Por Víctor Gabriel Rodríguez -
Meus escritos têm-se esforçado em demonstrar que os novos padrões éticos impostos pela delação premiada explicam as mudanças políticas no país. Basta dizer que, sob essa ótica, os recentes abalos da América Latina, nascidos na operação "lava jato" e no caso Odebrecht, são muito menos uma conspiração partidária que uma natural consequência do utilitarismo afirmado pela lei. Isso resolve parcialmente algum sentimento geral de injustiça da condenação de Lula, nascido da alegação de que as provas contra ele seriam verdadeiras, porém consequência de um direcionamento investigativo. A resposta é que o direcionamento da prova, pelo sistema vigente, é simples aplicação da lei.
Os estudiosos em geral, em uníssono com o Supremo Tribunal Federal, aceitam a chamada "colaboração premiada" como um mero negócio jurídico, que tem como fim a obtenção de provas. Em próximo texto, comentaremos como tal concepção privatista foi precipitada, mas de momento a adotamos como efetiva. Há, portanto, em um protótipo de delação, partes negociantes, que firmam um contrato, em puro direito privado com efeitos no processo. As partes negociantes são, então, Ministério Público (ou polícia) e, do outro lado, réu-delator e seu defensor. Eles e ninguém mais, já que se trata de, nas palavras do STF, um “negócio jurídico personalíssimo”.
Assim, então, se opera o “negócio personalíssimo”: para concertar um acordo acerca de tão importante matéria, cada parte deve — em termos coloquiais — saber o que deseja. De modo mais técnico, deve desenhar um objetivo geral, o qual, entretanto, é imprescindível, mas não basta para o momento de concretizar a delação. Ali têm de aparecer os objetivos específicos, ou metas.
A defesa terá, como seu objetivo geral, a liberdade do acusado, mas ainda há que se fixar as metas: uma pena máxima exatamente prevista, regime de pena e até mesmo a preservação de seus bens. Detalhes que a lei, em tese, não permite inscrever no acordo, mas que na prática têm aparecido, sob beneplácito do Supremo.
Agora o mais decisivo, o papel da acusação: ele está vinculado a traçar, como objetivos gerais, aqueles apontados pela lei do crime organizado, que autoriza a delação: a “identificação sobre demais coautores e partícipes” da infração, além da “revelação de sua estrutura hierárquica” (artigo 4º, incisos I e II da Lei 12.850/2013). Note-se, então, que a novidade está no acréscimo de um objetivo transcendente: a aplicação da lei penal ao réu era obrigatoriamente o fim da missão acusatória; hoje, é dela mera etapa. E isso faz diferença.
Por consequência, a segunda etapa, de definir objetivos específicos para o acordo de delação, também se transforma: há compulsoriamente que se traçar uma hipótese acusatória, para cuja confirmação as provas do delator devem se direcionar. No caso do crime organizado, essa hipótese significa identificar um líder. Ou alguns.
A confirmação da hipótese se torna então o critério maior — ainda que não único — para a aceitação da delação. Claro que uma proposição se pode desconfirmar, mas não é o usual em grandes operações. A regra é então agir como num jogo de xadrez, movendo e sacrificando peças periféricas para deixar caminho livre para alcançar o monarca inimigo. Em outras palavras, só podem obter perdão os delatores que vierem confirmar a hipótese acusatória pré-estabelecida, sem desvio de foco. É a lei, portanto, que obriga que cada delação seja um passo adiante.
Portanto, a chave da "persecução individual" está na conveniência de acusar e, mais, no conceito de crime organizado — não na delação em si mesma. Pessoalmente, tenho lutado para que ao menos a doutrina reconheça essas reais condições, sem juízos de valor, mas também sem eufemismos. Se as provas contra o ex-presidente são contundentes, seu direcionamento não pode ser criticado, apenas porque confirmam hipótese pré-estabelecida.
Concorde-se ou não, o direcionamento é do espírito da lei, agravado pelo entendimento extremado que lhe deu a suprema corte.