CONDUÇÃO DE PRESO NO COMPARTIMENTO DE CARGA: POSIÇÃO CONTRÁRIA

Frederico Afonso Izidoro -  

Começamos o ano de 2017 com rebeliões em presídios nos estados do Amazonas, Rio Grande do Norte e Roraima, com dezenas de mortes. 

A edição de um Decreto autorizando o emprego das Forças Armadas para a Garantia da Lei e da Ordem no sistema penitenciário brasileiro em decorrência de tais rebeliões, demonstrou a gravidade dos fatos, e a atenção voltou-se para o sistema medieval penitenciário brasileiro. 

Nosso País detém a 3ª maior população carcerária mundial com mais de 700 mil presos (http://www.cnj.jus.br/sistema-carcerario-e-execucao-penal/cidadania-nos-presidios) e a situação só tende a piorar. 

Do pensamento coloquial “aprendemos por amor ou pela dor”, vamos em frente então com os “analgésicos”! 

Em 19 de outubro de 2016 entrou em vigor a Resolução do CONTRAN nº 626/16, a qual estabeleceu os requisitos de segurança para veículos de transporte de presos e outras providencias, trazendo como regra (exceção na prática) o art. 1º “Os veículos fabricados e transformados para transporte de presos deverão obter o Certificado de Adequação à Legislação de Trânsito (CAT), e atender aos requisitos da presente Resolução”, e como exceção (regra na prática) o art. 2º “Fica excepcionalizado o transporte provisório e precário, por motivo de força maior, de suspeitos do cometimento de crime em compartimento de carga de viaturas policiais”, com o paradoxal parágrafo único: “É proibido o transporte de presos em compartimento de proporções reduzidas, com ventilação deficiente ou ausência de luminosidade”. 

Em março de 2014 uma mulher foi “socorrida” no compartimento de carga de uma viatura da Polícia Militar do Rio de Janeiro, cuja porta abriu e seu corpo foi arrastado por 350 metros. Em artigo de nossa autoria à época, descrevemos essa aberração (http://webserver.diplomatique.org.br/acervo.php?id=3058). Concluímos que ela teve tratamento pior que o dispensado aos animais. 

Dois anos e meio após o fato acima, como se já não tivéssemos um caso emblemático, surge essa “pérola do CONTRAN”. 

O art. 2º, “caracterizado como exceção”, autoriza o transporte de seres humanos suspeitos do cometimento de crime no compartimento de carga “por motivo de força maior”, mas deixando claro que o ‘porta-mala’ (desculpe o trocadilho), deve ser amplo, com ventilação eficiente e luminosidade! Existe algum porta-malas assim no Brasil? Somente nas pick-ups, que não são utilizadas em regra como viaturas policiais. 

De início já temos um erro doutrinário, pois força maior advém de elemento da natureza, ou “act of God” como afirma Maria Helena Diniz (RT, 702:67, 410:169), ou ainda, “Força maior é o acontecimento exterior, independente da vontade humana, fato imprevisível e estranho à vontade do homem, acidente cuja causa é conhecida, mas que se apresenta com nítido caráter de irresistibilidade. Fenômenos da natureza (cataclismos, terremotos, ciclones, furacões, raios, inundações, erupções vulcânicas, maremotos, trombas d´água), entre outros fatos que, comprovados, se apresentam com o traço de inevitabilidade mesmo diante das possibilidades técnicas de nossos dias, impotentes para evitar-lhes os efeitos, configuram a força maior, evento imprevisível e alheio à vontade do sujeito a quem se pretende atribuir a responsabilidade pelo prejuízo causado”. (JUNIOR, José Cretella. Direito administrativo brasileiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 631-32.). Acredito que o pensamento do “legislador” seria caso fortuito e não força maior. 

O veículo Toyota Hilux é muito utilizado como viatura policial no Brasil. Vejamos assim, o que diz “aquele livrinho”, que poucas pessoas leem, chamado “Manual do Proprietário”: 

Página 2-9: ATENÇÃO!

“Jamais deixe que pessoas viajem no compartimento de bagagem. O compartimento de bagagem não foi projetado para transportar pessoas. Pessoas devem viajar sentadas nos bancos, protegidas pelos cintos de segurança. Caso contrário, estão muito propensas a sofrer graves ferimentos em caso de freadas bruscas ou de colisão”. 

No âmbito do Direito Internacional dos Direitos Humanos, temos o chamado “núcleo inderrogável” (ou “núcleo duro”) dos direitos humanos. É uma espécie de cláusula pétrea humanista, que já, de início, bloqueia qualquer pensamento no sentido de relativizar determinados direitos fundamentais em prol da coletividade. Sim é possível, e até concordo, com a relativização de alguns direitos, porém, jamais, com o “núcleo inderrogável”! 

O Pacto de São José da Costa (PSJCR), nossa norma mais importante do Sistema Regional Americano de Direitos Humanos afirma sobre o “Direito à integridade pessoal” (art. 5º) que: 1. Toda pessoa tem direito de que se respeite sua integridade física, psíquica e moral. 2. Ninguém deve ser submetido a torturas nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes. Toda pessoa privada da liberdade deve ser tratada com respeito devido à dignidade inerente ao ser humano. 

Se já não fosse suficiente, cabe lembrar que tal norma faz parte do “núcleo inderrogável”, ou seja, conforme art. 27, nº 1 e 2, do PSJCR, nem “Em caso de guerra, de perigo público, ou de outra emergência que ameace a independência ou segurança do Estado Parte”, tal direito poderá ser suspenso, ou seja, não há possibilidade de relativização. 

Controle de convencionalidade das leis 

A Resolução do CONTRAN aqui discutida, é um ato normativo (chamado por alguns de atos secundários) e pode ser objeto de controle incidental de constitucionalidade.

Cabe lembrar também que desde fevereiro de 2015, por meio de uma Carta de Intenções (http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=285129) entre o STF e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), o Brasil vem aplicando o chamado controle jurisdicional de convencionalidade das leis, ou seja, além do paradigma constitucional, temos também os tratados internacionais sobre direitos humanos e os tratados internacionais comuns.

O ato normativo editado pelo CONTRAN afronta diretamente a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, a qual ocupa posição de supralegalidade no ordenamento jurídico brasileiro, e dessa forma, por paralelismo ao controle incidental de constitucionalidade, caberia aqui o controle difuso de convencionalidade. 

Audiência de custódia

Nosso Tribunal de Justiça paulista, por meio do Provimento conjunto TJ/SP 03/15 acerca da audiência de custódia, já deixou cristalino em seus “Considerandos”, que o Brasil ratificou a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) em 1992 e o art. 6º permiti ao juiz questionar, dentre outras questões, sobre a própria prisão.

Uma pergunta básica do juiz ao então preso: “como você foi transportado até o cárcere”? Ou ainda, “como foi o seu transporte hoje para esta audiência”? E a resposta: “vim no chiqueirinho”, que segundo o dicionário Michaelis é também “A parte traseira do carro de polícia para transporte de pessoas detidas ou prisioneiros”. 

O CONTRAN, com tal Resolução, ignorou a característica básica dos direitos humanos chamada inerência (Princípio da Personalidade Jurídica), ou seja, o ser humano tem o direito de ser reconhecido como tal em qualquer situação, e colocou o ser humano “acusado do cometimento de crime” no chiqueiro, quer dizer chiqueirinho, depois dos porcos, pois não é permitido conduzir animais no compartimento de cargas. Não há como não lembrar do célebre documentário Ilha das Flores de 1989 (https://www.youtube.com/watch?v=e7sD6mdXUyg), com a narração ímpar de Paulo José:

“O que coloca os seres humanos da Ilha das Flores depois dos porcos na prioridade da escolha de alimentos, é o fato de não terem dinheiro, nem dono. O ser humano se diferencia dos outros animais pelo telencéfalo altamente desenvolvido, pelo polegar opositor e por ser livre. Livre é o estado daquele que tem liberdade. Liberdade é uma palavra que o sonho alimenta, que não há ninguém que explique, e ninguém que não entenda”.

 

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