Por Thiago Lôbo Fleury -
O Brasil tem vivenciado, na última década, uma marcada mudança de paradigma quando o assunto é combate à impunidade, em especial quando relacionada aos denominados crimes de colarinho branco. Até então, era voz corrente que abastados e poderosos escapavam dos rigores da lei, afirmação que as estatísticas confirmavam.
Os instrumentos foram oferecidos lá atrás, na Constituição Federal de 1988, decididamente quando assegurada ao Ministério Público autonomia, independência e competências de que hoje dispõe. Mas foi o julgamento do Mensalão, realizado a duras penas pelo Supremo Tribunal Federal, o divisor de águas, o gatilho que disparou a reversão do status quo.
Foram condenados banqueiros, empresários e políticos pertencentes ao governo de plantão, algo impensável em anos passados, e todos foram presos e cumpriram as respectivas penas. Veio, em seguida, a "lava-jato", a desbaratar o maior esquema de corrupção da nossa história, quiçá do mundo.
E uma vez mais, poderosos foram impiedosamente processados, condenados e presos. Estava, enfim, quebrado o paradigma da impunidade, colmatando lacuna de desigualdade que imperava na nossa jovem democracia, fortalecendo e consolidando instituições de Estado, emprestando à sociedade um sentido maior de justiça e de esperança.
Nem tudo, porém, merece encômios. Há, hoje, uma clara percepção no mundo jurídico de que muitos instrumentos foram indevidamente utilizados e arbitrariamente empregados, em nítida atuação em que os fins justificam os meios, a abalar a concreção do Estado de Direito, com gravíssimas transgressões às liberdades públicas.
Dir-se-á que sem esse choque seria impossível quebrar o amalgama paradigmático da impunidade, fortemente encapsulado na mútua proteção dos ricos e poderosos, avaliação que a história dirá, pois o que está feito, feito está.
Mas é hora de um freio de arrumação. É preciso resgatar o sistema constitucional conformador do verdadeiro Estado democrático de Direito, que na seara penal erige como garantia constitucional pétrea a presunção de inocência, e a que reserva o ordinário cerceio da liberdade de qualquer cidadão à circunstância isolada da condenação criminal transitada em julgado, em que garantida a ampla defesa e o contraditório. A regra, antes das tintas definitivas do pronunciamento jurisdicional, é a liberdade. A prisão é a exceção.
Daí a necessidade de restabelecer o sentido material da prisão preventiva, medida cautelar de natureza processual absolutamente excepcional, de marcada subsidiariedade, e cuja extraordinária legitimidade exige incontestável necessidade, fundada em elementos de inquestionável concretude.
Não foi o que se viu algumas vezes na conhecida "lava-jato", não é o que se observa em muitas decisões hodiernas, a exigir reflexão dos operadores do Direito. Especificamente quanto à notória operação, havia, é certo, realidade favorável à persecução intimidatória, a saber, o entendimento favorável à prisão após condenação em segunda instância, hoje felizmente revertido, e a legislação sobre a colaboração premiada. Faltavam as efetivas delações, que foram surgindo como decorrência da prodigalidade de prisões preventivas decretadas.
Houve, com o máximo respeito, manifesto desvirtuamento do instituto, com encarceramentos sendo utilizados como móvel de obtenção de novos colaboradores, novos elementos de prova, novos investigados, até ruir o esquema, desde o ápice da pirâmide. Ora, então deu resultado? Mas a que custo?
A prisão, como meio de forçar uma delação, nada mais representa do que tortura psíquica qualificada, a exigir profunda reprovação, pois em testilha frontal com as garantias ditadas de forma cogente pelos incisos III, LIV, LV e LVII do artigo 5º da Constituição Federal. Apesar de formalmente válidas, pois confirmadas em segundo grau e mesmo na instância extraordinária, sabe-se que materialmente transgrediam, muitas delas, as liberdades públicas dos cidadãos investigados.
Existem casos em que o suspeito foi preso preventivamente, e assim permaneceu até a confirmação de sua condenação no tribunal, quando iniciada a execução provisória, evidenciando a adoção do instituto como intolerável antecipação da pena. Há outros em que investigados permaneceram presos preventivamente, e ao fim tiveram seus inquéritos arquivados ou foram inocentados, a demonstrar o desvio de finalidade da providência que deveria ser de exceção. Não se pode perder de vista que uma prisão preventiva açodada e injustificada, aliada ao inevitável escândalo midiático (assunto infelizmente rentável, de grande audiência e vendagem), arruína a vida de uma pessoa honesta.
Poder-se-á dizer que foi atingido o anseio da sociedade, ávida por "justiça", pelo efeito midiático do crime, e pelo almejado e abstrato fim da impunidade dos crimes de corrupção e outros correlatos. Talvez. Mas essa percepção imediatista fenece diante da dura transgressão da ordem constitucional, construída pela mesma sociedade brasileira, e cujos garantes são a ela destinados, no que visam assegurar a liberdade dos inocentes, ainda que, reflexamente, possam beneficiar culpados. O bem é maior que o mal.
Portanto, sem olhar para o passado, pensando no hoje e no amanhã, é preciso resgatar o que é de direito em se tratando de prisão preventiva. Ela jamais pode ser meio de obtenção de prova, não deve atender simplesmente ao clamor social, à vultuosidade das investigações e à pseudonecessidade de dar credibilidade ao Estado, não pode vir fundada na abstrata gravidade do crime, em ilações, deduções, pontos de vistas individuais. Mas apenas em elementos concretos, contemporâneos e, por fim, deve ser absolutamente necessária e insuscetível de substituição por outras medidas cautelares legalmente preferenciais.
Fora dessas hipóteses, tem-se o arbítrio estatal. É violência sem nome. É arbitrariedade manifesta. É ato de inequívoca inconstitucionalidade.