Folha de S.Paulo -
*Texto originalmente publicado neste domingo (29/10) como editorial do jornal Folha de S.Paulo, com o título "Sinais de arbítrio".
Conforme se desenvolve, o processo de combate à corrupção no Brasil vai acumulando seus paradoxos e contradições.
De um lado, notam-se claros sinais de um arrefecimento dos espíritos — o que permitiu a figuras como o senador Aécio Neves (PSDB-MG) e o próprio presidente da República sobreviverem a um conjunto de suspeitas e evidências que, em outro momento, teria motivado um cataclismo em suas bases de sustentação parlamentar.
Num movimento simétrico e inverso, verificam-se sintomas de arbítrio e exagero persecutório por parte de algumas autoridades, não por acaso algumas das mais cortejadas pela opinião pública.
Já condenado por três vezes, em processos que envolvem corrupção e lavagem de dinheiro, o ex-governador Sérgio Cabral (PMDB-RJ) não teve até agora, certamente, sucesso nas tentativas de se dizer vítima inocente de um complô de autoridades mal-intencionadas.
Essa tradicional elaboração retórica seria especialmente inconvincente no caso do ex-governador, cujo rastro de dólares, carros de luxo e pedrarias não tinha como desviar as autoridades do caminho da certeza e da punição.
Eis que, mesmo num caso tão desfavorável, surgem episódios capazes de atenuar, se não a culpa, ao menos as antipatias que anos de alegre destrato à moralidade administrativa suscitavam.
Em função de um entrevero menor, sem dúvida inspirado por suscetibilidades pessoais, o juiz federal Marcelo Bretas determinou a transferência de Cabral à penitenciária de segurança máxima de Campo Grande (MS), onde se encontram grandes traficantes e líderes de organizações criminosas.
Não se pode descartar a possibilidade de que haja entre os detentos quem tenha contas a ajustar com o ex-governador do Rio.
Mesmo excluindo a hipótese mais extrema, não há dúvida de que o regime especialmente rigoroso daquela prisão federal não se coaduna com o comportamento de Cabral — que não protagonizou tentativas de fuga, não orienta a ação de gangues armadas nem organiza revoltas em presídio.
Tudo se deve, aparentemente, a um comentário numa audiência com Bretas: uma referência, talvez provocativa, à suposta liderança da família do magistrado no ramo das bijuterias.
Utilizou-se tal menção como indício de acesso indevido a informações externas. O despacho punitivo foi confirmado por um juiz federal de segunda instância.
O caso admite recurso, e cumpre examiná-lo com urgência. Nada pior, para os objetivos da luta contra a corrupção, do que dar novos argumentos aos que atribuem a um puro espírito inquisitorial os processos em que estão envolvidos.