Por Otavio Morais Alves de Souza Oliveira e Furtado -
Diante da pandemia enfrentada pelo mundo e das recomendações diuturnamente proferidas pela Organização Mundial da Saúde, exige-se do Estado brasileiro um esforço coletivo para enfrentar a situação de emergência criada pela Covid-19 (o novo coronavírus).
Frente a essa situação, a comunidade jurídica nacional imediatamente se mobilizou, alterando o funcionamento de suas instituições (como o fechamento dos Fóruns, a suspensão de audiências e etc.) para evitar aglomerações e, assim, conter a propagação do vírus.
Por esses motivos, diversos órgãos (entre eles o Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, o Conselho Nacional de Justiça e o próprio STF) recomendaram a revisão das prisões cautelares no âmbito do Estado, a fim de verificar a possibilidade excepcional de aplicação de medidas alternativas à prisão.
Esse posicionamento institucional denota a importância de medidas preventivas no que toca a população carcerária, em um exercício de cidadania para se evitar o alastramento da nova doença e a sobrecarga das estruturas de saúde pública (já fracas no caso brasileiro).
A cidadania é um dos pilares do Estado Democrático de Direito, que prega a divisão dos ônus sociais entre todos os indivíduos e instituições, de forma que se possa atingir, coletivamente, a concretização do princípio maior da Dignidade Humana, especialmente no que toca seu aspecto de Igualdade em sentido material.
Ainda, não há que se restringir o conceito ao âmbito nacional, como feito em momentos históricos anteriores, devendo-se interpretar o contexto maior da globalização associado à noção da universalidade do valor maior que é a Dignidade Humana, chegando-se a um conceito global de Cidadania enquanto posição social ativa direcionada à concretização da Dignidade para todos.
Assim, com tais valores em mente, esse novo cenário de pandemia exige uma reinterpretação da ponderação de princípios que é feita no momento em que se decreta a restrição de liberdade de um indivíduo, como se demonstrará a seguir.
Evidentemente, o risco ao encarcerado se torna maior, uma vez que ele passará os dias em aglomerações, indo contra as recomendações dos órgãos de saúde que se pronunciaram sobre a questão.
Não qualquer aglomeração, diga-se de passagem, mas um conjunto de pessoas inseridas em um contexto de superlotação, falta de estruturas de saúde, uma insalubridade altíssima e epidemias já existentes (como HIV e tuberculose, doença esta de caráter respiratório, como o novo Coronavírus), como foi já declarado internacionalmente e nacionalmente, com destaque à ADPF 347, na qual reconheceu-se o Estado de Coisas Inconstitucional do Sistema Penitenciário Nacional.
Esse risco é aumentado, ainda, pela situação de pânico e de isolamento aumentado que se instala nos presídios (pela suspensão de visitas), o que tem está levando a rebeliões no mundo todo. Na Itália, 6 detentos morreram em rebelião causada pela situação do novo Coronavírus e mais outras 3 prisões do país tiveram revoltas em seguida. O caso brasileiro parece seguir na mesma direção, com rebeliões já ocorrendo no Estado de São Paulo.
Dessa forma, na ponderação de valores feita no momento da decretação de uma prisão preventiva (ou sua reanálise, como sugerido pelas instituições nacionais), há que se dar maior peso aos direitos fundamentais individuais do réu, vez que se encontram evidentemente mais ameaçados, seja pelo vírus, seja pela instabilidade social e rebeliões que o seguem.
Sobre o tema, bem se posiciona o Ministro Celso de Mello no RE 580252/MS, mesmo antes da pandemia do novo coronavirus, ao dizer que "o sentenciado, ao ingressar no sistema prisional, sofre uma punição que a própria Constituição da República proíbe e repudia", momento em que o Ministro se refere ao Direito Fundamental de "não sofrer, na execução da pena, tratamento cruel e degradante, lesivo à sua incolumidade moral e física e, notadamente, à sua essencial dignidade pessoal".
Em outro giro, e isso é importante se considerar, prisões cautelares decretadas sob o fundamento de “garantia da ordem pública”, termo de notória abstração (e por isso conhecidamente muito criticado na doutrina), agora devem ser duplamente repensadas.
Isso porque o réu preso, nesse momento, prejudica muito mais a ordem pública do que se solto estivesse. Vejamos.
Uma vez preso, ele se tornará muito provavelmente um vetor de contaminação, que ocorrerá em velocidade excepcional no sistema carcerário, dadas a superlotação e a insalubridade já descritas.
Ainda, sua presença na carceragem contribui para superlotação e, assim, para a insatisfação e medo dos detentos, que tem levado a rebeliões no Brasil e no mundo todo.
Ora, favorecer a proliferação do vírus ao se fomentar uma aglomeração (indo contra as recomendações da própria Organização Mundial da Saúde) e possíveis rebeliões é muito mais perigoso para a sociedade, muito mais lesivo à ordem pública, que um indivíduo solto e podendo tomar as medidas sanitárias necessárias para evitar sua contaminação.
Essa liberdade não precisa, sequer, ser plena, uma vez que a Lei 12.403/2011 trouxe uma série de outras medidas cautelares que não impõem um convívio forçado com um grupo de risco, razão pela qual as recomendações institucionais já citadas aconselham não só a revogação como também a substituição da prisão, tudo a depender do caso concreto, até porque, “Justiça penal não se faz por atacado e sim artesanalmente, examinando-se atentamente cada caso para dele extraírem-se todas as suas especificidades, a torna-lo singular e, portanto, a merecer providência adequada e necessária”.
Portanto, há que haver uma reinterpretação da ideia de “garantia da ordem pública” nesse momento, vez que, como afirma a Suprema Corte, “não há como desenlaçar a necessidade de preservação da ordem pública e o acautelamento do meio social”. O acautelamento, nesse momento, está ao lado do desencarceramento.