Delator que mente deve responder por denunciação caluniosa

Daniel Gerber e Bernardo Fenelon -

O instituto da delação premiada tem sido alvo de inúmeras críticas por parte de juristas e operadores do Direito. Diversas são as supostas inconstitucionalidades da justiça negocial brasileira como, por exemplo, violações ao direito ao silêncio, ao interrogatório como meio de defesa, ao nexo retributivo entre delito e sanção, à moralidade pública, ao contraditório etc.

No entanto, seguindo as análises que já fazemos há tempos, e como de praxe, buscando não ignorar a realidade, deve-se admitir que o instituto, que promete alterar a eficácia punitiva, aparentemente, veio para ficar.

Como leciona Silva Sanches, “nos hallamos en el marco de la política criminal defendible”. Trocando em miúdos: o legislador pode fazer suas escolhas desde que respeite o espaço entre aquilo que a Constituição proíbe e aquilo que é constitucionalmente necessário.

Dentro de tais limites, visamos contribuir com a correção de um conflito aparente de normas surgido em razão da má técnica legislativa de se criarem tipos penais em leis extravagantes sem, contudo, se observar com acuidade a parte geral de nosso estatuto repressivo.

Nesta linha, observa-se que o instituto traz como condição de existência a obrigação do delator de dizer a verdade — o mínimo, para assim dizer, eis que a hipótese contrária faria com que o instituto nascesse desvirtuado, com o beneficiário da delação afirmando qualquer coisa que interesse às autoridades na tentativa de beneficiar-se, como mostra a obra Colaboração (delação) Premiada, de Marcos Paulo Dutra Santos, em sua segunda edição. O exemplo é a própria operação "lava jato", onde temos diversos exemplos de delatores que faltam com a verdade reiteradamente, gerando vergonhoso recall (Ford e demais sentem inveja de tamanha preocupação com o “consumidor”).

O erro da lei, por sua vez, surge na norma prevista no artigo 19, que ao prever a sanção para este tipo de comportamento, estipula:

Art. 19. Imputar falsamente, sob pretexto de colaboração com a Justiça, a prática de infração penal a pessoa que sabe ser inocente, ou revelar informações sobre a estrutura de organização criminosa que sabe inverídicas: Pena - reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.

O primeiro ponto a ser debatido aqui, mas que focalizaremos num próximo artigo, versa sobre a famosa “tutela constitucional deficiente”. Não nos parece possível que imputar crimes a terceiros em troca de impunidade seja, no máximo, um delito de médio potencial ofensivo, nos moldes do artigo 89 da Lei 9.099/95.

E mais: tal sanção encontra-se em descompasso com o próprio Código Penal brasileiro, que, desde o ano de 1941, tipificou o crime de denunciação caluniosa.

A redação daquele tipo penal é clara: “Dar causa à instauração de investigação policial, de processo judicial, instauração de investigação administrativa, inquérito civil ou ação de improbidade administrativa contra alguém, imputando-lhe crime de que o sabe inocente”. A pena em tal caso prevê a sanção de 2 a 8 anos de reclusão.

Tal descompasso, entre condutas idênticas, é inaceitável. Inclusive porque mentir no acordo de colaboração representa, em nosso viés, um mal social maior na medida em que o autor das mentiras estará, literalmente, recebendo uma segunda chance do Estado brasileiro.

Tendo em vista tamanha incongruência normativa, para otimizar a aplicação da justiça negocial no Brasil, nos casos em que restar comprovado que o colaborador mentiu, imputando um delito à pessoa inocente, deve-se ignorar o princípio da especialidade para aplicar a norma prevista no artigo 339 do Código Penal Brasileiro.

Isso, para se dizer o mínimo, pois tais mentiras também devem gerar o consequente direito indenizatório — algo a ser objeto de outro artigo, assim como o enfrentamento constitucional deste específico problema.

 

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