Por Bruno Torrano -
Introdução
Em recente texto publicado no Consultor Jurídico, intitulado “Sobre a possibilidade de prisão antes do trânsito em julgado da condenação”, o eminente jurista Luiz Guilherme Marinoni escreveu que “um Juiz Constitucional não terá credibilidade se manipular os métodos de interpretação para alcançar um resultado preconcebido”.
Neste artigo, com o devido respeito ao professor, sustento que, embora verdadeiro, o trecho citado não confirma a tese geral por ele defendida, no sentido de que a execução provisória da pena criminal é juridicamente possível no nosso sistema. Em suma: manipulação dos métodos interpretativos houve justamente por parte daqueles que, hoje, defendem a viabilidade da execução provisória, mesmo diante do que dispõe o artigo 283 do Código de Processo Penal.
Variação nas diretivas interpretativas.
Antes de afirmar que ministros do Supremo Tribunal Federal não podem manipular os métodos de interpretação, Marinoni ressalta a “necessidade de a Corte (Constitucional) não variar a sua metodologia de interpretação diante de casos diferentes”. Segundo o autor, “uma Corte que julga um caso afirmando a possibilidade de uso de determinada diretiva interpretativa não pode negá-la quando está diante de outro caso, substancialmente distinto”.
Marinoni parece ter criado um novo lema interpretativo: em vez do clássico treat like cases alike (“tratar igualmente casos iguais”), sobreveio um inquietante treat different cases alike (“tratar igualmente casos diferentes”). Não surpreende, nesses termos, tenha o autor feito uma analogia incabível entre aquilo que o STF fez na decisão relativa à união homoafetiva (ADPF 132) e aquilo que se espera do STF na discussão relativa à execução provisória da pena.
A argumentação de Marinoni intriga porque ignora aquilo que, até pouco tempo, era um lugar-comum no meio jurídico: normas que interferem gravemente nos direitos fundamentais devem ser interpretadas em sentido estrito (ou restritivo, segundo alguns); normas que envolvem preservação, enriquecimento ou ampliação de direitos fundamentais podem conviver com interpretações mais ambiciosas, de modo a privilegiar métodos interpretativos que não sejam, necessariamente, o literal (inclusive “diretivas funcionais”, para empregar o termo de Marinoni).
Embora muitas sejam as explicações possíveis para essa distinção de tratamento interpretativo, creio que a ideia de “economia da confiança”, trabalhada por Scott Shapiro e por mim adaptada ao contexto brasileiro, resume bem a questão: como consequência de conveniência político-organizacional e de decisões institucionais pretéritas, ramos distintos do direito possuem lógicas decisórias distintas e, por conseguinte, demandam que o peso atribuído a determinado cânone interpretativo (“literal”, “finalista”, “sistemático”, “histórico” etc.) varie de acordo com os princípios específicos e os propósitos particulares para os quais foram criados.
Nesse sentido, ao contrário do que defende Marinoni, espera-se, sim, que uma corte constitucional varie a sua metodologia interpretativa quando está diante de casos substancialmente distintos. Seja na primeira instância, seja no STF ou no STJ, um juiz que decide, diante dos princípios do Direito Penal, se uma pessoa pode ser recolhida à prisão, em execução provisória, antes do trânsito em julgado da sentença condenatória, não deve empregar a mesma “diretiva interpretativa” de um juiz que decide, diante dos princípios do Direito de Família, se é possível a ampliação do conceito de entidade familiar para fins de garantia de direitos de minorias políticas. Decisões manipulativas — ablativas, aditivas ou substitutivas — estão à disposição do STF e podem fazer sentido em alguns casos. Noutros, todavia, podem significar incontornável arbitrariedade judicial.
Não é que argumentos como “realidade social” ou “evolução da sociedade” devam ser completamente banidos do direito. Tais argumentos, incluídos os de cariz consequencialista, têm papel relevante a desempenhar nas áreas em que a Constituição e o legislador ordinário depositam maior grau de confiança na capacidade interpretativa do magistrado, tomando este como um colaborador potencial no desenvolvimento compartilhado de planejamentos político-econômico-sociais (por exemplo, setores do Direito Civil — “princípio da operabilidade” —, do Direito Ambiental e do Direito Empresarial) e no enriquecimento de direitos fundamentais (por exemplo, direitos de minorias políticas, Estatuto do Idoso, Estatuto da Pessoa com Deficiência etc.).
Mas tais argumentos fundados na força normativa dos fatos e em consequências, caso empregados para afastar significados estritos atribuíveis às palavras do texto legal, são terminantemente vedados quando se trata de áreas do direito em que a Constituição e o legislador ordinário depositam pouca ou nenhuma confiança no poder criativo do magistrado, com o propósito de garantir o entrincheiramento de direitos individuais, preservar a justificação moral do Poder coercitivo do Estado e potencializar a função contra-majoritária do Poder Judiciário (por exemplo, setores abrangentes do Direito Penal e Direito Tributário). Nesses espaços do Direito, ao contrário do que preceitua Marinoni, não pode o juiz optar “por uma diretiva interpretativa funcional — indo obviamente além das diretivas linguística e sistemática”, sob pena de implosão da finalidade precípua dos órgãos jurisdicionais, que é a de garantir direitos individuais contra a prepotência de autoridades públicas e anseios impulsivos da população.
Sendo assim, cabe a uma corte constitucional reconhecer a variação contingente das diretivas interpretativas aplicáveis não apenas para decifrar quais os limites dentro dos quais, em uma área do direito menos regulada ou mais afeita ao enriquecimento pragmático de direitos fundamentais, sua decisão judicial criativa, em nítido “desenvolvimento do direito”, pode ser considerada legítima, como também — e esta é a chave na presente discussão — para compreender com maior clareza os momentos em que o direito não requer desenvolvimento criativo algum, é saber, os momentos decisórios que, em verdade, exigem pulso firme do Judiciário contra maiorias circunstanciais, mediante apelo à autoridade dos limites semânticos do texto legal, independentemente de “sentimentos sociais”.
Manipulação interpretativa no debate sobre execução provisória da pena Afirmar que o tratamento interpretativo-metodológico diferenciado de casos diferentes tem alguma relação com a manipulação voluntária de textos e significados conduziu Marinoni a confundir má-fé interpretativa com o natural gerenciamento de confiança que é depositado pelo sistema em cada ramo do direito e cada autoridade jurídica. A falha é grave o suficiente para minar os propósitos argumentativos do texto ora comentado. Mas há, ainda, um ponto de especial importância a ser examinado.
Creio não ser exagero presumir que virtualmente todos estão de acordo com a proposição de Marinoni de que o STF não pode manipular, a seu bel prazer, métodos interpretativos objetivando um resultado preconcebido. Essa afirmação, todavia, não socorre os defensores da execução provisória da pena, e sim aqueles que acusam o malabarismo hermenêutico que se fez com o propósito de se concluir que o artigo 283 do Código de Processo Penal diz uma coisa que ele não diz.
Ressalte-se, desde logo: a redação do artigo 283 do CPP é distinta da redação do artigo 5º, LVII, da Constituição. Este último fala que “ninguém será considerado culpado” até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Diante disso, muitos — incluso Marinoni — viram uma brecha interpretativa para traçar uma distinção entre os conceitos de “formação de culpa” e de “prisão”, de modo a inferir que o texto constitucional afirma apenas que o primeiro desses conceitos depende de trânsito em julgado, enquanto o segundo, não.
Já o artigo 283 do CPP dispõe expressamente que “ninguém poderá ser preso”, ressalvadas as hipóteses de prisão em flagrante, temporária ou preventiva, senão “em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado”. Mesmo que, porventura, a distinção entre “formação de culpa” e “prisão” faça sentido diante do texto da Constituição, ela certamente não é suportada pelo texto do artigo 283 do CPP, que fala expressamente em prisão, e não em formação da culpa.
Esperava-se, nesse sentido, que Marinoni destinasse muito mais tempo a explicitar o porquê de o artigo 283 dever ser declarado inconstitucional, e não que insistisse não haver “como imaginar que algum ministro da Corte possa declarar que a prisão em segundo grau é inconstitucional com base no dispositivo da Constituição que afirma que ‘ninguém será culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória’”. Mais do que a inconstitucionalidade da prisão em segundo grau à luz do texto direto da Constituição, o que está em jogo, especificamente nas ADCs 43 e 44, é a constitucionalidade da escolha do legislador ordinário, materializada no artigo 283 do CPP, de aguardar o trânsito em julgado para fins de prisão (ressalvadas as cautelares), e não apenas formação da culpa.
Esse é o ponto que traz as maiores dificuldades argumentativas aos defensores da execução provisória em segunda instância. Ou (i) se afirma, sem ressalvas, que o artigo 283 do CPP é constitucional, e, por conseguinte, eles estarão errados; ou (ii) se afirma que o dispositivo não é constitucional em razão da “realidade social contemporânea”, conforme diz Marinoni, ou do “sentimento social”, e eles estarão violando, a um só tempo, o gerenciamento de confiança presente na Constituição e a função contramajoritária do Supremo Tribunal Federal; ou, por fim, (iii) se afirma, como fez o ministro Luís Roberto Barroso, que o dispositivo é constitucional, mas se emprega uma “interpretação conforme à Constituição” que atribui ao texto do artigo 283 do CPP um significado que não é por ele suportado, para o fim de estabelecer que, ressalvadas as prisões cautelares, a proibição de “prisão” até o trânsito em julgado, na verdade, é uma permissão de “prisão não-cautelar” após a segunda instância.
As soluções (ii) e (iii) significam dar prevalência a esperanças pessoais preconcebidas. Em ambos os casos, está-se, em um ramo do direito que deposita pouca confiança na capacidade interpretativa dos magistrados e requer autodisciplina judicial e legalidade estrita, a olhar primeiro para aquilo que se considera, subjetivamente, grave no meio social, para só então verificar aquilo que o direito demanda.
Conclusão: de onde vem a manipulação?
Analisei de forma aprofundada, em outro estudo, o voto proferido pelo ministro Luís Roberto Barroso nas ADCs 43 e 44. Aqui, calha apenas registrar que se trata do exemplo paradigmático da solução (iii), apontada no fim do tópico anterior.
Na decisão, Barroso esclarece que as premissas de que parte não estão relacionadas com a maximização da proteção do indivíduo em face do poder penal do Estado, e sim, em suas palavras, com a “confiança da sociedade na Justiça Criminal” e com o “sentimento social de ineficácia da lei penal”. Assim sendo, o Ministro cita, de início, uma amostragem de casos penais relevantes que, em sua visão, servem como exemplo privilegiado de que o “sistema que tínhamos” (antes da decisão corretiva do STF no HC 126.292) “não era garantista”, e sim “grosseiramente injusto”, seja por “estímulo à vingança privada”, seja por difundir “a impressão de que o crime compensa”, seja por ser “um golaço da impunidade” (sic), seja por estimular um “primitivismo puro” ou por “desmoralizar o país perante a comunidade internacional”.
Reparem: todas as proposições de Barroso, supra, são formuladas com o fim manifesto de “explicitar como o artigo 283 deve ser interpretado para que possa subsistir validamente”. Para Barroso, e, em certa medida, para Marinoni, a interpretação do artigo 283 do CPP vem “de baixo”, da “realidade social”, e nada tem a ver, em princípio, com o significado das palavras que estão escritas no referido dispositivo legal. Afinal, reconhecer os limites suportados pelas palavras ali presentes implicaria ofensa àquilo que ambos os juristas já traçaram, a priori e em suas consciências, como solução mais adequada ao caso.
Especificamente no voto do ministro Barroso, a “realidade social”, dentre outras premissas, serviu para conferir interpretação conforme ao art. 283 do Código de Processo Penal, de modo a, por um lado, preservar a constitucionalidade do dispositivo e, por outro, indeferir o pedido cautelar dos autores da ação — os quais pediam justamente a declaração de constitucionalidade do dispositivo... Confuso? Sim. Demais.
De um lado, portanto, existem aqueles que defendem a execução provisória com base nos argumentos acima transcritos, derivados da “realidade social” e, em certos casos, do “sentimento da população”, contra o que dispõe, de forma bem clara, o artigo 283 do CPP. De outro, há os que desejam atribuir ao mencionado artigo 283 do CPP um significado suportado por suas palavras, a partir do compromisso com o gerenciamento institucional de confiança, com a função contra-majoritária do Poder Judiciário e com ensinamentos dogmáticos consolidados acerca do modo correto de se interpretar restrições a direitos.
A questão que fica é a seguinte: a qual desses dois grupos se aplica a regra marinoniana citada no início do artigo, de que “Um Juiz Constitucional não terá credibilidade se manipular os métodos de interpretação para alcançar um resultado preconcebido”? Creio que a resposta não é difícil.