Lenio Luiz Streck -
A ConJur noticia que o desembargador José Damião Pinheiro Machado Cogan, do Tribunal de Justiça de São Paulo, de ofício, ao analisar um Habeas Corpus durante um plantão judicial, decretou a prisão preventiva de um homem que furtou um celular. O suspeito teve sua prisão decretada em primeira instância e a soltura condicionada ao pagamento de fiança de R$ 1 mil. No HC, a Defensoria Pública alegou que a determinação de fiança para a soltura de pessoa pobre é ilegal. Disse ainda que a prisão não foi devidamente fundamentada. O desembargador concordou com a irregular concessão de fiança para a soltura do homem, mas não por causa de sua situação financeira ou falta de fundamentação. Segundo Cogan, o “audacioso praticante de furtos e roubos” não teria direito a pagar fiança por já ter cometido outros crimes e ter sido preso noutra oportunidade. E disse:
“O paciente é reincidente em crime patrimonial principalmente com violência, tendo sido libertado da Penitenciária de Marabá Paulista em 13 de fevereiro de 2015. Dessa forma, nos termos do art. 313, incisos I e II do CPP o arbitramento de fiança, pelo que fica ora revogado o despacho judicial e decretada a prisão preventiva para fins de garantia da ordem pública”.
Ou seja, o preso correu sozinho e chegou em segundo. É como alguém que condenado a uma pena de 5 anos, recorre e recebe uma pena de 7, sem que o MP tenha recorrido. Simples assim.
Sobre o caso, Aury Lopes Jr escreveu dizendo que o TJ-SP revogou: 1. a vedação da reformatio in pejus; 2. o princípio da correlação; 3. a vedação de decretação de prisão preventiva de ofício na fase pré-processual (artigo 311); 4. alterou a natureza jurídica, objeto e finalidade do HC; 5. revogou o princípio da legalidade, o bom senso, o devido processo, a CF, a CADH, etc. Alexandre Morais da Rosa também falou sobre o tema, ironizando: “Como ensinar processo penal quando um juiz decreta, de ofício, prisão em HC?” (ler aqui). Bingo para os dois.
Resta-me discutir as razões pelas quais um agente público, que possui responsabilidade política, arvora-se no direito de decidir contra a lei e contra a Constituição. A favor dele apenas... a sua opinião pessoal. Sim. Ele decidiu a partir de sua particular visão de mundo; de sua percepção moral. Achou o direito muito frouxo. Para ele, o indiciado merecia ser recolhido. Ora, qualquer um pode pensar que esse indivíduo deve ser recolhido. Esse é um juízo moral. Mas, onde está o respaldo jurídico? Moral não corrige Direito.
Mas, vejamos. Por mais criticável que seja o episódio proporcionado pelo desembargador do TJ-SP, paradoxalmente não tem rigorosamente nada de especial... se o compararmos ao que vem sendo feito há tantos anos. Não surpreende porque tem a mesma dimensão a) da inversão do ônus da prova ainda praticada no judiciário em matéria penal; b) do usucapião em terras públicas; c) da concessão da metade da herança para a amante; d) da fragilização da presunção da inocência; e) do descumprimento do novo CPC; e) da insistência no protagonismo judicial e no instrumentalismo processual; f) da legitimação das escutas e divulgação clandestina de interceptações até mesmo de um Chefe de Executivo (agora consideradas ilegais pelo ministro Teori); g) do modo como se lida com os embargos declaratórios; h) do modo como são tratados os advogados nas audiências, i) do imaginário autoritário que foi se institucionalizando, em que até os meirinhos incorpora(ra)m o modo-de-tratar-as-partes-e-seus-causídicos, j) da aposta em um modo “teleológico” de decidir, tipo “primeiro decido-e-depois-busco-o-fundamento”; l) da fabricação de enunciados; m) da paixão pelo pamprincipiologismo; n) da doutrina que acredita na verdade real; o) da doutrina que acha que não devemos cumprir a coerência e integridade do artigo 926 do CPC e despista o seu conteúdo, p) daquilo que cada advogado já passou nos últimos anos com decisões contraditórias até mesmo dentro de um mesmo órgão fracionário; q) da delegação do trabalho para a estagiariocracia; r) do estrago que fez a ponderação, manejada irresponsavelmente pela doutrina e jurisprudências caboclas; s) dos professores que dizem aos seus alunos que Kelsen queria a separação entre Direito e moral; t) dos professores que dizem que a discricionariedade é inevitável (ou seja, “isso é assim mesmo”); u) dos livros simplificadores escritos e consentidos pela falida e conivente dogmática jurídica; v) das monografias, dissertações e teses defendidas sobre temas monográficos ou protomonográficos; x) do ativismo “vanguardista” que se consolidou como a “salvação do direito” e z) da caminhada que estamos fazendo rumo a uma indigência epistêmica. De A à Z, tudo isso constitui fermento para uma tempestade perfeita.
Corda espichada arrebenta. A moral e o moralismo (enfim, o solipsismo) são tentadores. Eles vêm se enroscando e sussurram no ouvido do utente: “— Ah, vai, deixa a lei de lado; esses legisladores não possuem nem um décimo do seu preparo; Constituição? Tem garantias demais; Decida conforme sua consciência, ora; entre a lei e sua consciência, fique com a última”. É o solus ipse atuando como grilo falante. Sim, o solipsismo é uma paixão destruidora. É a barbárie interior. Mas tem o seu preço. Quando a moral se instala, lá sei vai o direito. Não adianta correr atrás.
Sobre moral, política e direito, vou contar uma historinha. Sábado pela manhã, frio de 5º na Dacha, o professor Ernildo Stein e eu discutíamos o tema da constituinte e da predação entre a política, a economia, a moral e o Direito, a partir da minha coluna sobre o perigo do canibalismo jurídico (ler aqui). Ele me contou, então, sorvendo uma xícara de fina infusão da rubiácea colombiana tecida por Rosane, a seguinte anedota-metáfora, que pode servir para ajudar a explicar a decisão do desembargador paulista. Fiz a devida adaptação. Ei-la: Um português veio ao Brasil e foi ferroado pelo marimbondo mais feroz, o marimbondo caboclo (polistes canadensis). Impressionado, capturou três exemplares e os colocou em uma caixinha, para mostrá-los aos patrícios. Como um nomoteta (dador de nomes) de marimbondos, chamou o primeiro de “moral”, o segundo de “Direito” e o terceiro de “política”. Um de seus amigos, sabendo da história e da intenção, resolveu fazer uma brincadeira e soltou os insetos, fechando novamente a caixa. Reunidos os amigos, o português conta a história do bicho mais feroz e da dor mais terrível que sofreu no Brasil. Fez mistério e começou a abrir a caixa. E estava vazia. Então sentenciou: “—Viram? Eles são tão terríveis que se devoraram entre si”. Bingo. Assim se dá “a coisa” no Brasil... Só não se sabe se foi Moral que devorou primeiro Direito, se foi política que devorou Direito ou se este, ao se defender, comeu política. Pois foi isso que fez o TJ-SP. Fez com que Direito e Moral se autodevorassem.
É possível ainda salvar o Direito? O que restou da política? Como ficará a economia no meio disso tudo? No direito vivemos uma anarché. Em termos de Constituição, se apagarmos os princípios sobre os quais ela foi fundada, esta deixa de ter sentido. Apagar os princípios é correr para trás. Sócrates negou-se a fugir, por princípio. E o que é um princípio? A resistência. O não necessário. É algo que nasceu enquanto Sócrates se tornava... Sócrates.
Voltando ao episódio do TJ-SP, pediria ao desembargador: “— Ajude-nos a salvar o que restou da Constituição. Quando critico um modo de agir como o seu nesse caso do HC, não sou contra Vossa Excelência. Estou apenas querendo impedir que o Direito seja predado pela moral, como na metáfora dos marimbondos. Apenas queremos que cumpra aquilo que ajudou a forjar o Brasil: esta Constituição e este Direito”. Excelência: Se não a salvarmos e não salvarmos o direito, pouco restará.
O mesmo vale para os demais juízes e MPs. Vejam o manifesto dos juízes do trabalho contra o desmonte da justiça do trabalho (ler aqui). Pois é. Eles, sabiamente, já estão vendo “lá na frente”. Sabem que os marimbondos predadores se aproximam.
Pergunto: o que o nosso desembargador paulista acha que vai acontecer com os demais direitos se destruirmos esta Constituição? E o que os MPs acham que sobrará da instituição em uma assembleia constituinte? Melhor não dar a ideia, pois não?! Enfim, senhor desembargador, juízes, membros do MP e demais carreiras e advogados de Pindorama: minhas palavras devem ser entendidas como um afeto. Um agrado. Uma aliança. Como um voto sincero da base aliada (não como a base aliada dos governos, que agem como caracídeos da espécie hoplias malabaricus).
Enfim, se não gostam do que eu digo nessa minha insistência em defender a Constituição e pela minha cruzada contra o seu descumprimento e o descumprimento das leis, pelo menos absorvam minhas observações como algo bem utilitarista: a preservação e estabilidade traz mais felicidade global. Ou então por fins mais autocentrados: será melhor para preservar as próprias funções e prerrogativas (para dizer o menos). Se me entendem o que quero dizer.
É o que digo para meus alunos: não é necessário que acreditem quando digo que o direito não é e não deve ser o que o judiciário diz que é. Mas, por favor, façam um esforço para compreender que o que estou dizendo preservará os vossos empregos. Sim, porque quanto mais se realiza a máxima de que o direito é o que é porque alguém diz que é, mais você, estudante, advogado e professor se tornará inútil.
Portanto, de qualquer lado que se entenda o que estou dizendo, ela é “do bem”. Juiz, Promotor, estudante, estagiário, advogado: o seu adversário não sou eu. O seu maior adversário... é você mesmo. Basta continuar se comportando desse modo descumprindo aquilo que a sua condição de possibilidade: o direito e o futuro me dará razão. Aliás, já está dando. Ou mude de profissão.
Uma frase de Carlos Heitor Cony na Folha de S.Paulo de domingo: Os fins justificam os meios é uma máxima fascista e imoral. Bingo, Cony.
Post scriptum: apoio ao japonês da federal — pimenta nos olhos dos outros... Li que a federação dos policiais federais deu apoio ao japonês da federal (ler aqui). Nada contra. Só não torrem os advogados quando fazem um manifesto contra o arbítrio na condução dos inquéritos e processos judiciais feitos por forças tarefas e que tais. Estamos entendidos? Base aliada, certo?
Post scriptum 2: Juiz é juiz 24 horas por dia? Escreverei, em outra coluna, sobre isso que disse o colega de ConJur Vladimir Passos de Freitas (....): “o magistrado, no exercício de suas funções e também fora delas, porque juiz é juiz 24 horas por dia...”. Como assim? Quer dizer que, se o açougueiro discutir com juiz sobre o preço da picanha, pode ser preso por desacato? Na sala de aula, não está lá o professor e, sim, o juiz? No futebol também? Pergunta que buscarei responder em coluna específica: “— Não estamos indo longe demais com essa falta de secularização e essa mistura dos dois corpos do rei, questão tão bem trabalhada por Ernst Kantorowicz”? Em 1495 isso já foi melhor tratado no reinado de Henrique VII. Mas volto a esse assunto. Deixo como aperitivo.
Post scriptum 3. Juiz não pode ser coaching! Alvissaras! Na lista acima de A a Z, inclua-se essa coisa de “coaching de concursos”. Incr'ivel. O Conselho Nacional de Justiça teve que dizer que ser coaching não fazia parte do conteúdo do permissivo constitucional do exercício de magistério para magistrados. Bingo. Mas, pergunto: tinha magistrado exercendo coaching? E há membros do MP fazendo isso? E na AGU, tem? Inacreditável. Ou não.
Post scriptum 4. Não teria havido precipitação da Corregedoria do TRF 4? Leio que o ministro do Supremo Tribunal Federal Teori Zavascki decidiu que os grampos de Lula e Dilma são ilegais. Também considerou ilegal a divulgação das conversas. Bingo. Bom, fui o primeiro a denunciar (ler aqui)isso a jornais e rádios do Brasil e do mundo (França, Portugal e Espanha). Daí minha pergunta: não teria sido precipitado o agir da Corregedoria do TRF-4 no arquivamento das reclamações feitas contra o juiz Sergio Moro ? (ver aqui). Só para perguntar. E perguntar não ofende. O que diz mesmo a Lei das Interceptações? E o que diz a Resolução do CNJ sobre a matéria?