,
provenientes de delitos de tráfico de drogas, se ha venido exigiendo tres
elementos indiciarios, cuya concurrencia podría desembocar en la convicción de
la existencia del delito, lógicamente dependiendo de la intensidad de los
mismos y de las explicaciones o justificaciones del acusado.
Estos indicios consisten en:
a) el incremento inusual del patrimonio del
acusado. b) la inexistencia de negocios lícitos que puedan justificar el
referido incremento patrimonial así como las adquisiciones y gastos realizados.
c) la constatación de un vínculo o conexión con actividades de tráfico de
estupefacientes o con personas o grupos relacionados con los mismos.”
Da
referida STS 1637/1999, extrai-se a seguinte justificativa do STE para sua
jurisprudência:
“A
ello debe recordarse como reflexión criminológica que en delitos como el
enjuiciado, lo usual será contar sólo con pruebas indiciarias y que el
cuestionamiento de su aptitud para provocar el decaimento de la presunción de
inocencia solo produciría el efecto de lograr la impunidad respecto de las
formas más graves de delincuencia entre las que debe citarse el narcotráfico y
las enormes ganancias que de el se derivan, las que se encuentran en íntima
unión con él como se reconece expresamente en la Convención de Viena de 1988 ya
citada.”
No
Brasil, a jurisprudência dos Tribunais de Apelação ainda não é suficientemente
significativa a respeito desta questão. Não obstante, é possível encontrar
alguns julgados adotando o mesmo entendimento, de que a prova indiciária do
crime antecedente seria suficiente. Assim, por exemplo, no julgamento da ACR
2000.71.00.041264-16 e da ACR 2000.71.00.037905-47, o TRF
da 4.ª Região, em casos envolvendo lavagem de dinheiro tendo por antecedentes
crimes de contrabando, descaminho e contra o sistema financeiro, decidiu
expressamente que "não é exigida prova cabal dos delitos antecedentes,
bastando apenas indícios da prática das figuras mencionadas nos incisos I a VII
para que se complete a tipicidade".
O
fato é que o crime de lavagem de dinheiro frequentemente se reveste de certa
complexidade, sendo dificíl revelá-lo e prová-lo. O usual será dispor apenas de
prova indireta de seus elementos, inclusive quanto a origem criminosa dos bens,
direitos e valores envolvidos. Admitir a validade da prova indireta para a
caracterização do crime de lavagem não é algo diferente do que ocorre em
relação a qualquer outro crime. Isso não significa, por outro lado, um
enfraquecimento das garantias do acusado no processo penal, pois a prova, ainda
que indireta, deve ser suficientemente convincente para satisfazer o standard
da prova acima de qualquer dúvida razoável.
Por
outro lado, as regras do art. 76, II e III, do CPP, exigiriam em princípio
unidade de processo e julgamento do crime antecedente com o crime de lavagem.
Ocorre que, se assim fosse, o princípio da autonomia do crime de lavagem
ficaria igualmente sem sentido. Embora o artigo 2.º, II, da Lei 9.613/1998 não
trate explicitamente desta questão, deve ser igualmente interpretado no sentido
de se estabelecer mais uma exceção às já previstas no art. 79 do CPP. Aliás,
pode também ser interpretado como um "motivo relevante" para fins da
separação de processo facultada no art. 80 do CPP. No Projeto de Lei n.º
209/2003 de modificação da Lei de Lavagem, foi proposta solução legislativa
explícita para a questão8, ficando ela dependente de decisão
discrionária do juiz competente para o crime de lavagem, o que talvez seja
oportuno do ponto de vista pragmático.
Assim,
das regras do art. 2.º, II e §1.º, pode-se concluir que:
(a) –
o processo por crime de lavagem é independente em relação ao crime antecedente;
(b)
- não é necessário provar todos os elementos e circunstâncias do crime
antecedente no processo por crime de lavagem, mas apenas que o objeto deste tem
origem em crime antecedente;
(c) -
todos elementos do crime de lavagem, inclusive a origem criminosa dos bens,
direitos e valores, podem ser provados através de prova indireta, desde que
convincente o suficiente para afastar qualquer dúvida razoável;
(d) -
a conexão instrumental entre crime antecedente e de lavagem não implica,
necessariamente, em unidade de processo e julgamento.
Notas
1. A
Exposição de Motivos 692/1996 da Lei de Lavagem, não é conclusivo a esse
respeito. Segundo os itens 60 e 61, a suficiência dos indícios se refere apenas
à denúncia e outra exigência valeria para a sentença. Na perspectiva defendida
nesse texto, de que o termo indícios não foi empregado no sentido técnico, a
assertiva estaria correta. Entretanto, não é possível afirmar qual sentido do
termo indícios os autores da exposição tinham em mente quando de sua
elaboração. Toma-se a liberdade de aqui transcrever os referidos itens:
"60. Trata-se de uma relação de causa e efeito que deve ser equacionada
por meio de fórmula processual que, viabilizando a eficácia da incriminação do
ilícito posterior, exija razoável base de materialidade do ilícito anterior.
Segue-se daí a necessidade de a denúncia pelo delito de ocultação ou
dissimulação de bens, direitos ou valores ser instruída com 'indícios
suficientes da existência do crime antecedente' (§ 1.º do artigo 2.º). Tais
indícios podem restringir-se à materialidade de qualquer dos fatos puníveis
referidos pelo caput do art. 1.º, sem a necessidade de se apontar, mesmo que
indiciariamente, a autoria. Tal ressalva se torna óbvia diante dos progressos
técnicos e humanos da criminalidade violenta ou astuciosa, máxime quanto à
autorizaçaõ da autoria em face da descentralização das condutas executivas. 61.
Observe-se, no entanto, que a suficiência dos indícios relativos ao crime
antecedente está a autorizar tão-somente a denúncia, devendo ser outro o
comportamento em relação a eventual juízo condenatório."
2.
Tais casos e os respectivos resumos foram extraídos de manual dirigido aos
Procuradores Federais norte-americanos, no qual sob o título "Prova
circunstancial é suficiente para demonstrar que a propriedade é proveniente de
atividade criminosa específica" ("circunstantial evidence sufficient
to show property was SUA proceeds"), são arrolados cerca de onze
precedentes (U.S. Department of Justice. Criminal
Division: Asset Forfeiture and Money Laundering Section. Federal Money
Laundering Cases, p.30-31.)
3.
Todos esses julgados podem ser acessados através do site www.poderjudicial.es/jurisprudencia/?nocache=503
. Para uma exposição acerca da jurisprudência do Supremo Tribunal Espanhol
sobre lavagem de dinheiro proveniente de tráfico de drogas, consulte-se GARCIA,
Dolores Delgado. Configuracion
jurisprudencial del delito de blanqueo de dinero procedente del tráfico de
drogas. ¿Inversión de la carga de la prueba? Disponível
em http://www.cej.justicia.es/pdf/publicaciones/fiscales/FISCAL07.PDF,
acesso em 30/05/2008.
4. O
caso é assim ementado: “BLANQUEO DE CAPITALES. Juicio
inferencial sobre el origen del capital encubierto. Los agentes del servicio de
vigilancia aduanera son policía judicial en sentido genérico. Pleno
no jurisdiccional de esta Sala de 14-11-2003.”
5. O
caso está assim ementado: “Blanqueo de dinero procedente de tráfico de
estupefacientes. Problemas de derecho transitorio en
relación con los tipos establecidos en el CP 1.973. No es necesario que haya
recaído sentencia penal en relación con el tráfico de estupefacientes.
Operaciones que ocultan el origen del dinero y favorecen a quien ha obtenido
las ganancias. Indicios de los que se puede deducir el conocimiento del origen
del dinero blanqueado.”
6. ACR
2000.71.00.041264-1 - 8.ª Turma - Rel. Des. Luiz Fernando Penteado - por
maioria - j. 25/07/2007, DE de 02/08/2007.
7. ACR
2000.71.00.037905-4 - 8.ª Turma - Rel. Des. Luiz
Fernando Penteado - un. - j. 05/04/2006, DE de 03/05/2006.
8. O
Projeto de Lei n.º 209/2003, com a redação do substitutivo aprovada pelo Senado
Federal, modifica a redação do inciso II do artigo 2.º da Lei 9.613/1998,
acrescentando que cabe ao juiz competente para o crime de lavagem decidir
acerca da unidade de processo e julgamento deste com o crime antecedente (na
nova redação: "independem do processo e julgamento das infrações penais
antecedentes, ainda que praticados em outro país, cabendo ao juiz competente
para os crimes previstos nesta Lei a decisão sobre a unidade de processo e
julgamento").
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