CONSIDERAÇÕES SOBRE A LEI N° 14.228/2021

Por Vicente de Paula Ataide Junior e Francisco José Garcia Figueiredo -  

1) Introdução

As presentes considerações se referem à Lei n° 14.228, de 20 deste mês [1], publicada no DOU no dia 21, com previsão de vigência após decorridos 120 dias de sua publicação oficial (cf. artigo 5º), ou seja, para o dia 18 de fevereiro de 2022, consoante forma de contagem determinada pelo artigo 8º, §1º, da Lei Complementar n.° 95/1998.

A redação da lei é a seguinte:

"Artigo 1º — Esta lei dispõe sobre a proibição da eliminação de cães e gatos pelos órgãos de controle de zoonoses, canis públicos e estabelecimentos oficiais congêneres, salvo as disposições específicas que permitam a eutanásia.
Artigo 2º — Fica vedada a eliminação da vida de cães e de gatos pelos órgãos de controle de zoonoses, canis públicos e estabelecimentos oficiais congêneres, com exceção da eutanásia nos casos de males, doenças graves ou enfermidades infectocontagiosas incuráveis que coloquem em risco a saúde humana e a de outros animais.
§1º. A eutanásia será justificada por laudo do responsável técnico pelos órgãos e estabelecimentos referidos no caput deste artigo, precedido, quando for o caso, de exame laboratorial.
§2º. Ressalvada a hipótese de doença infectocontagiosa incurável, que caracterize risco à saúde pública, o animal que se encontrar na situação prevista no caput deste artigo poderá ser disponibilizado para resgate por entidade de proteção dos animais.
Artigo 3º — As entidades de proteção animal devem ter acesso irrestrito à documentação que comprove a legalidade da eutanásia nos casos referidos no artigo 2º desta lei.
Artigo 4º — O descumprimento desta Lei sujeita o infrator às penalidades previstas na Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998 (Lei de Crimes Ambientais).
Artigo 5º — Esta lei entra em vigor após decorridos 120 dias de sua publicação oficial"
.

2) A proteção jurídica de cães e gatos no Brasil

Cães e gatos, certamente por gozarem da posição de membros protagonistas das famílias multiespécies [2], desfrutando de uma privilegiada afetividade humana (geralmente recíproca), são animais dotados de um mais bem reforçado estatuto de direitos fundamentais necessários à sua vida e existência dignas.

No plano normativo federal, já contam com a proteção especial do tipo penal qualificado, descrito do artigo 32, §1º-A, da Lei n° 9.605/1998 (introduzido pela Lei Sansão — n° 14.064/2020, há um ano em vigor), que recrudesce a punição para quem ofende a dignidade de cães e gatos, deles abusando, maltratando, ferindo ou mutilando.

Mas outras leis federais, bastante recentes, deixam claro a plenitude da capacidade jurídica dessas espécies animais, com a garantia do direito à vida e à integridade física e psicológica.

A primeira delas é a Lei n° 13.426/2017, que disciplina a política de controle de natalidade de cães e gatos nas cidades.

Essa lei federal veio para abolir a prática do extermínio de cães e gatos, como meio de manejo populacional, garantindo-lhes o direito à vida, e para impor a realização de políticas públicas municipais para o controle adequado da população desses animais, inclusive por meio da educação, de modo a garantir-lhe existência digna, livre do sofrimento decorrente do abandono.

Segundo o artigo 1º dessa lei, "o controle de natalidade de cães e gatos em todo o território nacional será regido de acordo com o estabelecido nesta Lei, mediante esterilização permanente por cirurgia, ou por outro procedimento que garanta eficiência, segurança e bem-estar ao animal".

A esterilização de animais "será executada mediante programa em que seja levado em conta: I — o estudo das localidades ou regiões que apontem para a necessidade de atendimento prioritário ou emergencial, em face da superpopulação, ou quadro epidemiológico; II — o quantitativo de animais a serem esterilizados, por localidade, necessário à redução da taxa populacional em níveis satisfatórios, inclusive os não domiciliados; e III — o tratamento prioritário aos animais pertencentes ou localizados nas comunidades de baixa renda" (artigo 2º).

O programa de esterilização cirúrgica de cães e gatos nas cidades, previsto na lei, necessariamente "desencadeará campanhas educativas pelos meios de comunicação adequados, que propiciem a assimilação pelo público de noções de ética sobre a posse responsável de animais domésticos" (artigo 3º), em atividade pedagógica conhecida como educação animalista [3].

As disposições da Lei 13.426/2017 foram agora complementadas pela nova lei federal a seguir considerada.

Registre-se, por oportuno, que também no âmbito das legislações estadual e municipal se observa o mesmo reforço específico de proteção jurídica a cães e gatos.

Como exemplo, o Código Estadual de Proteção aos Animais de Santa Catarina (Lei n° 12.854/2003), alterado pelas Leis n°s 17.485/2018 e 17.526/2018, em seu artigo 34-A, expressamente impõe que, "para os fins desta lei, cães e gatos ficam reconhecidos como seres sencientes, sujeitos de direito, que sentem dor e angústia, o que constitui o reconhecimento da sua especificidade e das suas características em face de outros seres vivos".

3) A Lei 14.228/2021 e o direito à vida de cães e gatos

A Lei n° 14.228 veda "a eliminação da vida de cães e de gatos pelos órgãos de controle de zoonoses, canis públicos e estabelecimentos oficiais congêneres, com exceção da eutanásia nos casos de males, doenças graves ou enfermidades infectocontagiosas incuráveis que coloquem em risco a saúde humana e a de outros animais" (artigo 2º).

Assim, cães e gatos, mesmo os recolhidos a centros de controle de zoonoses (CCZs), canis públicos ou estabelecimentos oficiais congêneres, têm o direito à vida, admitindo-se a eutanásia apenas em casos de doenças incuráveis e que possam arriscar a vida alheia, humana ou não, e a saúde pública [4].

Doenças em relação às quais já se tem tratamento médico-veterinário, como a leishmanione visceral em cães e a esporotricose em gatos [5][6], não mais autorizam a morte desses animais, mesmo que contagiosas para os seres humanos ou para outros animais.

De qualquer forma, garante-se que "a eutanásia será justificada por laudo do responsável técnico pelos órgãos e estabelecimentos referidos no caput deste artigo, precedido, quando for o caso, de exame laboratorial" (artigo 2º, §1º).

4) A Lei nº 14.228/2021 e a participação das entidades de proteção animal
Ante a normatividade do princípio da participação comunitária e as múltiplas funções das entidades da sociedade civil que realizam a proteção dos animais [7], a Lei n° 14.228/2021 possibilita que essas entidades resgatem os cães ou gatos abrigados nos CCZs, canis públicos e estabelecimentos oficiais congêneres, desde que não estejam acometidos de doenças infectocontagiosas incuráveis, que possam representar riscos à saúde pública, para lhes dar destinação mais adequada e conforme o princípio da dignidade animal [8], inclusive pela inclusão em famílias multiespécies.

Pelos mesmos princípios do Direito Animal referidos, as entidades de proteção animal passam a figurar como verdadeiros agentes de fiscalização desses estabelecimentos de abrigamento de cães e gatos — incluídos os Centros de Controle de Zoonoses —, pois a elas deve ser franqueado acesso irrestrito à documentação, inclusive os respectivos prontuários médico-veterinários e os laudos e exames laboratoriais referidos no artigo 2º, §1º, da lei [9], que comprove a legalidade da eutanásia, conforme disciplina da própria Lei n° 14.228/2021.

Parece justificável exigir, no entanto, até para racionalizar o fornecimento de documentos e prevenir eventuais abusos, que a entidade de proteção animal esteja legalmente constituída e preveja a proteção animal entre os seus fins estatutários.

Note-se, a propósito, que não há previsão legal para que pessoas físicas ou protetores(as) independentes, que não se consubstanciem em entidades (pessoas jurídicas, com CNPJ), possam ter o acesso irrestrito a prontuários e documentos sobre mortes de animais, conforme artigo 3º da mencionada lei, muito embora possam evocar os termos da Lei de Acesso a Informações para providência similar (Lei nº 12.527/2011).

Como essas novas normas, opera-se um salutar controle externo desses estabelecimentos no que tange à morte de animais, prevenindo-se os abusos que podem caracterizar o crime qualificado contra a dignidade animal, previsto no artigo 32, §§1º-A e 2º, da Lei 9.605/1998 (cf. determina o próprio artigo 4º da Lei n° 14.228/2021).

As entidades, de posse da respectiva documentação que evidencie "eutanásia" ilegal ou abusiva, poderão exercer sua função jurídica, demandando civil e administrativamente os responsáveis pela morte animal e representando ao Ministério Público para a respectiva persecução penal.

Como as entidades de proteção animal passam a ter o direito à documentação sobre eutanásia de cães e gatos, mantida nos estabelecimentos públicos referidos na lei, a eventual recusa em fornecer a documentação enseja a impetração de mandado de segurança, sem prejuízo da apuração de eventual infração administrativa cometida pelo responsável pelo CCZ ou canil público, conforme previsto em lei.

Subsidiariamente, pode-se evocar a aplicação das normas de acesso às informações, conforme previsões contidas: a) na Lei n° 12.527/2011 — inclusive no que tange à responsabilização dos agentes públicos envolvidos que recusarem, injustamente, o fornecimento dos documentos ou prontuários (artigo 32); e b) na Lei n° 13.460/17 — conhecida como Código de Proteção e Defesa dos Direitos do Usuário dos Serviços Públicos da Administração Pública.

5) Conclusão

O Direito Animal brasileiro carrega cães e gatos com um catálogo próprio e reforçado de direitos fundamentais: a Lei n° 9.605/1998 (alterada pela Lei 14.064/2020 — a Lei Sansão) os privilegia com um tipo penal qualificado contra os maus-tratos e a crueldade, enquanto que as Leis n°s 13.426/2017 e 14.228/2021 afirmam-lhes o direito à vida contra o extermínio discriminatório e arbitrário.

Caso o responsável por cumprir a Lei n° 14.228/21 assim não proceda (realizando eutanásia ilegal ou recusando a entrega da documentação respectiva), sujeitar-se-á à representação na esfera administrativa para aplicação, pelo órgão pertinente, da multa ou de outra sanção correlata, bem como submeter-se-á à possível ação civil de natureza reparatória (ação civil pública ou mesmo alguma ação de rito comum), além, por óbvio, de responder, no caso de eutanásia ilegal, pelo crime tipificado no artigo 32, §§1º-A e 2º, da Lei n° 9.605/98, caso haja notitia criminis junto ao Ministério Público ou mesmo à Polícia Civil.

Não à toa que esses seres vivos figuram nas primeiras ações de judicialização terciária do Direito Animal (animais como demandantes em juízo) e por meio deles se obteve o primeiro precedente judicial favorável ao reconhecimento da sua capacidade de ser parte em ações judiciais [10] [11].

 

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