Jarbas Vasconcelos e Lizandra Nascimento Vicente -
O tipo penal do desacato disposto no artigo 331, do Decreto-Lei 2.848/1940 (Código Penal), não é compatível com os princípios fundamentais da Carta Cidadã. A norma sob análise prescreve que desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela implica em pena de detenção, de seis meses a dois anos, ou multa.
Em que pese a imposição de sanção, o normativo legal não especifica o que seria desacatar, trazendo uma normatização indeterminada.
A consequência dessa imprecisão acarreta na reprimenda da liberdade de expressão de cidadãos que são compelidos a manterem-se inertes diante de condutas praticadas por agentes públicos por receio de cometerem crime.
Ao reconhecer a importância da liberdade de expressão, Canotilho ressalta que ela propicia o debate intelectual e o confronto de opiniões num compromisso crítico permanente. Trata-se de prerrogativa que possibilita a participação dos cidadãos na argumentação pública. Para Habermas, o Estado deve assegurar o princípio da soberania popular por meio de mecanismos de proteção de liberdades de opinião e de informação.
Nesse contexto, deve-se extirpar do ordenamento jurídico leis que tolhem a liberdade de expressão — tal como o desacato —, posto que tal direito se caracteriza como instrumento de representação dos anseios do povo.
De outra sorte, normativos que sobrepõem o Estado face ao particular somente devem existir em hipóteses e razões justificáveis, o que não é o caso da previsão do tipo penal em questão. Nesse sentido, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em Relatório, repugnou a proteção em demasia conferida ao servidor público em detrimento da população, haja vista que “a aplicação de leis de desacato para proteger a honra dos funcionários públicos que atuam em caráter oficial outorga-lhes injustificadamente um direito a proteção especial, do qual não dispõem os demais integrantes da sociedade.”
Na assentada, defendeu que esse tratamento desigual inverte “o princípio fundamental de um sistema democrático, que faz com que o governo seja objeto de controles, entre eles, o escrutínio da cidadania, para prevenir ou controlar o abuso de seu poder coativo.” Dessa forma, estando os funcionários públicos sujeitos a maior escrutínio da sociedade, o controle de suas condutas deve ser exercido por toda a população sem empecilhos.
E, por fim, rechaçou a aplicação de leis de desacato dado que “invertem diretamente os parâmetros de uma sociedade democrática (...). A proteção dos princípios democráticos exige a eliminação dessas leis nos países em que elas ainda subsistam. (...) essas leis representam enquistamentos autoritários herdados de épocas passadas, e é preciso eliminá-las.”
Ressalta-se que o Estado brasileiro, enquanto signatário da Convenção Americana, assumiu o compromisso de adotar medidas legislativas, visando à solução de antinomias normativas limitadoras à realização dos direitos fundamentais, razão pela qual o entendimento esposado pela Comissão Interamericana deve ser adotado e incorporado ao ordenamento jurídico pátrio.
Além do desacato violar o direito fundamental da igualdade e liberdade de expressão, tem-se que ele mostra incompatível com o preceito republicano, que pressupõe a responsabilidade do chefe de governo e/ou do Estado pelos seus atos, impondo-se a prestação de contas de suas condutas.
À constatação de que o tipo penal do desacato obstaculiza o controle das atividades dos agentes públicos, tem-se o enfraquecimento da prerrogativa de fiscalização do cidadão. Subverte-se, assim, a titularidade do poder político em uma sociedade democrática que, ao invés de recair sobre aos eleitores, é outorgada aos eleitos e aos detentores de funções públicas.
Nesse mesmo sentido, observa-se ainda que o tipo penal aberto do desacato possibilita a ocorrência de arbitrariedades por parte dos agentes públicos. Isso porque a jurisprudência reconhece que o “esforço intelectual de discernir censura de insulto à dignidade da função exercida em nome do Estado é por demais complexo, abrindo espaço para a imposição abusiva do poder punitivo estatal.”
Pontua-se que a concepção normativa propicia a violação ao princípio da legalidade consagrado no artigo 5º, XXXIX, da CF. Verifica-se, portanto, que o legislador não se desincumbiu devidamente da sua tarefa legislativa, posto que previu o crime de desacato de forma inespecífica, possibilitando o enquadramento das mais diversas condutas em um mesmo tipo.
A ausência de tipificação do crime de desacato não impede a responsabilização do agente que ofenda a honra de um servidor público, pois tal conduta pode ser devidamente tutelada pelos tipos penais da injúria, difamação e calúnia, a depender do enquadramento da prática realizada (REsp 1.640.084/SP).
À luz dessas considerações, espera-se que esse instituto jurídico seja abolido do ordenamento quando do julgamento da ADPF 496, proposta pelo Conselho Federal da OAB, sob a relatoria do ministro Roberto Barroso e subscrita por esses advogados, na qual a Corte Constitucional irá se manifestar quanto à não recepção do artigo 331 do Código Penal pela Constituição Federal.