CRIMES EM LICITAÇÕES — O NOVO ARTIGO 337-E DO CÓDIGO PENAL

Por André Callegari

A recente Lei de Licitações (Lei 14.133/2021) introduziu na Parte Especial do Código Penal os novos tipos penais que buscam reprimir as condutas que fraudam os processos licitatórios no Brasil. Mais uma vez, na ânsia de responder aos diversos anseios que clamam por maior transparência nesse tipo de certame, o legislador não foi feliz. A técnica legislativa não prima pelos postulados básicos e elementares do Direito Penal, esquecendo-se do princípio da taxatividade, a maior segurança jurídica que o legislador pode e deve proporcionar ao cidadão.

O princípio da taxatividade não é outra coisa senão a exigência de que os textos legais, nos quais estão previstas as normas sancionadoras, descrevam com suficiente precisão quais condutas estão proibidas e que sanções serão impostas àqueles que incorram nelas.

Uma lei indeterminada ou imprecisa, como é o caso, não pode proteger o cidadão da arbitrariedade porque não é uma autolimitação do jus puniendi estatal a que se possa recorrer; Ademais, tal vacuidade é contrária ao princípio de divisão de poderes, já que permite ao juiz fazer qualquer interpretação que lhe aprouver, em possível invasão ao terreno do legislativo; não pode exercer eficácia preventivo-geral, porque o indivíduo não pode reconhecer o que se quer proibir; e precisamente por isso sua existência tampouco pode proporcionar a base para uma reprovação da culpabilidade (ROXIN, 1997, p. 169).

Atualmente, a política criminal inclina-se a uma técnica legislativa de construção de tipos penais abertos, ferindo frontalmente o princípio da legalidade. Isso ocorre com frequência nos tipos penais que incriminam condutas relacionadas à ordem econômica ou aos novos riscos da sociedade. As condutas são vagas e imprecisas, deixando margem de grande insegurança ao cidadão.

Nesse sentido, Reale Júnior, adverte que "é o que sucede, por exemplo, nos tipos penais que utilizam como indicação de conduta verbos como: admitir; possibilitar; e proporcionar o ensejo, todos de idêntico e fluído significado, razão pela qual não é possível se ter um contorno das condutas incriminadas" .

Isso ocorre com as condutas descritas no novo artigo 337-E do Código Penal, pois os verbos incriminadores são: admitir, possibilitar ou dar causa contratação direta fora das hipóteses previstas em lei. Os três verbos não são taxativos quanto às condutas incriminadas, além disso, confundem-se entre eles, porque evidentemente quem admite também possibilita e dá causa. Sobre a imprecisão dos verbos Fernando Guimarães leciona que "malgrado a vagueza e a imprecisão terminológica dos verbos que compõem a descrição das ações típicas, os atos de 'admitir, possibilitar, ou dar causa' à contratação direta fora das hipóteses previstas em lei devem ser interpretadas como abrangentes de qualquer conduta que possa influenciar decisivamente o processo de contratação direta" .

Esse é o problema dessa nova técnica legislativa: permitem uma interpretação aberta de qualquer conduta que possa influenciar na decisão do processo de contratação direta, porém, ferindo de morte o princípio da taxatividade.

De outro lado, deve-se examinar que o tipo penal também deixou ao intérprete a verificação das hipóteses previstas em lei, ou seja, trata-se de norma penal em branco que deverá ser cotejada junto com a própria lei de regência das licitações e contratações públicas que explicitam quais hipóteses que dispensam a contratação direta.

Quanto à classificação doutrinária do tipo penal confesso que tenho dúvidas. A simples leitura da conduta incriminada nos leva, por uma questão dogmática, a dizer que se trata de crime de mera conduta . Isso porque o legislador descreve as condutas incriminadas sem qualquer menção a produção do resultado. Se essa for a interpretação, não será admissível a tentativa porque o simples ato de admitir, possibilitar ou dar causa à contratação já realizaria o tipo penal .

A outra possibilidade é dar uma interpretação ao tipo penal de que a consumação somente haveria com a efetiva contratação direta fora das hipóteses previstas em lei, ou seja, com a realização do ato jurídico (assinatura) que dispensa (momento posterior do simples admitir, possibilitar ou dar causa) ou não exige a licitação. Nesse sentido se materializaria a realização do resultado quando constatada a contratação indevida fora das hipóteses legais. Essa questão é complexa e com certeza os tribunais terão de enfrentá-la.

Quanto à participação criminal, parece-me que a autoria fica restrita àquele que tem o poder de realizar a contratação, e não de todos os funcionários públicos que participam ou que atuam no procedimento de dispensa ou inexigibilidade. Isso porque uma leitura restritiva do tipo penal nos leva à conclusão de que somente este pode realizar os verbos incriminadores de "admitir, possibilitar ou dar causa", porém, isso não significa que os demais funcionários não possam concorrer para o crime na medida de sua culpabilidade, atendendo-se a regra do artigo 29 do Código Penal.

Questão intrincada ainda diz respeito à responsabilidade penal de advogados e procuradores que emitem parecerem jurídicos quanto à possibilidade de contratação direta. Nesse ponto específico a limitação pode-se dar pela teoria das atividades neutras ou quotidianas, em que o procurador ou advogado exerce o seu papel de consultor, ou seja, o seu rol profissional dentro de um risco que é juridicamente tolerado.

Assim, um comportamento quotidiano não é punível como participação, ainda quando suponha uma contribuição fática à realização de um determinado delito, já que plenamente coberto pelo rol social lícito em que se insere . Esse papel está dentro das atividades profissionais desenvolvidas quotidianamente e não pode ser visto como favorecimento à atividade criminal.

Sob outra perspectiva, Helena Lobo da Costa leciona que ainda que esses profissionais adotem posição minoritária em seu parecer jurídico, porém, tecnicamente defensável, não concorrem para o crime como partícipes, pois, do contrário, "estaríamos diante de um verdadeiro crime de hermenêutica" . Sustenta, ainda, que o parecer apresentado não é vinculante e que o administrador público pode dele discordar, decidindo de modo distinto .

A questão é distinta se houver o conluio entre o procurador ou advogado, por exemplo, no caso em que há promessa de vantagem caso ocorra a contratação, deixando o parecer de seguir critérios estritamente técnicos para favorecer a dispensa ou inexigibilidade. Nesse caso a solução da conduta quotidiana extrapola os limites permitidos e o sujeito adere dolosamente a conduta do administrador, ainda que o parecer não seja vinculante. Nesse caso, não há mais uma atividade meramente quotidiana, inserida no rol profissional jurídico do advogado, consultor ou procurador, mas uma adesão subjetiva ao delito e isso está fora do risco juridicamente permitido.

Haveria muito mais o que comentar sobre esse e os demais tipos penais, porém, são as primeiras impressões sobre esse delito que ainda deverá ser alvo de opiniões na doutrina e, certamente, de acaloradas discussões nos tribunais, em razão da deficiente redação legal dos verbos que incriminam tais condutas.

 

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