Constitucionalidade do assento do MP ao lado do juiz

André Luiz Bogado Cunha -

No último mês de junho, o então Presidente do STF Joaquim Barbosa suspendeu os efeitos de liminares em habeas corpus concedidas pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul nas quais se assegurava aos defensores públicos do estado posição equivalente aos promotores de Justiça no plenário dos Tribunais do Júri. Em sua decisão, além de mencionar que a via processual eleita era inadequada, também fez referência à ADI 4768, que ainda aguarda julgamento, lembrando que “a ministra Cármen Lúcia decidiu levar a ação diretamente no mérito à apreciação do Plenário, sem examinar o pedido de liminar, por considerar “temerário” um julgamento meramente cautelar da questão, que envolve “prática secular baseada não apenas no costume, mas também na legislação”.

Com efeito, a alegação da necessidade de isonomia das partes nos assentos em salas de audiência, no plenário do Júri e nos tribunais parece simples, mas não é. Faz-se necessário estudo mais amplo, que possibilite trazer à tona a compreensão do Estado brasileiro atual e dentro dele a redefinição das funções do Ministério Público.

À primeira vista pode parecer sedutora a alegação de que a disposição cênica atual fere o princípio da isonomia das partes e da igualdade de armas, trazendo evidente desequilíbrio nas relações processuais. Os adeptos desta corrente de pensamento afirmam que o Estado não é mais importante que o indivíduo e que nos julgamentos do Tribunal do Júri estaria patente o prejuízo à defesa, pois os jurados, ao verem o promotor de Justiça sentado ao lado e no mesmo nível do magistrado, poderiam confundir suas funções e acreditar que o membro do MP desfrutaria de mais credibilidade e importância do que o advogado. Esta forma de pensamento é equivocada e peca por erro de origem que será demonstrado a seguir.

Inicialmente faz-se necessário observar que é no mínimo curioso o pedido de reconhecimento da inconstitucionalidade da alínea “a”, do inciso I, do artigo 18 do Estatuto do MPU (Lei Complementar 75/93) e do inciso XI do artigo 40 da Lei Orgânica do MP (Lei 8.625/93) só ter ocorrido quase vinte anos depois de entrarem em vigor estes diplomas legais. Se a contrariedade à Constituição Federal fosse tão evidente, certamente os grupos interessados já teriam ingressado com as ações apropriadas há muito tempo.

Existe, na verdade, um falso sofisma, partindo-se da premissa de que o Estado não é mais importante que o indivíduo e, por conta disso, a disposição cênica em audiências e no Tribunal do Júri deve ser equivalente. Ocorre que a visão de Estado opressor não se coaduna com a realidade atual. Se antes ele se destinava à proteção de interesses interindividuais e, numa etapa posterior, de grupos, o Estado Democrático de Direito moderno, além da concepção de estabelecer o império da lei, também visa à proteção da sociedade.  Assim, é falaciosa a ideia de que uma simples readequação da disposição cênica iria colocar num mesmo plano indivíduo e Estado. Quem está ali representado não é o Ministério Público, mas sim a própria sociedade.

Além do mais, se tal pensamento vingasse a isonomia teria de valer para todos os agentes de direito e não apenas ao interesse de determinado grupo. Nesta conformidade, o magistrado que representa o Estado/juiz deveria também estar no mesmo plano cênico das partes. Não seria correto ficar num tablado superior aos demais, já que são todos iguais perante a Lei.  Poderia ir-se além. A própria legislação cria mecanismos com tratamento diferenciado para as partes. É o chamado princípio do favor rei que no processo penal permite benefícios exclusivos à defesa. Se o entendimento adotado em relação à readequação cênica prosperar, estas diferenciações também teriam de ser modificadas. Assim, o órgão de acusação teria direito à revisão criminal e aos embargos infringentes, quando estes fossem cabíveis. O promotor de Justiça também teria prazo em dobro para recorrer no processo penal, a exemplo do que acontece com a Defensoria Pública. Em poucas palavras: a isonomia tem de ser total e não apenas parcial, onde se privilegia o interesse de determinados grupos. Assim, se for reconhecida a inconstitucionalidade da norma que prevê assento do MP ao lado do magistrado, as outras leis que asseguram os “privilégios” mencionados também teriam de ser tidas como contrárias à Constituição Federal e mais, teriam de acabar de vez com o tablado nas salas de audiência, nos plenários do Júri e nos tribunais para que todos ficassem no mesmo plano cênico.

A CF de 1998 trouxe inúmeras modificações, dentre elas redefiniu as funções do MP, que de mero órgão acusador e fiscal da Lei passou a ser o protetor da sociedade contra políticos e administradores ímprobos, contra os que agridem o meio ambiente, contra empresas que agem em contrariedade aos direitos dos consumidores e também contra aqueles que insistem em desrespeitar as regras de convivência em sociedade, praticando delitos.

Vale aqui reproduzir parte do estudo de Lenio Luiz Streck sobre o assunto ora abordado (http://www.amperj.org.br/artigos/view.asp?ID=85): “É dizer, pois: de um Ministério Público protetor dos interesses individuais, de perfil liberal-individualista – ao qual, certamente, os defensores da tese da concepção cênica se referem -, salta-se para um novo Ministério Público, que claramente deve assumir uma postura intervencionista em defesa do regime democrático e dos direitos fundamentais sociais, a partir de uma dupla intervenção: de um lado, utilizando os remédios constitucionais, buscando, em todas as instâncias (políticas e jurídicas), a concretização de tais direitos (direito à saúde, educação, etc); de outro, atuando, com legitimidade prioritária, no combate aos delitos que colocam em xeque os objetivos da República. É nesse contexto que a Constituição do Brasil elegeu o Ministério Público como a guardião da ordem democrática. E, convenhamos, queiramos ou não, isto não é pouca coisa”.

“Portanto, a propalada “readequação” da concepção cênica – ao procurar “isonomizar e/ou igualar” o Ministério Público à defesa (que é sempre defesa do indivíduo)-, na verdade busca – consciente ou inconscientemente, corporativamente ou não – desqualificá-lo, tendo como pano de fundo o velho paradigma liberal-individualista, em que o Estado colocava suas baterias na defesa do indivíduo, e em que o Estado era contraposto à sociedade. E nisso reside o equívoco: a sociedade não deve ser contraposta ao Estado; esse dualismo é falso. O Estado não é uma entidade metafísica. A sociedade se realiza no Estado”.

Também há uma falsa premissa de que a posição do MP nos plenários do júri teria o condão de influenciar os jurados. A isonomia não se dá pelo assento, mas sim pelas oportunidades oferecidas. Aquela assertiva deve ser levada ao plano objetivo: não basta mera especulação ou suposição, teria de ser provado, de forma inequívoca, que a posição física ocupada pelo MP teria alguma relevância na decisão do colegiado.  Se formos partir apenas de conjecturas, podemos afirmar que a defesa que é beneficiada pela postura cênica, já que fica o tempo todo de frente para os jurados, ao passo que o MP fica, via de regra, na lateral, o que prejudica sua visualização.

O assento atual do MP não fere o princípio da isonomia, se fosse assim, a própria disposição física do plenário do STF teria de ser mudada, pois o Procurador Geral da República fica à direita do seu presidente. Será que o STF, que é o guardião da Constituição Federal, agiu, durante décadas, de maneira inconstitucional dentro de sua própria casa?

 

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