É FALSA A CORRELAÇÃO ENTRE GARANTISMO E IMPUNIDADE

Por Gina Ribeiro Gonçalves Muniz -  

No final do difícil ano de 2020, em uma noite costumeiramente marcada pela renovação do amor e esperança — dia 24 de dezembro, véspera de Natal —, ganhou os noticiários brasileiros o trágico assassinato da juíza Viviane Vieira do Amaral Arronenzi.

Infelizmente, esse não foi o primeiro ou único caso de feminicídio do nosso país e o triste diagnóstico de violência doméstica e familiar contra a mulher que impera no Brasil  nos autoriza a concluir que, lamentavelmente, também não será o último.

Feminicídio, cultura do estupro, assédio sexual e moral, entre outros ilícitos, são resultado das relações desiguais entre homens e mulheres, nas quais comportamentos machistas, ainda que reverberem em crimes contra as mulheres, são aceitos com naturalidade por parte da comunidade e tratados com leniência por alguns agentes públicos responsáveis pela persecução penal . A bem da verdade, a cultura machista tem que ser combatida desde os comportamentos menos danosos, a exemplo das piadas sexistas, das cantadas de rua e da objetificação sexual da mulher em novelas, seriados e publicidades. O raio de ação do Estado deve dirigir-se para o combate das causas que levam à delinquência e não apenas para as consequências do crime, sob pena de termos a substituição do Estado democrático de Direito por um Estado totalitário penal.

Precisamos, a uma só voz, clamar por justiça: justiça por Viviane e por inúmeras outras mulheres, também vítimas — futuras ou passadas — da violência de gênero. Destarte, surge um questionamento: O que é justiça? Trata-se de uma resposta, no mínimo, complexa, até mesmo porque sua exata compreensão perpassa, e muito, de meros conhecimentos jurídicos. Justiça tem até mesmo um conceito caracterizado pela vagueza, ambiguidade e porosidade , vez que admite interpretações diferentes a depender do contexto histórico, cultural e sociológico em que é pesquisada.

Será se existem, todavia, dúvidas que a Justiça no assassinato da juíza Viviane — e de tantas outras mulheres — implica punição dos culpados? Pensamos que não! Mas acreditamos também que culpados são aqueles em desfavor de quem o Estado-acusação conseguiu provar, para além de qualquer dúvida razoável, autoria e materialidade do delito.

Urge ressaltar, desde já, que a necessidade de manutenção da ordem pública e convivência social pacifica não implicam, por si só, legitimidade do poder punitivo. Esses objetivos já eram perseguidos pelo Estado absoluto e, no entanto, a aplicação de castigos desumanos e degradantes, a aplicação desigual da lei, entre outras atrocidades, não refletiam na sociedade um sentimento de justiça .

É cediço que, diante da ocorrência de um crime, surge para o Estado o direito de punir. Todavia, não se trata de um direito ilimitado, sendo imprescindível a observância dos princípios constitucionais e legais que legitimam a aplicação de uma pena. Só existirá justiça no caso Viviane — e em todos os demais casos penais — se a punição recair sobre o verdadeiro culpado, e daí a importância de se respeitar o devido processo penal.

Impera no Brasil, todavia, um pleito por uma justiça sumária, sustentada em uma falaciosa correlação entre garantismo e impunidade. Uma visão falseada que habita no imaginário popular e, o mais grave, também domina o raciocínio de alguns juristas. Prova disso foi um questionamento feito por um promotor de Justiça, cuja identidade é indiferente para os fins da discussão aqui lançada, em suas redes sociais e replicada por inúmeros usuários do Instagram e Twitter, um dia após a morte da juíza Viviane: "Como deve ser a cabeça dos amigos que de manhã lutam pela impunidade de criminosos (garantismo, política de desencarceramento, papinho de que o Brasil é punitivista, que bandido é vítima da sociedade, etc.) e de noite vem pedir justiça pelo assassinato brutal de uma juíza?". 

Fazemos um contraponto: como alguém, principalmente uma pessoa supostamente membro do Ministério Público — figura essencial em um Estado democrático de Direito — trata o garantismo (bem como a política de desencarceramento ) como sinônimo de impunidade? Como alguém ousa usar a memória de uma juíza de Direito para "rasgar" a necessidade de observâncias das regras e princípios convencionais, constitucionais e legais, construídos durante séculos, para que o Estado-juiz possa solucionar as questões penais?

Impede, preliminarmente, reconhecer que o pensamento supostamente aventado por um integrante do Ministério Público não pode ser estendido aos demais membros da instituição, que honram sua função e bem desempenham seu mister constitucional. Todavia, precisamos rechaçar a figura inconstitucional do "promotor de acusação", bem como precisamos "separar o joio do trigo": o garantismo não é sinônimo de impunidade!

O garantismo implica tão somente que uma condenação — assim como também uma absolvição — seja precedida por uma persecução penal pautada pelas regras do jogo impostas, diga-se de passagem, pelo próprio Estado detentor do jus puniendi. O garantismo visa evitar punições equivocadas, pois, quando se pune um inocente, se comete uma dupla injustiça: tem-se um inocente preso e um culpado impune!

Nessa mesma linha de raciocínio, consignou a promotora de Justiça Ana Cláudia Pinho: "Garantismo não é sinônimo de impunidade! Mas de punição com racionalidade e respeito às leis e à Constituição. Nada mais, nada menos. Importante registrar que o paradigma ideal de um Direito Penal mínimo proposto por Ferrajoli não propõe que os bens jurídicos tutelados sejam mínimos. Essa é uma leitura reducionista e totalmente enviesada. Obviamente, Ferrajoli aposta em um processo sério de descriminalização (até porque, convenhamos, há inúmeras figuras típicas que já deveriam ter sido expurgadas há tempos — ou, será que ainda precisamos conviver com ato obsceno, jogos de azar e coisas desse jaez?), sugerindo, como possível solução, a adoção da reserva de código para tratar de matéria de natureza penal. Mas não minimiza a tutela dos bens jurídicos relevantes! O modelo de DP Mínimo (insisto!) diz com o respeito às garantias. Por exemplo, Ferrajoli considera a corrupção crime grave, sim! Porém, em nenhum momento concorda que, para puni-la, podemos jogar no lixo o sistema acusatório e deixar o juiz investigar, adotar medidas constritivas de ofício, etc." .

Não se nega que sejam legítimas as pretensões da sociedade em ter um sistema punitivo eficaz. É preciso, todavia, fincar que inexiste vínculo entre a salvaguarda dos direitos fundamentais do acusado e a insuficiência estatal no seu papel de combater a criminalidade. Não se pode mais conceber o processo penal apenas como meio de defesa social, olvidando sua missão de garantia do cidadão. Nesse sentindo, leciona Ferrajoli: "É verdade que os direitos dos cidadãos são ameaçados não só pelos delitos, mas também pelas penas arbitrárias" .

Imaginar o garantismo como sinônimo de impunidade implica a repristinação de ideais inquisitoriais outrora vigentes, quando o acusado era tratado como meio de prova e não sujeito de direitos.

No mais, é preciso fincar duas premissas importantes em um Estado democrático de Direito: um promotor de Justiça pode, e inclusive deve, pleitear uma absolvição, se não restarem provadas a autoria e materialidade delitiva, sem que isso signifique qualquer afronta a sua missão constitucional, assim como a defesa técnica — patrocinada pela Defensoria Pública ou advocacia privada — pode, e também deve, assentir com algumas condenações, e prova disso é que, muitas vezes, o pedido final da defesa não é pela absolvição e sim por aplicação de uma sanção justa, bem como não existem recursos defensivos contra todos os decretos condenatórios. Dito isso, fica fácil entender que uma mesma mente — respondendo ao já referido questionamento feito pelo suposto promotor de Justiça — é plenamente capaz de lutar sempre pelo garantismo e, ainda assim, entender necessárias condenações!

A luta por justiça não pressupõe promotores de Justiça transmudados em "promotores de acusação" que buscam, mesmo ao alvedrio das normas processuais, a punição dos acusados e, tampouco, uma defesa que almeja sempre uma absolvição, ainda que para isso precise recorrer a meios desleais. Pensar de forma diferente implica uma inversão do viés axiológico-normativo proposto constitucionalmente para os atores processuais penais.

Destarte, é preciso ponderar que uma persecução penal justa e equilibrada é benéfica a toda a coletividade. Tão importante quanto a existência do processo penal é a forma como ele é desenvolvido, levando-se em consideração que — se entre as suas finalidades vigora a busca da verdade — objetiva, outrossim, a salvaguarda dos direitos fundamentais.

O já referido questionamento do suposto promotor é uma afronta ao processo penal democrático e revela o autoritarismo que ainda impera na práxis da Justiça penal brasileira, em que vozes imbuídas por discursos repressivos entendem possível desconsiderar os direitos fundamentais sempre que alegadamente constituam óbice à atividade punitiva.

Vamos, todos, lutar para que a condenação do assassino de Viviane Vieira do Amaral Arronenzi siga o devido processo penal, com respeito aos direitos constitucionais. Afinal, o que pode efetivamente gerar impunidade será a constatação de nulidades aptas a impedir o trânsito em julgado de eventual sentença condenatória, marco constitucional para que alguém possa ser chamado de culpado no processo penal brasileiro.

 

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