Damásio Evangelista de Jesus -
Há muito tempo desejava escrever sobre um assunto muito grave e preocupante, mas que, infelizmente, não vem sendo tratado com o cuidado devido. Refiro-me aos episódios das “balas perdidas”, existentes em todas as partes, mas que, no Rio de Janeiro, está chegando a índices assustadores.
Que são balas perdidas? Como o próprio nome indica, são projéteis de arma de fogo que fazem um percurso diferente do que visava o agente que apertou o gatilho, produzindo efeitos, também, diversos dos visados por ele.
No Rio de Janeiro, especialmente onde são frequentes os tiroteios entre grupos do crime organizado e forças policiais, ou de facções criminosas, é grande o número de vítimas de balas perdidas. A configuração topográfica da cidade, com seus morros, assim também como a potência de tiro de armas modernas, favorecem muito essas ocorrências. Um tiroteio travado num morro atinge indiscriminadamente, em outro, abaixo ou acima, casas, edifícios de apartamentos, escritórios, escolas etc. situados a alguma distância, em bairros inteiramente “pacíficos”, produzindo vítimas não visadas pelos atiradores. E isso se dá cada vez com maior frequência. Outro dia foi atingida por bala mortal uma criança que se encontrava dormindo no interior de uma favela.
No Rio de Janeiro, até agora, o ano de 2007 tinha sido o pior. Nesse ano, 279 pessoas tinham sido baleadas, sendo que 21 morreram vitimadas em tiroteios.
Neste ano (2015), no último mês de janeiro, segundo informou a revista “Isto É” de 30 de janeiro, houve 31 pessoas atingidas, das quais 5 morreram. Mais de 1 vítima por dia.
Segundo o site www.globo.com, edição de 1-12-2014, “um estudo da ONU mostra que o Brasil é o terceiro país na América Latina com maior número de mortes por esse tipo de ocorrência. Além da dor da tragédia, as famílias precisam enfrentar também a impunidade.”
De fato, a impunidade é o grande problema. Somente conheço um caso de ocorrência de bala perdida que tenha resultado na condenação do culpado.
A expressão “bala perdida” é equívoca, uma vez que o Código Penal disciplina o fato. Legalmente, trata-se de um caso de aberratio ictus – nome que, em Latim, significa aberração no ataque. O art. 73 do Código Penal prevê o erro na execução do crime (também chamado “desvio do golpe”), só aplicável aos delitos dolosos:
“Quando, por acidente ou erro no uso dos meios de execução, o agente, ao invés de atingir a pessoa que pretendia ofender, atinge pessoa diversa, responde como se tivesse praticado o crime contra aquela”.
Se há dois grupos de malfeitores, A e B, atirando, para matar, um nos componentes do outro, A nos componentes de B e vice-versa, havendo morte de inocente, como já retratado, o autor do disparo responde, nos termos do CP, como se tivesse matado o desafeto (do grupo A ou B). O mesmo ocorre se um dos grupos é de policiais, sem desprezar o emprego de legítima defesa Não é por falta de fundamentos legais que não são investigados e punidos seus autores. É uma questão de prova e de vontade de apuração dos fatos.
Não está alheia a dificuldade de investigar e comprovar o crime dessa natureza. As forças policiais já enfrentam obstáculos para investigar e comprovar crimes mais claros, que acontecem em número muito superior ao de suas capacidades operativas. São levadas, pois, a arquivar casos de balas perdidas por falta de provas. Reconheço que não é fácil conseguir localizar e incriminar o assassino de uma vítima de bala perdida. Muitas vezes são necessários laboriosos e custosos estudos de balística para determinar a área de onde partiu o projétil e, então, investigar até chegar à arma e seu responsável. Muitas vezes é impossível chegar a bom termo.
Em cifras, o Brasil é o segundo país da América Latina em balas perdidas; o terceiro em mortes, só atrás da Venezuela (primeiro) e a Colômbia. O UNRILEC (Centro Regional das Nações Unidas para a Paz, Desarmamento e Desenvolvimento na América Latina e Caribe), em estudo denominado Violência, Arma e Causa das Balas Perdidas na América Latina e Caribe, de junho de 2014, apurou que no Brasil, entre 2009 e 2013, houve 22 pessoas mortas e 53 feridas (www.unlirec.org).
Causas das ocorrências:
Intervenções policiais (perseguições a suspeitos, supostos bandidos);
Tiroteios entre facções criminosas;
Disparos durante conflitos pessoais.
Disparos para o ar (os chamados “tiros alegres”). Neste caso, o fato pode ser enquadrado no art. 132 do CP (perigo para a vida de outrem), mas não temos legislação específica.
Que fazer?
Recomenda-se:
Nos conflitos interpessoais: desarmamento - intensificar o policiamento de fronteiras;
Nas intervenções policiais: melhorar a atividade policial com treinamentos;
Integrar as medidas de controle de armas e prevenção da violência às políticas de segurança do cidadão;
Controlar o comércio de armas;
Equipar as polícias e valorizar sua atividade;
Vigiar os depósitos de armas de fogo, evitando roubos (UNLIREC - Análise de mortes causadas por balas perdidas na América Latina e Caribe).