Cálculo da pena de multa de acordo com a reforma penal de 1984

Cezar Roberto Bitencourt -

Desde a reforma penal de 1984, o Poder Judiciário, de um modo geral, tem enfrentado dificuldade de encontrar a metodologia adequada na aplicação da pena, especialmente da pena de multa. Objetivando contribuir para com o debate, apresentamos nossa reflexão em relação a aplicação da pena de multa.

 

Sistema trifásico adotado pela reforma penal de 1984. Há um grande equívoco no entendimento que sustenta a aplicabilidade do tradicional sistema trifásico do cálculo de pena assegurado no artigo 68 do Código Penal, o qual seguiu a orientação resultante do conhecido debate de Roberto Lyra (bifásico) e Nelson Hungria (trifásico), vencido por este. A rigor, a Reforma Penal de 1984 mudou toda a sistemática relativamente a pena de multa, desvinculando-a, por completo, da pena privativa de liberdade, e em especial da gravidade do crime e dos próprios tipos penais, vinculando-a expressamente à situação econômico-financeira do infrator.

 

Nesse sentido, é a previsão constante dos artigos 49, 58 e 60, todos do Código Penal, os quais, deixam claro os limites da pena de multa, destacando, inclusive, que na sua aplicação “o juiz deve atender principalmente, à situação econômica do réu” (art. 60). Logo, há completa desvinculação à gravidade do crime e das penas a ele cominadas. Ademais, estabelece seus próprios critérios, os quais denomina de especiais, para a fixação da pena de multa, nos termos do art. 60 do CP, alheios, portanto, aos critérios estabelecidos no art. 59. Aliás, adota, como veremos adiante, o seu próprio sistema trifásico de aplicar a pena pecuniária.

 

Esses aspectos resultam cristalino, inclusive quando autoriza o pagamento da multa, inclusive com desconto em folha, nos seguintes termos: “O desconto não deve incidir sobre os recursos indispensáveis ao sustento do condenado e de sua família.” (art. 50, §§ 1º e 2º). Nessa linha, calha ressaltar que as agravantes e as causas de aumentos da pena de prisão referem-se somente a gravidade do crime e não à situação econômico-financeira do infrator, que é prioritário para aplicação da pena de multa, segundo a dicção do caput do art. 60 do Código Penal. Por isso, essas causas modificadoras da pena (gravidade do crime, circunstâncias, judiciais, legais e causas de aumento ou diminuição) não podem e não devem ser consideradas individualmente na dosimetria da pena de multa, exatamente por que o sistema de seu cálculo é absolutamente distinto, como demonstraremos abaixo.

 

Enfim, constata-se que o sistema dias-multa tem sua própria metodologia de aplicação de penas (diverso daquele descrito no art. 68 do CP), o qual deve ser operacionalizado em duas ou três fases, dependendo das circunstâncias casuísticas, como demonstramos acima. Inegavelmente, os fundamentos e os elementos a serem utilizados na dosimetria da pena de multa são absolutamente diversos daqueles adotados no cálculo da pena privativa de liberdade, sintetizados no art. 68 do Código Penal, tanto que para a pena de multa não existe sequer a denominada “pena-base” sobre a qual as demais causas modificadoras da pena, relacionadas no art. 68, incidiriam. Ora, se não existe sequer a pena base, tampouco poderá haver pena provisória ou definitiva. Essa linguagem não existe para a pena de multa dentro do sistema dias-multa consagrado pela Reforma Penal de 1984.

 

Sistema trifásico da aplicação da pena de multa. Não se pode ignorar o verdadeiro sentido da adoção, pela Reforma Penal de 1984 (Lei 7.209/84), do sistema dias-multa, o qual, leva em consideração, prioritariamente, a condição financeira do infrator, e não, repetindo, a gravidade da infração penal. De notar-se que, ao contrário da filosofia do Código Penal de 1940, os tipos penais não estabelecem mais, ao lado da pena de prisão, a quantidade mínima e máxima da pena de multa, mas tão somente se lhe é aplicável esta pena ou não. Essa é outra grande demonstração da desvinculação da pena de multa da gravidade do crime e de sua metodologia de aplicação de pena.

 

Com efeito, a criação de um capítulo exclusivo (artigos 53 a 58) para a cominação e aplicação da pena de multa, tem sido, equivocadamente, desprezada pela orientação que sustenta a aplicabilidade do sistema trifásico tradicional também na aplicação da pena de multa. Na realidade, a interpretação deve ser feita do conjunto de todo o Código Penal, e não individualmente deste ou daquele dispositivo, para não se perder a grande harmonia que esse diploma penal consagra.

 

Nesse sentido, vejamos como restou definida a aplicação das respectivas sanções penais, quais sejam, da pena de privativa de liberdade e da pena de multa, em capítulo próprio (cap. II e III). Segundo, o art. 53, “as penas privativas de liberdade têm seus limites estabelecidos na sanção correspondente a cada tipo legal de crime”, mas não faz qualquer referência aos limites da pena de multa. Por sua vez, o art. 58 determina que “a multa, prevista em cada tipo legal de crime, tem os limites fixados no art. 49 e seus parágrafos deste Código”, adotando-se, portanto, critérios diferentes para dimensionar as penas aplicáveis às infrações penais que tipifica. Essa distinção é complementada pelo art. 60, segundo o qual, “na fixação da pena de multa o juiz deve atender, principalmente, à situação econômica do réu”, mas referido dispositivo não faz nenhuma referência à gravidade do crime ou suas consequências!

 

Essa disposição legal sobre a pena de multa não representa somente uma previsão programática, mas se trata de norma imperativa orientadora da política de aplicação da pena de multa, considerando prioritária a situação econômica do denunciado, ao contrário da pena de prisão, cujo fundamento básico é a gravidade do crime e da culpabilidade do agente. Toda essa sistemática, criteriosamente disciplinada pelo legislador, não pode ser ignorado pelo intérprete-aplicador, e, na tentativa de dar-lhe atendimento similar, contraria completamente a disciplina diferenciada que atribuiu a cada uma das duas espécies de penas que então cominara aos crimes que tipificou.

 

Com efeito, o Código Penal ao cominar a pena de multa, agora com caráter aflitivo, considerou dois aspectos absolutamente distintos: (i) a renda média que o condenado aufere em um dia, de um lado, e (ii) a gravidade do delito e a culpabilidade do agente, de outro, priorizando, contudo, aquela. Para que se possa aplicar a pena de multa com equidade, entendemos que o seu cálculo, de regra, deve ser feito em duas fases, como regra, ou seja, em duas operações, e, excepcionalmente, em três fases, aliás, semelhante a pena de prisão, cuja terceira fase somente ocorrerá se houver causas de aumento ou de diminuição de pena.

 

 Assim, destacamos as três fases de aplicação da pena de multa, no sistema dias-multa adotando pela Reforma Penal de 1984 são:

 

 Primeira fase: estabelece-se o número de dias-multa dentro do limite estabelecido de 10 a 360 (ART. 49). Na eleição desse número deve-se levar em conta a gravidade do crime, em respeito ao princípio da proporcionalidade, visto que não há mais a cominação individual para cada crime, como ocorria no sistema anterior; deve-se, por outro lado, considerar ainda a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social, a personalidade, os motivos, as circunstâncias e as consequências do crime, bem como todas as circunstâncias legais, inclusive as majorantes e minorantes, nessa fixação.

 

Nesse aspecto, a aplicação da pena de multa diferencia-se da pena de prisão, não havendo uma oportunidade somente para considerar circunstâncias agravantes ou atenuantes ou ainda causas de aumento ou de diminuição. Aqui, o critério para a pena de multa é outro.

 

Nesse sentido, também é o magistério de dois grandes doutrinadores, especialistas em matéria de aplicação de pena, quais sejam, Juarez Cirino dos Santos e Sergio Salomão Shecaira, os quais, como nós, sustentam que para encontrar adequadamente a quantidade de dias-multa aplicável, o julgador deve considerar nessa primeira fase, as agravantes e atenuantes, bem como as causas especais de aumento e diminuição da pena, ao lado das circunstâncias judiciais.

 

 Segunda fase: nesta fase do cálculo da pena de multa deverá ser encontrado o valor de cada dia-multa, e, nessa oportunidade, o julgador valorará somente as condições econômicas do sentenciado, dando-lhe especial importância, segundo determinação do art. 60. Com efeito, aqui, nesta fase não se deverá valorar circunstâncias judiciais, agravantes e causas de aumento, pois elas já foram consideradas para fixar a quantidade de dias-multa a ser aplicada em eventual sentença condenatória. Merece destaque aqui, que todos os aspectos que referem ao crime propriamente, gravidade, circunstâncias, inclusive quanto ao infrator deverão ser consideradas na fixação da quantidade de dias multa.

 

Assim, de posse do número de dias-multa obtido na primeira fase, examinando os dados acima mencionados, passa-se, nesta segunda fase, ao exame dos aspectos necessários para fixar o valor de cada dia-multa, nos limites estabelecidos no art. 49 e seus parágrafos, já referidos. Enfim, para a fixação do valor do dia-multa, leva-se em consideração, tão somente, a situação econômica do acusado, pois a gravidade do crime e a culpabilidade já foram valoradas na primeira operação (primeira fase) para fixar a quantidade de dias-multa. Para a verificação da real situação financeira do apenado, especialmente o quanto ganha por dia, o magistrado poderá determinar diligências para apurar com mais segurança a verdadeira situação do infrator, para se evitar a aplicação de pena exorbitante, algumas vezes (para o pobre), e irrisória e desprezível, outras vezes (para o rico). Dessa forma, atende-se à previsão do ordenamento jurídico-penal, que determina que se leve em conta, principalmente, e não exclusivamente, a situação econômica do acusado.

 

Não havendo elementos probatórios necessários, nos autos, para permitir que a fixação da pena de multa se afaste do mínimo legal, qual, seja, de dez dias-multa (quantidade de dias) e o valor de um trinta avos (situação econômica), como prevê o Código Penal, essa pena deverá ser fixada no mínimo legal.

 

 Terceira fase – esta fase somente poderá ocorrer, quando, por exemplo, mesmo aplicando o valor do dia-multa no máximo (cinco salários mínimos, em regra), o juiz constate que, em virtude da situação econômica do acusado, ela não seja suficiente para puni-lo adequadamente. Nesses casos, poderá elevá-la até o triplo (art. 60, § 1º, do CP), ajustando-a ao fato e ao agente. Observa-se que existem algumas leis extravagantes que cominam penas mais elevadas, mesmo violando as normas gerais do CP, deve-se atendê-las, ante o princípio da especialidade.

 

Nesta terceira fase, é bom que se destaque, não há nenhum fundamento legal para se acrescer dias multa na sanção imposta. A quantidade de dias, em outros termos, somente pode ser fixada na primeira fase, com os fundamentos expostos no art. 49, como já demonstramos.

 

Já é hora de doutrina e jurisprudência atentarem para essas diferenças e adequarem-se verdadeiramente ao sistema dias-multa, observando seu fundamento original insculpido lá no art. 55 do Código Criminal de 1830, verbis: “A pena de multa obrigará os réus ao pagamento de uma quantia pecuniária que será sempre regulada pelo que os condenados puderem haver em um dia pelos seus bens, empregos ou indústria, quando a Lei especificadamente não a designar de outro modo”.

 

 A despeito da prevalência de alguns julgados dos tribunais superiores, nesse sentido, os juízes de outras instâncias não são obrigados a segui-los, ressalvadas matérias abrangidas pelas denominadas súmulas vinculantes, as quais, mesmo assim, nos parecem não limitar a independência judicial consagrada na Carta Constitucional. Nessa linha, merece destaque a coragem, coerência e acerto do Des. Ricardo Dipp que, segundo a Revista Conjur, teria dito que “a jurisprudência não deve engessar a atividade de juízes, como se todos fossem ‘soldadinhos de chumbo’”.

 

Nessa entrevista que deu a Conjur o digno e culto Des. Ricardo Dipp discorrendo sobre a independência do Juiz foi cirúrgico ao afirmar que: “Tem-se crescentemente falado em independência do Poder Judiciário, e cada vez menos na independência do juiz. A independência verdadeira na função jurisdicional é a de cada juiz, do magistrado lá de Mirante de Paranapanema, de Itapecerica da Serra, da minha antiga Comarca de Sertãozinho, do juiz substituto que está proferindo sua primeira sentença. Essa independência é que interessa para nós enquanto partícipes do bem comum”.

 

Por isso, eventuais decisões dos Tribunais Superiores nesse ou naquele sentido, aqui ou acolá, não obrigam e não amarram um Juiz independente que, conhecedor da causa de todas as circunstâncias, precisa ver respeitada a garantia constitucional de sua independência para julgar livre de imposições, precedentes ou súmulas desta ou daquela natureza, ancorado somente no dever constitucional de fundamentar adequadamente suas decisões e amparado no direito e na sua consciência. Nessa linha, nada melhor que concluir com esta resposta do desembargador Ricardo Dipp, verbis:

 

“No campo do Direito precisamos dar audição ao ensinamento da jurisprudência doutrinária e da pretoriana, mas, como disse muito bem o ministro [aposentado] Cesar Peluso, nosso respeito maior é, ao divergirmos dessa jurisprudência, mostrar por que divergimos, e não sempre acatar tudo, como se fôssemos “soldadinhos de chumbo”. Hoje a doutrina perdeu muito espaço factual como fonte do Direito; o costume, nem se diga; só se atende aos julgados de turno. Ainda bons doutrinadores têm, às vezes, incidido em conduta que, com todo o respeito, não me parece adequada: “Sempre pensei, dizem, que isto fosse branco, mas, como o Supremo disse outro dia que é vermelho, passo a dizer que é vermelho”. Não se trata de persuasão, mas de adesão ao critério do magister dixit”.

 

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