Por Marcelo Ricardo Colaço -
Em meio a apelos sociais e pleitos de vários segmentos estatais, sobretudo os vinculados à persecução criminal, o presidente da República sancionou e publicou, no último dia 5, a nova lei de abuso de autoridade (Lei 13.869/2019), tendo vetado 19 artigos que compunham o projeto apresentado.
Referido diploma, além de revogar integralmente a Lei 4.898/65, promoveu alterações nas seguintes Leis: 7.960/1989 (Prisão temporária), 9.296/96 (Interceptação telefônica), 8.069/1990 (E.C.A), e no Decreto-Lei nº 2.848/40 (Código Penal).
Vários institutos concernentes à autuação, responsabilidade, punição e efeitos de atos perpetrados por agentes públicos vinculados à persecução criminal foram alterados ou criados. Alguns deles com inequívoca pretensão de mitigar o poder de ação dos agentes. Já, outros, com claro propósito de ampliá-los, havendo ainda dispositivos visando dificultar a punição dos causadores dos atos de abuso.
De forma geral há um panorama de anacronismo que nos revela, prima face, a ausência de direcionamento do parlamento, cujos trabalhos não demonstram a utilização de uma ideologia homogênea. Pelo contrário, revelam total desencontro de ideias e fundamentos que, aliadas às precárias e tecnicamente anêmicas razões de veto, pois em sua maioria pautaram a fundamentação na insegurança jurídica, acabam por demonstrar a sobreposição das vontades populistas de determinados seguimentos sociais sobre a imprescindível análise técnica que necessária à função de inovar a ordem jurídica.
Entretanto, apesar da digressão sobre tais temas, eles não se constituem como tônica da presente confabulação. Nesse ensaio, objetiva-se tratar especificamente sobre o tema ligado à redação do art. 10 da novatio legis em análise, que ressuscita o instituto da condução coercitiva, tema já debatido e decidido pelo nosso Pretório Excelso nas ADPFs 395 e 444, nas quais se declarou que a condução coercitiva de réu ou investigado para interrogatório, constante do artigo 260 do Código de Processo Penal (CPP), não foi recepcionada pela Constituição de 1988.
O artigo em comento torna típica a decretação da condução coercitiva com alicerce na seguinte redação:
Art. 10. Decretar a condução coercitiva de testemunha ou investigado manifestamente descabida ou sem prévia intimação de comparecimento ao juízo:
Pena - detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.
Efetuando-se pormenorizada análise da descrição típica, várias ponderações hão de ser efetuadas. A primeira se circunscreve ao sujeito passivo mediato do delito, isto é: investigado e testemunha. A determinação do sujeito passivo destoa das discussões entabuladas pela doutrina e jurisprudência, notadamente nas ADPFs supramencionadas, cujos debates tiveram esteio na extensão do direito constitucional ao silêncio garantido ao suspeito, e que não abrange, por conseguinte, a testemunha, a qual possui o dever de revelar seu conhecimento sobre os fatos, sob pena de incorrer em crime e, uma vez recalcitrando em comparecer ao ato policial ou judicial, pode ser conduzida, pois sua ausência acabaria esvaziando e tornando inefetivos os fins da investigação ou processo, ferindo inclusive a higidez do sistema.
A segunda ponderação aponta diretamente para a permissibilidade de se efetuar a condução coercitiva do suspeito, que pode aqui ser estendida, por consequência lógica, ao investigado, indiciado, denunciado e acusado. A discussão verticaliza-se na análise gramatical ou filológica e teleológica do conceito jurídico indeterminado “manifestamente incabida”, pois sua análise possibilita justificar a aplicação da condução coercitiva.
Para tanto, como um conceito jurídico indeterminado, devido a sua alta carga axiológica, possibilita a interpretação mais ampla do instituto com base no caso concreto, basta que se demonstre a imprescindibilidade da medida, notadamente em casos em que valores constitucionais como a vida, liberdade e segurança pública estejam a permeando, tornando-se, consequentemente, legal e cabida sua realização, mesmo ao suspeito.
Não obstante, ainda se observa haver um segundo excerto, também constitutivo do tipo penal, com a expressão “sem prévia intimação de comparecimento ao juízo”, separado da hipótese anterior pela conjunção alternativa “ou”, significando assim análise de situação diversa. Essa segunda proposição, por sua vez, também pautada em análises gramaticais e teleológicas, gera outra regra permissiva da condução, ou seja, efetuando-se uma leitura a contrário senso, no caso de terem sido enviadas intimações pretéritas não atendidas pelo acusado e agora também à testemunha, admite-se, por conseguinte, a condução coercitiva desses.
A nova regra, assim como no caso da Vaquejada, caracteriza-se como clara reação legislativa à decisão judicial, conhecida como efeito backlash, a qual visa superar a decisão proferida pelo Supremo nas ADPFs citadas alhures. Configura-se reativa, pois na decisão das ADPFs o Pretório Excelso se manifestou pela inadmissibilidade total da condução coercitiva do suspeito, porém agora, adequando-se o instituto de forma a torná-lo cabível, como já citado, além de não se configurar ato criminoso, evidencia-se possível sua aplicação.
Destarte, com base na nova figura típica, observa-se ter o parlamento reavivado a figura da condução coercitiva, a qual, para sua implementação deve obedecer aos critérios já citados e dispostos no próprio tipo penal.
Acredito, entretanto, ser salutar um alerta! Já que nem sempre o vernáculo é corretamente utilizado hodiernamente, sobretudo durante as inovações legislativas, fomentando assim reiteradas contendas doutrinarias e jurisprudenciais, objetivando evitar incorrer no tipo penal, pertinente será uma leitura da conjunção alternativa como se aditiva fosse, executando a medida com a soma dos elementos, ou seja, demonstrar ser a condução cabível e proporcional no caso concreto, bem como comprovar-se o envio pretérito de intimações não atendidas.
Por derradeiro, apesar de ter externado que não tocaria em outros pontos da lei, mas apenas para finalizar de forma mais leve e até jocosa – sei que do ponto de vista técnico se traduz lamentável a ausência de cuidado com o processo legislativo – cabe uma breve exposição do art. 13 do novo diploma, sancionado e publicado após os vetos presidenciais, ex vi:
Art. 13. Constranger o preso ou o detento, mediante violência, grave ameaça ou redução de sua capacidade de resistência, a:
I - exibir-se ou ter seu corpo ou parte dele exibido à curiosidade pública;
II - submeter-se a situação vexatória ou a constrangimento não autorizado em lei;
III - (VETADO).
À primeira vista o leitor pode até pensar que esse subscritor esqueceu-se de parte do artigo. Entretanto, está aqui grafado exatamente como publicado, ou seja, sem o seu preceito secundário. Encontra-se dessa forma por ter sido tanto seu último inciso quanto a sua pena vetados pelo Presidente e, portanto, a conduta nele disposta se configura ato típico, porém carente de punição determinada. Típico de uma legislação Tupiniquim.