José César Naves de Lima Júnior -
Não são raras as celeumas nas ciências penais que fomentam inúmeras discussões acerca da efetividade e alcance de certos institutos, além de diversas medidas no controle do fenômeno criminal que hoje atinge níveis nunca antes vivenciados na história deste país. O retribucionismo versus as políticas de descarcerização são exemplos de extremos que apetecem ao corpo social e que deles pouco ou mesmo nunca tem opinado a respeito. Perceba que o anteprojeto do novo código penal encaminhado ao congresso não contou, ao menos até a presente data, com um plebiscito a permitir que diversas modificações da sistemática punitiva pudessem realmente refletir o pensamento e anseios de seu próprio destinatário, cujo proceder, procura-se conformar. Explicitando melhor a ideia, é preciso auscultar o conhecimento alternativo, pois ao contrário muita realidade e experiência poderão ficar ausentes, desperdiçados, comprometendo-se a eficácia da nova codificação.
A resposta social a criminalidade não pode prescindir da criminologia e do direito penal, pois associados promovem a junção entre os mundos do ser e do dever ser. Quer se dizer com isso que a técnica e o academicismo jurídico não devem se sobrepor ao empirismo e a interdisciplinaridade consubstanciadora de um cientificismo criminológico necessário à leitura da realidade, sem a qual o direito perderia toda a sua razão de ser.
A prática e diversas esferas do conhecimento possivelmente podem contribuir muito além da simples chancela de dispositivos codificados, pois participarão da gênese do pensamento jusfilosófico que norteará as reformas de base no ordenamento. Em processo inteligível de profundas mudanças não devem existir dogmas absolutos, imutáveis, ou intangíveis que sequer se discuta a origem e coerência com a vida circundante. Assim, a epistemologia criminal não pode se distanciar dos acontecimentos, do real, da verdade, a ponto de consagrar uma literatura ilusória, fantasiosa, destituída de qualquer pragmatismo e próxima aos moinhos de vento que Dom Quixote, de Cervantes, enfrentava como se gigantes fossem. Conquanto se reconheça facilmente a relevância de diversos institutos em voga nas ciências penais de hoje, provavelmente também é chegado o momento de repensá-los, ou ainda, de repensar a própria dogmática penal contemporânea. Não parece salutar discutir alterações pontuais, se a essência do que se discute for relegada ao esquecimento. É preciso avançar e despir vertentes ou pensamentos criminológicos do cunho pejorativo a que se encontram conjuminados, e daí admitir sua análise sob uma nova perspectiva. A título de ilustração indaga-se: será mesmo que os crimes de perigo abstrato são inconstitucionais? E se interpretados sob um juízo de ponderação - estar-se-ia observando o princípio da vedação a proteção deficiente? A dispensa de tratamento mais rigoroso a crimes hediondos e equiparados exigido na Constituição Federal não refutaria regimes prisionais mais brandos no início da pena? Percebe-se uma intrínseca colidência de valores nas lides penais, cuja prevalência de um sobre outro necessita de ampla discussão com vistas aos desdobramentos no seio da coletividade.
Convém refletir ainda sobre a verdadeira função do direito penal, pois comumente se atribui a ultima ratio de contenção do conflito criminal a responsabilidade pela ineficiência do Estado em lidar com o proceder desviante. Deste modo, é proveitoso discutir seu papel e se não caberia a outras esferas de poder o trato das questões sociais que tanto influenciam no aumento da criminalidade. Distribuição de renda, trabalho, educação, saúde, alimentação, etc., são fatores que fomentam a violência, mas defender um determinismo social e creditar ao direito todo o fracasso em resolver tal problemática nos parece demasiadamente forte, e exagerado. Não bastasse isso, a ideologia disseminada no direito criminal brasileiro advém de países com realidades muito distintas, o que não deixa de lhe subtrair certa legitimidade, e comprometer sua eficiência. Possivelmente não será preciso procurar um saber novo, a princípio sedutor como toda novidade, mas que não resiste a um exame mais acurado no mundo do ser. Melhor seria buscar uma nova forma de produzir o conhecimento, e adaptar o sistema normativo a realidade.
De que vale alterações legislativas, se a interpretação de seus textos encontra-se fossilizada por enunciados, e construções pretorianas que não se discute mais a justeza e devida correção. Além disso, a doutrina e jurisprudência no presente revelam-se encasteladas, pois apesar da discrepância entre o defendido e a realidade, não há espaço a pelejas sobre a essência de certos posicionamentos, e quando travadas tem prevalecido sempre um desfecho mais favorável ao comportamento desviante. Como exemplo pode ser apontado o princípio constitucional do nemo tenetur se detegere – de que ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo. Já se defende, inclusive, além do silêncio, o direito do réu em mentir. Evidente que pode silenciar e até mentir sem qualquer punição, todavia, conferir status de direito à mentira representa muito mais do que uma ofensa a valores como a ética, moral, bons costumes e boa-fé, haja vista propagar uma abjeta e nefanda inversão de princípios fundamentais que devem consubstanciar o alicerce de todo e qualquer corpo social em um Estado Democrático de Direito.
Em linha propedêutica e filosófica de se questionar dogmas, pode-se incluir, também, a semântica. Termos, palavras e até expressões são utilizadas em sentido unívoco e depreciativo a ponto de transformar os significados de origem. Lei e ordem servem de exemplo, pois no Brasil costumam a ser empregados como sinônimos de recrudescimento da lei diante da criminalidade que choca a opinião pública. Todavia, não deveria ser o contrário, isto é, que palavras ou expressões dessa mesma magnitude fossem compreendidas sob uma ótica positiva, no intuito de expressar um Estado de direito.
Repensar significa pensar novamente, o que de fato pode levar a outra conclusão sobre determinado assunto. O óbvio parece necessário quando predomina a monocultura do saber que não admite, de forma preconceituosa, rediscutir temas como a segurança pública e suas implicações, objeto dos manifestos sociais nas ruas de todo o país e que provavelmente conduzem a inexorável necessidade de reforma política. De fato, dificilmente quem nunca visitou cadeias ou penitenciárias, atuou em processos criminais, manteve contato direto com familiares de vítimas, e autores de crimes possa compreender a seriedade requestada pelo momento, em que organizações criminosas ocupam cada vez mais os espaços urbanos chegando a revelar a existência de um Estado paralelo, de onde advém tanta violência e a impunidade grassa.
Demais disso, repensar a dogmática penal significa perpassar o campo das consequências da criminalidade, e procurar debater a ideologia consubstanciadora do sistema jurídico por meio de ampla participação do corpo social que, de forma apartidária, clamou por reformas substanciais na segurança pública e não deve permanecer relegado no processo reformista. O conhecimento alternativo, a realidade local, e a forma de produção do saber fornecem experiências que poderão certamente conduzir a uma nova dogmática independente daquela produzida nos centros hegemônicos, mas compatível e necessária ao controle do fenômeno criminal existente no Brasil.