Por Lenio Luiz Streck -
Leio que em Fortaleza, que fica no Brasil, uma procuradora da República instaurou procedimento para investigar a existência de uma Organização de Polícia Ideológica e uma Ação Antifascista-UECE-CH-Fortaleza (sic) organizadas por professores e alunos da universidade estadual, com intensa ação ameaçadora inclusive nas redes sociais. Requisitou informações, sob pena de processar o coordenador por desobediência (Ofício 9.380/2018, de 16.11.2018 – ver aqui).
Em que país trabalha a agente do MPF? Será que ela não leu ou não ouviu falar da ADPF 548, julgada à unanimidade pelo Supremo Tribunal Federal? Por qual razão ela pensa que sabe mais do que o STF? Aliás, não existisse a ADPF, já por si o ofício seria contrário à Constituição Federal. Será proibido lutar contra o fascismo? E se fosse a favor, podia? Será que ela vai intimar ao escritório da Força Expedicionária do Brasil (FEB), que lutou bravamente contra o fascismo? Cuidado, pracinhas: a doutora vem aí!
O problema, no caso, não é o ofício e o ato concreto. O problema é o que isso simboliza. Como dizia Castoriadis, o gesto do carrasco é real por excelência... e simbólico em sua essência. Ele é mais perigoso pelo que representa. O gesto da procuradora é uma espécie de The Dark Side of the Law que insiste — e agora parece que tem cada vez mais espaço — em se mostrar. Quer amedrontar. Quer que as pessoas sintam medo.
O caso do Reitor da UFSC parece que não serviu de exemplo. Os vários casos de abuso contra universidades ocorridos durante as eleições últimas, condenadas à unanimidade pelo STF, também parece que não chegaram aos rincões institucionais. O poder é bom demais para não dar uma escapadinha com ele, pois não? O poder é uma tentação.
Vou contar um pedacinho do Pequeno Príncipe, para ilustrar o que está acontecendo no Brasil. Lá foi o nosso Principezinho. Chegou no primeiro planeta, que era habitado por um rei. O rei sentava-se, vestido de púrpura e arminho, num trono muito simples, posto que majestoso.
— Ah! Eis um súdito, exclamou o rei ao dar com o principezinho.
O principezinho não sabia que, para os reis, o mundo é muito simplificado. Todos os homens são súditos.
— Aproxima-te, para que eu te veja melhor, disse o rei, todo orgulhoso de poder ser rei para alguém.
O principezinho procurou com olhos onde sentar-se, mas o planeta estava todo atravancado pelo magnífico manto de arminho. Ficou, então, de pé. Mas, como estava cansado, bocejou.
— É contra a lei bocejar na frente do rei, disse o monarca. Eu o proíbo.
— Não posso evitá-lo, disse o principezinho confuso. Fiz uma longa viagem e não dormi ainda...
— Então, disse o rei, eu te ordeno que bocejes. Há anos que não vejo ninguém bocejar! Os bocejos são uma raridade para mim. Vamos, boceja! É uma ordem!
— Isso me intimida... Eu não posso mais... Disse o principezinho todo vermelho.
— Hum! Hum! Respondeu o rei. Então... Então eu te ordeno ora bocejares e ora... Ele gaguejava um pouco e parecia vexado.
Porque o rei fazia questão fechada que sua autoridade fosse respeitada. Não tolerava desobediência. Era um monarca absoluto. Mas, como era muito bom, dava ordens razoáveis.
— Posso sentar-me ? Interrogou timidamente o principezinho.
— Eu te ordeno que te sentes, respondeu-lhe o rei, que puxou majestosamente um pedaço do manto de arminho.
Mas o principezinho se espantava. O planeta era minúsculo. Sobre quem reinava o rei ?
— Majestade... Eu vos peço perdão de ousar interrogar-vos...
— Eu te ordeno que me interrogues, apressou-se o rei a declarar.
— Majestade... Sobre quem é que reinas ?
— Sobre tudo, respondeu o rei, com uma grande simplicidade.
— Sobre tudo?
O rei, com um gesto discreto, designou seu planeta, os outros, e também às estrelas.
— Sobre tudo isso ?
— Sobre tudo isso... Respondeu o rei.
Pois ele não era apenas um monarca absoluto, era também um monarca universal.
— E as estrelas vos obedecem ?
— Sem dúvida, disse o rei. Obedecem prontamente. Eu não tolero indisciplina.
Tal poder maravilhou o principezinho. Se ele fosse detentor do mesmo, teria podido assistir, não a 44, mas a 72, ou mesmo a 100, ou mesmo a 200 pores de sol no mesmo dia, sem precisar sequer afastar a cadeira! E como se sentisse um pouco triste à lembrança do seu pequeno planeta abandonado, ousou solicitar do rei uma graça:
— Eu desejava ver um pôr de sol... Fazei-me esse favor. Ordenai ao sol que se ponha...
— Se eu ordenasse a meu general voar de uma flor a outra como borboleta, ou escrever uma tragédia, ou transformar-se em gaivota, e o general não executasse a ordem recebida, quem — ele ou eu — estaria errado?
— Vós, respondeu com firmeza o principezinho.
— Exato. É preciso exigir de cada um o que cada um pode dar, replicou o rei. A autoridade repousa sobre a razão. Se ordenares a teu povo que ele se lance ao mar, farão todos revolução. Eu tenho o direito de exigir obediência porque minhas ordens são razoáveis.
— E meu pôr de sol? Lembrou o principezinho, que nunca esquecia a pergunta que houvesse formulado.
— Teu pôr de sol, tu o terás. Eu o exigirei. Mas eu esperarei na minha ciência de governo, que as condições sejam favoráveis.
— Quando serão? Indagou o principezinho.
— Hein? Respondeu o rei, que consultou inicialmente um grosso calendário. Será lá por volta de... Por volta de 7h40, esta noite. E tu verás como sou bem obedecido.
O principezinho bocejou. Lamentava o pôr de sol que perdera. E depois, já estava se aborrecendo um pouco!
— Não tenho mais nada que fazer aqui, disse ao rei. Vou prosseguir minha viagem.
— Não partas, respondeu o rei, que estava orgulhoso de ter um súdito. Não partas: Eu te faço ministro!
— Ministro de que?
— Da... Da Justiça!
— Mas não há ninguém a julgar !
— Quem sabe, disse o rei. Ainda não dei a volta no meu reino. Estou muito velho, não tenho lugar para carruagem, e andar cansa-me muito.
— Oh! Mas eu já vi, disse o príncipe que se inclinou para dar ainda mais uma olhadela do outro lado do planeta. Não consigo ver ninguém...
— Tu julgarás a ti mesmo, respondeu-lhe o rei. É o mais difícil. É bem mais difícil julgar a si mesmo que julgar os outros. Se conseguires julgar-te bem, eis um verdadeiro sábio.
— Mas eu posso julgar-me a mim próprio em qualquer lugar, replicou o principezinho. Não preciso, para isso, ficar morando aqui.
— Ah! Disse o rei, eu tenho quase certeza de que há um velho rato no meu planeta. Eu o escuto de noite. Tu poderás julgar esse rato. Tu o condenarás à morte de vez em quando: Assim a sua vida dependerá da tua justiça. Mas tu o perdoarás cada vez, para economizá-lo. Pois só temos um.
— Eu, respondeu o principezinho, eu não gosto de condenar à morte, e acho que vou mesmo embora.
— Não, disse o rei.
Mas o principezinho, tendo acabado os preparativos, não quis afligir o velho monarca:
— Se Vossa Majestade deseja ser prontamente obedecido, poderá dar-me uma ordem razoável. Poderia ordenar-me, por exemplo, que partisse em menos de um minuto. Parece-me que as condições são favoráveis...
Como o rei não dissesse nada, o principezinho hesitou um pouco; depois suspirou e partiu.
— Eu te faço meu embaixador, apressou-se o rei em gritar.
Tinha um ar de grande autoridade esse rei.
As pessoas grandes são muito esquisitas, pensava, durante a viagem, o principezinho.
Post scriptum: Promotores acusam colégio católico de doutrinar crianças e adolescentes.
Agora vai, diríamos aqui no sul. Promotores de Minas Gerais elaboram Ação Civil Pública Protetiva (ver aqui) contra o tradicionalíssimo Colégio católico Santo Agostinho. Acusação: prática de ideologia de gênero. Afirmam também que o colégio ensina coisas que são “contra a natureza humana”.
A parte “forte” da ação é que os direitos humanos são utilizados pelo tradicional colégio como “cavalo de troia” para introduzir essas teorias ou ideologias exóticas. A Unesco faz parte da conspiração. A petição (ler aqui) tem 40 páginas, recheadas de subjetivismos, avaliações morais e quejandos.
Entre as acusações ao Colégio está a de que este faz “lavagem cerebral nas nossas crianças” (sim, eles disseram “nossas crianças” na petição). No item 117 dizem que o colégio parte do pressuposto de “que a sociedade heteronormativa é antidemocrática”. Também insinuam (ou afirmam – há que se ver bem a exegese da ACP) que o colégio defende a pedofilia, conforme se vê no item 113 da ACP e em outros parágrafos do longo texto. E tanta coisa mais. Afinal, são mais de 150 itens de acusação contra o Colégio.
Ao que consta, não é só a mim que essa ação dos dois promotores causa espécie: ocorre que a posição institucional do MP-MG vai na linha contrária da esposada pelos dois promotores. Chama-se Proeduc. Os promotores desse órgão, ao que sei, vêm arquivando coisas desse tipo. E também questionam a competência dos dois promotores para agir. Dizem que eles são incompetentes.
Pelo visto, a onda macarthista-pindoramense está a pleno vapor. Somem-se à investigação da procuradora essa ação de MG, o projeto da Escola Sem Partido e teremos uma tempestade perfeita a mostrar o que vem por aí. Preocupa-me que o Supremo Tribunal Federal tenha adiado o julgamento da constitucionalidade da ESP (Escola Sem Partido), projeto chamado de ridículo pela Folha de S.Paulo e que é rejeitado até mesmo pelos corifeus de sustentação ideológica do novo governo que assume dia 1º de janeiro. Qual seria a dúvida do STF quanto à total inconstitucionalidade da ESP? A ver.
A próxima ação dos jovens promotores mineiros (não os do Proeduc, os outros dois) deverá ser contra colégios que ensinam que a Revolução Francesa foi um fenômeno positivo para a humanidade. E que a Terra não é plana. A fonte científica da ação é um grupo de WhatsApp (estou sendo irônico...ou não!). Afinal, o novo ministro das Relações Exteriores tem antipatia pela Revolução Francesa. E (ou mas) gosta das Cruzadas. Logo, logo, ensinar Paulo Freire dará cadeia e expulsão de Pindorama. A ver.