Emerson Paxá P. Oliveira -
Passadas algumas semanas da prolação da sentença condenatória do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva que, acatando parcialmente a tese volvida na denúncia, o condenou à pena de 9 anos e 6 meses de reclusão pela prática dos delitos de corrupção passiva (art. 317, caput c/c § 1º do Código Penal) e de lavagem de dinheiro (art. 1º, caput da Lei 9.613/1998), é importante destacar alguns pontos específicos acerca da imputação de lavagem de capitais reputada procedente.
Isso porque o referido julgado contrasta com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal fixada no julgamento da Ação Penal 470-MG, o “caso do mensalão”. Em advertência ao leitor, convém destacar, desde logo, que o presente texto tem por objeto unicamente a dissecação de alguns dos aspectos dogmáticos da condenação de lavagem de dinheiro envidada na sentença em relação ao ex-presidente Lula e a integridade de sua lógica argumentativa, não se tratando de apreciação da prova dos autos, às quais não obtivemos acesso.
Tampouco será objetada aqui qualquer consideração a respeito da conformação do crime de corrupção passiva e dos fundamentos jurídicos que levaram o juízo a entender pela procedência da acusação, independentemente de seus erros ou acertos.
Também não há espaço aqui para uma análise carregada de simpatia ou antipatia pela figura do ex-presidente ou qualquer argumento inflamado por paixões políticas. Trata-se de uma análise estritamente técnica da questão posta na sentença.
Feitas essas considerações preliminares, o episódio de que cuida o julgado, em curtíssimo resumo, guarda relação com o desmantelamento de um complexo e sistemático esquema de corrupção concebido nos meandros da Petrobrás, em que a cúpula diretora da indigitada sociedade de economia mista promovia o recebimento e a “repartição de vantagem indevida entre agentes da Petrobrás, agentes políticos e partidos políticos.” (sic, fls. 192 da sentença em questão).
As investigações decorrentes da, assim chamada, operação “lava jato” revelaram um contexto em que diversas empresas, sobretudo empreiteiras que mantinham contratos com o governo federal, repassavam vantagens a agentes públicos, muitas vezes transmitindo percentuais de contratos mantidos com a administração direta ou indireta federal, com o fim de obterem alguma espécie de vantagem concorrencial naquele setor ou serviço específico, fraudando licitações, dentre outras práticas desleais, preservando-se a concessão das facilidades à margem da lei aos referidos entes particulares.
Desprezando-se as demais circunstâncias que permeiam a imputação, cuja análise minuciosa não calha aqui ser feita, é oportuno destacar que o ex-presidente é acusado de participar dos episódios de corrupção e ser beneficiário direto da propina paga pela OAS a executivos da Petrobras e repartida com o Partido dos Trabalhadores, sobretudo porque era, ao tempo dos fatos, o agente público diretamente responsável pela escolha e nomeação dos membros que compunham a cúpula diretiva da petrolífera.
Lula foi condenado por lhe ser reservado (sic), a título de corrupção passiva, o montante de R$ 2.552.472,00, correspondente à indevida vantagem decorrente do acerto da corrupção (sic), que lhe teria sido destinada pelo grupo OAS na conta geral de propinas que era mantida junto à empreiteira. Tais valores teriam sido reservados em seu favor e de sua esposa, não chegando a lhes ser efetivamente entregues.
O prêmio pela prática de ato com violação do dever funcional ocorreu através da atribuição (sic), ocorrida no ano de 2009, de um apartamento em um empreendimento imobiliário localizado na cidade de Guarujá (SP), o famoso tríplex nº 164-A do Condomínio Solaris. Inicialmente um apartamento de valor inferior localizado em andar mais abaixo que, segundo a sentença, depois se convolou naquele de nº 164-A, muito mais valorizado.
O imóvel permaneceu registrado em nome do grupo OAS, desde 2009 (ano em que a OAS Empreendimentos adquiriu o empreendimento da Bancoop), e, no ano de 2014, foram efetuadas despesas com a reforma e adequação do referido imóvel, supostamente, aos gostos e interesses da família de Lula, às expensas da própria empreiteira.
Portanto, como já dito, o valor correspondente ao preço do imóvel e as despesas com a reforma seriam equivalentes ao valor da indevida vantagem reservada a Lula na conta geral de propinas mantida pelo Grupo OAS (parágrafo 892 da sentença).
A respeito do crime de lavagem dinheiro, portanto, concluiu o magistrado prolator que:
A atribuição a ele de um imóvel, sem o pagamento do preço correspondente e com fraudes documentais nos documentos de aquisição, configuram condutas de ocultação e dissimulação aptas a caracterizar crimes de lavagem de dinheiro. A manutenção do imóvel em nome da OAS Empreendimentos, entre 2009 até pelo menos o final de 2014, ocultando o proprietário de fato, também configura conduta de ocultação apta a caracterizar o crime de lavagem de dinheiro. A agregação de valor ao apartamento, mediante a realização de reformas dispendiosas, mantendo-se o mesmo tempo oculta a titularidade de fato do imóvel e o beneficiário das reformas, configura igualmente conduta de ocultação apta a caracterizar o crime de lavagem de dinheiro.” (fls. 200, sic).
Ora, muito claramente, entende o juiz Sérgio Fernando Moro que o pagamento da corrupção (verbo receber do art. 317, CP), se feito de forma velada ou por intermédio de um estratagema em que a indevida vantagem repassada ao agente público seja, de algum modo, ocultada, configura conduta típica do art. 1º, Lei 9.613/1998.
Tal posicionamento já era professado, no plano acadêmico, pelo próprio professor Sérgio Fernando Moro em sua muito bem conceituada obra Crime de Lavagem de Dinheiro, ao asserir que “A título exemplificativo, em crime de corrupção, o produto pode ser pago diretamente pelo corruptor ao corrupto mediante a aquisição de alguma propriedade em nome de interposta pessoa. Tal fato caracterizaria o crime de lavagem, e é de duvidar da possibilidade de sua segmentação em três etapas.”.
Contudo, a despeito dos argumentos contidos no julgado em apreço, há aqui um ponto que se mostra dissonante da posição firmada no julgamento da ação penal originária 470-MG pelo STF. Citamos, a título ilustrativo, a tese vencedora lançada nos acórdãos de julgamento dos sextos (ler aqui) e décimos sextos (ler aqui) Embargos Infringentes opostos em face do acórdão condenatório da AP 470-MG.
Nesse ponto, é salutar a transcrever excerto do voto do ministro Luís Roberto Barroso, quem abriu a divergência, ao asserir que “Assim, conforme já destacado pelos votos vencidos, o crime de corrupção passiva, na modalidade receber, consuma-se no momento do pagamento da vantagem indevida, dada a sua natureza material. Desse modo, o recebimento da propina pela interposição de terceiro constitui a fase consumativa do delito antecedente, tendo em vista que corresponde ao tipo objetivo “receber indiretamente” previsto no art. 317 do Código Penal.” (fls. 19, dos 16os Embs. Infs., g.n.).
Ainda segundo Barroso: “O recebimento por modo clandestino e capaz de ocultar o destinatário da propina, além de esperado, integra a própria materialidade da corrupção passiva, não constituindo, portanto, ação distinta e autônoma da lavagem de dinheiro. Para caracterizar esse crime autônomo seria necessário identificar atos posteriores, destinados a recolocar na economia formal a vantagem indevidamente recebida.” (fls. 19, dos 16os Embs. Infs.; g.n.).
Providencial é, também, o voto da ministra Rosa Weber na apreciação dos sextos Embargos Infringentes, ao destacar que “A circunstância de o recebimento ter ocorrido às ocultas nada mais é do que elemento ínsito ao delito de corrupção passiva, pois, reafirmo, quem recebe vantagem indevida em razão do cargo não o faz à luz do sol, mas sim às escondidas. E por integrar, o recebimento dos R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais), a própria fase consumativa do delito de corrupção, não pode ser considerado para delinear simultaneamente o delito de lavagem de dinheiro.” (fls. 58, dos 6os Embs. Infs.; grifo nosso).
Importa fazer referência aos votos do, sempre muito técnico, saudoso ministro Teori Albino Zavascki, e também de Marco Aurélio e Ricardo Lewandowski proferidos em ambos os julgados, os quais não replicamos por limitações espaciais, sagrando a tese vencedora nos sexto e décimo sexto Embargos Infringentes.
Portanto, não é preciso maiores esforços para se perceber que a condenação imposta ao ex-presidente Lula por crime de lavagem de dinheiro, nos moldes em que estabelecidos na sentença proferida pelo Juízo da 13ª Vara Federal de Curitiba, contraria, sobremodo, a posição firmada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da AP 470-MG.
É forçoso reconhecer que o precedente do “caso do mensalão” julgado pelo STF tem importância transcendente no trato da questão, na medida em que exarado no âmbito de uma ação penal originária cuja cognição é ampla e exauriente, muito além dos posicionamentos já trazidos ao longo de julgamentos de recursos extraordinários ou pela estreita via do Habeas Corpus, desde a edição da Lei 9.613/98.
Ademais, para além da instrumentalização do precedente do STF como uma espécie de argumento de autoridade, mas atento aos aspectos dogmáticos candentes no julgado, nos parece estar com a razão o Supremo.
É preciso, com efeito, que, para a configuração do delito de branqueamento de capitais, existam atos posteriores à obtenção do proveito econômico pelo agente corrompido, distintos e separados no plano fenomênico, que se mostrem idôneos à consubstanciação de um comportamento de ocultação ou dissimulação de lucros criminosos (primeira e segunda etapas do ciclo de lavagem de dinheiro), referidos pelo caput do art. 1º, da Lei 9.613/1998.
É necessário, portanto, o descolamento do evento de recebimento da indevida vantagem pelo servidor público, em sua dimensão fática, daquelas condutas ulteriores que visam a reinserir os bens ou valores contaminados pela prática criminosa no círculo econômico formal, como se lícitos fossem. Há uma separação lógica, no tempo e no espaço, entre a obtenção da vantagem ilegal e os atos posteriores de branqueamento. Nesse sentido, estão as irretocáveis lições do professor da Universidade do Largo de São Francisco Pierpaolo Cruz Bottini.
Tal consideração é, inclusive, uma das premissas pragmáticas que justificam a progressiva autonomização do delito de lavagem de dinheiro em detrimento das infrações penais antecedentes, ladeada pela lesividade específica que a mesma provoca na circulação legítima de dinheiro sujo na economia lícita, do mercado de capitais e do sistema financeiro nacional, justificando a tutela penal de um bem jurídico autônomo e a exigência de um especial motivo de agir nos comportamentos abstratamente tipificados pelo art. 1º, Lei 9.613/1998.
Não há como se exigir, sob outro prisma, que o autor do crime de corrupção passiva, no ato de recebimento da indevida vantagem, o faça de modo aberto ou escancarado, de maneira que não possa garantir o proveito do crime do qual é beneficiário.
Dito de outra forma: não se é dado impor ao autor de delito de corrupção que não tome as devidas precauções para tornar seguro o momento de incorporação da indevida vantagem à sua esfera de disponibilidade e a consequente fruição do lucro do crime, sob pena de lavagem de capitais.
É ação mais do que natural e esperada o percebimento das vantagens ilícitas de maneira oculta, seja pelo recebimento indireto de bem em nome de interposta pessoa, seja por qualquer outro estratagema voltado a encobrir a entrega da vantagem prometida.
Tais condutas, ainda que levadas a cabo de forma velada, estão claramente incluídas no contexto típico do comportamento voltado à consumação do crime de corrupção passiva na modalidade receber ou no seu exaurimento quando praticado nas hipóteses de solicitar ou aceitar promessa de vantagem ilegal.
No caso do ex-presidente, segundo se colhe da sentença, o acerto da corrupção (indevida vantagem) jamais foi efetivamente entregue. Foi-lhe, de outro modo, reservado numa conta geral de propinas, de forma que a sentença aponta para o fato de que praticou o delito de corrupção na modalidade aceitar promessa de indevida vantagem.
No ano de 2009 lhe foi atribuída a propriedade de fato do imóvel, permanecendo registrado em nome da OAS Empreendimentos, sendo que, no ano de 2014, foram dispendidos pela empreiteira gastos com uma reforma em favor do ex-presidente.
Não há notícia na sentença de que o bem tenha sido efetivamente entregue ao réu como preço de corrupção, e permanecido sob a sua esfera de disponibilidade, uso ou fruição, o que chega a suscitar dúvidas, inclusive, quanto ao exaurimento da corrupção passiva afirmado no julgado.
Há uma diferença semântica e, sobretudo, ontológica abissal entre o ato expressamente citado na sentença de atribuir (reservar, destinar) a propriedade do imóvel e a ação de receber (tomar para si, perceber), de modo que, se efetivamente não houve a entrega, o recebimento ou fruição do bem, ainda que indiretamente ou de modo oculto, não há que se falar no exaurimento do delito de corrupção passiva e prejudicada estaria a imputação de lavagem de capitais, eis que inexistente proveito econômico lavável.
Assim, afigura-se ilógica a subsistência de atos típicos de ocultação ou dissimulação previstos no caput do art. 1º da Lei 9.613/98, já desde o ano de 2009, imputados ao ex-presidente, com a atribuição de propriedade de fato do referido imóvel por parte do grupo OAS como acerto da corrupção, antes mesmo do efetivo recebimento da indevida vantagem do crime antecedente, que seria o marco consumativo ou o próprio exaurimento do delito anterior.
Por último, ainda que, heuristicamente, se objete como efetivamente ocorrido na espécie o recebimento do apartamento pelo acusado, o ato de lavagem de dinheiro afirmado na sentença não ultrapassaria a consumação ou o exaurimento do crime tido por antecedente.
Inexistindo atos posteriores, passados no plano material e desvinculados da tipicidade do crime de corrupção passiva, suficientemente idôneos para configurar uma conduta de ocultação ou dissimulação, é inexorável a assertiva de que o crime de lavagem de capitais imputados na espécie é atípico.
Inobstante já apontássemos para tal fato desde a divulgação da denúncia formulada pelo MPF, assim como a afirmação de existência do crime contida na sentença possa render outras críticas de ordem dogmática, como o ferimento ao bem jurídico tutelado, a presença de um especial motivo de agir, etc., sob o aspecto aqui delineado, o julgado diverge visceralmente da posição fixada pelo STF no julgamento da AP 470-MG, motivo pelo qual acreditamos que a defesa terá melhor sorte ao longo da fase recursal.