Por Lenio Luiz Streck -
Não, não. Calma. A coluna tratará da juridicidade das declarações de um candidato e de sua plataforma. Apenas utilizarei o Direito.
Vamos lá. Já disse muitas vezes e repito aqui: não sou cientista político nem filósofo moral. Sou jurista e falo sobre Direito. Como falei, falarei sobre as inconstitucionalidades que cercam o candidato Bolsonaro. Nem preciso falar sobre o que dele disseram jornalistas e professores como Reinaldo Azevedo (aqui) — vão chama-lo de esquerdista?) — Fernando Horta (aqui) e Boris Fausto (aqui). Portanto, quero falar (apenas) sobre a afronta que o “mito” representa ao Direito. Sim, afronta ao Direito. Juízos morais são outros quinhentos, como se diz na terra do dinossauro mais antigo do mundo (Agudo).
Sim, Bolsonaro é um candidato antijurídico, e demonstrarei isso. Ao trabalho, pois. Em um explícito aceno ao que há de mais reacionário no agronegócio brasileiro, o candidato afirmou que “país que tem Ministério Público do Trabalho atrapalhando não tem como ir para frente”. Bingo: Bolsonaro ganha mídia, apoio de ruralistas, e apela à tão vazia quanto equivocada narrativa de que é o Estado que impede o progresso no país. Mas, ao fazê-lo, assim o fez como o juiz Azdak de O Círculo de Giz Caucasiano, de Brecht: sentado em cima de um livro velho cuja capa lê “Constituição”, o candidato a presidente desrespeita a parte em que o “livrinho” atribui ao MPT funções que dizem respeito, simplesmente, ao combate ao trabalho escravo. Não é difícil, pois, de ver a inconstitucionalidade latente da declaração. Alguém que almeja o cargo de chefe de Estado rasga a Constituição e faz campanha disso.
Não foi a primeira vez em que Bolsonaro sugeriu que a lei fosse rasgada: ele também disse que “o ECA tem que ser rasgado e jogado na latrina”. Assim mesmo. Ele falou do Estatuto da Criança e do Adolescente, conquista civilizatória, que reforça a constitucionalmente prevista proteção integral à criança. O candidato vê no ECA “um estímulo à vagabundagem e à malandragem infantil” (sic). A declaração foi dada no mesmo dia em que o candidato “ensinou” a um menino de uns cinco anos de idade a, com as mãos, simular uma arma. Além disso, disse que crianças de cinco anos já podem ser ensinadas a atirar, usando, inclusive, o exemplo dos seus filhos. Tudo isso é previsto como crime no ECA.
Todo o núcleo de garantias e a parte que garante o modelo de Estado Social constante na Constituição Federal se contrapõe ao que sustenta o candidato Bolsonaro. Mas tem algo em que ele é, de fato, um forte defensor do Estado mínimo: em declaração que fez revirar-se no caixão o velho Hobbes, propôs um estado de natureza, prometendo condecorar por “ação de bravura” policiais e cidadãos que reagirem a tentativas de assaltos. Para um candidato que acredita que bandido bom é bandido morto, não é paradoxal que uma de suas poucas propostas realmente concretas seja um óbvio atentado ao Código Penal?
Aliás, ele defende, explicitamente, a excludente da ilicitude (ler aqui, aqui e aqui), que, traduzindo, quer dizer simplesmente “licença para matar”. O porteiro do STF declararia uma lei dessas inconstitucional. Sem esquecer que uma lei desse tipo colocaria o Brasil abaixo do Paquistão e do Sudão.
Ao votar pelo impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, dedicou o voto ao coronel Brilhante Ustra. Em debate, orgulhou-se de dizer que o livro de Ustra é seu livro de cabeceira. Em entrevista, já defendeu a tortura, que a Constituição Federal considera crime hediondo. Além de dizer também que, ao ser a favor da pena de morte, ele mesmo executaria o condenado. Meninos, eu ouvi isso. Além disso, disse que as pessoas devem sonegar impostos, o que também é crime (no caso, registre-se, prescrito, porque já decorreu tempo para tal).
A questão é mais grave do que aparenta. Isso já não é folclore. Como bem disseram Daniel Sarmento e Madeira Pontes, “a eleição de um presidente com ideias e projetos radicalmente contrários à democracia traduz perigo muito maior para a sobrevivência da empreitada democrática do que a mera aceitação da presença de um partido autoritário na cena política”. E eu acrescento: e com ideias contrárias à Constituição Federal.
Curioso fenômeno de uma democracia suicida. Aliás, falando em suicídio — que, segundo o candidato , “acontece, o pessoal pratica” (ao falar sobre o caso Herzog) —, não é só a democracia brasileira que parece, paradoxalmente, defender a própria morte sem nem perceber. O candidato também. Nada como, em nome da democracia, prometer com ela acabar.
Post scritpum 1. Presunção da inocência também deve beneficiar Bolsonaro.
Portanto, atenção: tudo isso que eu disse acima demonstra um conjunto de fatos e circunstâncias que mostram como o candidato afronta a Constituição Federal. Mas isso não quer dizer que Bolsonaro — e reafirmo minha condição de jurista e não de hincha — poderia ser impedido de concorrer com base no “Fator Renan Calheiros”, que foi impedido, por ampla maioria do STF, de assumir a Presidência da República como substituto (viagem do titular) porque era réu de ação penal. Violação flagrante da presunção da inocência. Mas que pode ser usada a favor de Bolsonaro também. Ou seja, Bolsonaro, como Renan, também é réu. Mas a interpretação não pode ser tão elástica ao ponto de dizer que esse “precedente” (o Brasil e seu “sistema” já famoso de precedentes) se aplica a um candidato que é réu e cuja ação não será julgada até a posse e que, enquanto réu, não poderia assumir o cargo. Tudo isso só mostra o grande equívoco do STF no caso Renan. Substituíram, como já o fizeram na presunção da inocência e ficha limpa, a vontade popular por opiniões morais e políticas.
Continuo convicto de que a Lei da Ficha Limpa fere a Constituição Federal e que o STF erra, em wrong in progress, em não decidir as ADCs. Presunção da inocência: eis o ponto. Eis a pergunta que não quer calar. Com um detalhe — e agora a apreciação é moral: esse conjunto de equívocos pode, paradoxalmente, eleger o próprio Bolsonaro.
Post scriptum 2. Ao ler recentes notícias sobre as eleições, percebo também que não é só Bolsonaro quem ignora a Constituição. Amôedo parece que não leu a Constituição. Quer ser presidente de um país em que, embora a Constituição fale em Estado Social e tenha um amplo catálogo de direitos, quer privatizar tudo. Li inclusive que quer terminar com a escola pública (que tal essa de dar voucher para alunos em um país em que 50% não tem esgoto?). Não preciso falar de algumas propostas de Alckmin e os demais candidatos, que, confrontadas com a Constituição, não param em pé.
Já o PT parece que não aprende. Em seu plano de governo, propõe uma Constituinte. Todos sabem o quanto sou invocado com esse tema. Já escrevi muito sobre isso. Em 2013 fizemos um manifesto contra até mesmo uma constituinte localizada (aqui). E o que dizer de uma constituinte exclusiva? Para mim, isso é cometer haraquiri institucional.
Em síntese, parece que todos os candidatos e partidos querem alterar a balzaquiana Constituição. Isso não é bom. Isso, na verdade, é apostar no fetichismo da lei. Ou seja, é um paradoxo: não acredito nesta Constituição Federal, mas acreditarei na próxima... A lógica no Brasil parece ser a seguinte: como o Judiciário tomou conta da Constituição, então vamos mudá-la. Quem deseja alterar radicalmente a Constituição deveria lembrar de Sócrates. No fundo, Críton (personagem que representa o senso comum e quem não acredita na lei da polis), ao propor que Sócrates fugisse, misturou a lei da polis com aquilo-que-disseram-sobre-a-lei-da-polis. E Sócrates não fugiu, porque bem sabia que o problema não era o direito da polis, mas, sim, o modo como ele foi interpretado. Estou sendo sutil o suficiente? Ou explícito demais?
Ora, (e)leitores e (e)leitoras, o problema não está na Constituição. Se ela foi vergastada por opiniões morais, políticas e econômicas durante estas décadas, a solução não pode ser mágica. Fazer outra? É? E quando fizerem a mesma coisa com a nova, o que faremos? Ah, faremos uma novíssima. E quando esta for de novo vergastada? Vamos fugir para o cume?
Na minha modesta e jurássica opinião, quem sabe devamos reconhecer que o maior erro foi não termos sido ortodoxos com esta, a melhor Carta que já fizemos. Todavia, teremos que ter claro que, enquanto tivermos intérpretes que aceitem que a voz das ruas valha mais do que a Constituição ou que neguem o seu caráter compromissório e normativo, jamais teremos esta, a Constituição, como limite do poder.
Numa palavra: Enquanto a Constituição disser X e os interpretes disserem Y, ela não será limite para nada. Enquanto não voltarmos a ensinar Direito nas faculdades e pararmos de (des)moralizar o Direito, ficaremos fazendo discursos tautológicos. E procurar soluções mágicas. Na busca do Santo Graal da política. Esquecendo que, sem o Direito, teremos... bem, teremos o que temos.