Damásio De Jesus
Meus leitores devem ter ficado chocados, como eu, ao tomar conhecimento dos pormenores verdadeiramente assustadores do cativeiro em que o engenheiro austríaco Josef Fritzel manteve, durante 24 anos, sua filha Elisabeth, transformada em Branca de Neve. A vítima permaneceu em regime de cárcere privado no porão de sua residência, num abrigo antiatômico perfeitamente vedado, em indescritíveis condições de sobrevivência. Durante esse tempo, violentou-a incestuosamente e dela teve sete filhos, todos dados à vida naquele local espantoso. Alguns deles, quando nasciam, eram levados para a parte superior da casa, onde Fritzel vivia em confortável situação econômica, com sua esposa - a mãe da infeliz seviciada. Foram “adotados“ pelo monstro, que era, ao mesmo tempo, na residência e no cárcere, marido, pai e avô. Outros foram mantidos no cativeiro com a mãe, sem ver a luz do dia.
A pobre mulher libertada, agora com 42 anos, teve extrema dificuldade de se readaptar à luz do dia, precisando usar óculos escuros. Ela e seus filhos estão, todos, passando por tratamento psicológico especial, na tentativa de serem minorados os efeitos do trauma irremediável que sofreram.
Sinceramente, não posso entender tal monstruosidade, aberração moral, degradação humana. Será maldade diabólica? Loucura? As duas coisas ao mesmo tempo? É óbvio que os advogados do engenheiro alegarão insanidade mental para defendê-lo, o que nós, estudiosos do Direito Penal, chamamos de inimputabilidade por doença mental.
Há muitos pontos que precisam ser esclarecidos no caso. Durante 24 anos, como é que nunca chegaram fora sons, gritos, gemidos, provenientes daquele antro de horrores? Como a mulher de Fritzel convivia com aquelas crianças que, de tempos em tempos, lhe apareciam casa adentro, como se fossem novos anõezinhos de Branca de Neve? Nunca desconfiou de nada? Ou foi cúmplice do marido, pelo menos em alguma medida? A própria construção do abrigo nuclear, autorizada pela prefeitura local há mais de 20 anos, não pode ter sido completada sem a ajuda de outras pessoas. Quais? Tudo isso deverá ser apurado pelas autoridades policiais.
Resta-nos um gosto amargo na boca, uma sombra sinistra no nosso panorama visual, um mal-estar de fundo em nosso espírito. Até que profundidade pode descer a maldade humana? Até que ponto suportaremos monstruosidades como essas?
A filósofa Hannah Arendt cunhou, a respeito da ascensão do Nazismo, uma expressão que correu mundo e ficou célebre: a “banalização do mal“.
Estamos assistindo agora a uma nova escalada dessa banalização?
Nos últimos dias, tomamos conhecimento de uma criança de 5 anos jogada do alto de um prédio de apartamentos, ainda com vida, depois de ter sido malferida pelo pai e pela madrasta, segundo a acusação. Não faz muito tempo, tivemos o julgamento e a condenação da jovem que combinou com o namorado a morte de seus pais.
Por que só agora resolvi escrever algumas linhas sobre o assunto?
Ocorre que esses horrores, chocantes e assustadores, não param de acontecer. Lendo os jornais de um só dia, vejo manchetes que se tornaram comuns: “Idosa é espancada até a morte durante assalto“, “Mãe põe fogo em casa com 2 filhas dentro e mata 1, “Maníaco estuprava, roubava e matava mulheres“.
Até a expressão “banalização do mal“ está se tornando banal.