Execução provisória da pena. STF viola Corte Interamericana. Emenda Constitucional resolveria tudo

Luiz Flávio Gomes -  

No Brasil a criminalidade difusa é praticada por todas as classes sociais (poderosos e não poderosos delinquem). A diferença é que os barões ladrões, sobretudo da delinquência econômica cleptocrata (DEC), sempre foram privilegiados com a im(p)unidade penal, visto que, tanto quanto os aristocratas da colônia e do Império, são os donos da aberrante “ordem social” (assim como normalmente do sistema penal) construída em benefício deles. 

Há dois sistemas mundiais para se derrubar a presunção de inocência (possibilitando a imediata execução da pena). Primeiro: o do trânsito em julgado final. Segundo: o do duplo grau de jurisdição. 

No primeiro sistema, somente depois de esgotados “todos os recursos” (ordinários e extraordinários) é que a pena pode ser executada (salvo o caso de prisão preventiva, que ocorreria teoricamente em situações excepcionalíssimas). No segundo sistema a execução da pena exige dois julgamentos condenatórios feitos normalmente pelas instâncias ordinárias (1º e 2º graus). Nele há uma análise dupla dos fatos, das provas e do direito, leia-se, condenação imposta por uma instância e confirmada por outra. 

A quase totalidade dos países ocidentais segue o segundo sistema (duplo grau). A minoria, incluindo-se a Constituição brasileira (art. 5º, inc. LVII), segue o primeiro (do trânsito em julgado). O direito internacional deixa que cada país regule o tema da sua maneira. 

A decisão polêmica do STF, em busca da certeza do castigo e reformando seu entendimento anterior (HC 84.078, de 2010), passou a adotar o segundo sistema (duplo grau). 

O espírito do julgamento do STF está correto (ninguém mais suporta a criminalidade e sua impunidade, sobretudo da delinquência econômica cleptocrata). O império da lei (para todos) vale mais do que a edição populista e estelionatária de novas leis penais mais duras (os legisladores demagogos, com isso, só iludem os tolos). Beccaria já afirmava, em 1764, no seu famoso livro Dos delitos e das penas (veja nosso livro Beccaria, 250 anos), que mais vale a certeza do castigo que a severidade das penas. 

O STF, atendendo o clamor de “morolização” da decrépita Justiça criminal brasileira (a expressão entre aspas é de Igor Gielow), decidiu pela execução provisória da pena, logo após respeitado o duplo grau de jurisdição em favor da defesa (isso significa dois julgamentos condenatórios dos fatos, das provas e do direito). A decisão controvertida, com isso, deixou o leito de Procusto do “transito em julgado” (primeiro paradigma). 

O STF, em lugar de exigir do Congresso Nacional a explicitação do texto constitucional, optou por bater de frente com a Magna Carta (como disse o ministro Celso de Mello, que ainda afirmou que 25% das decisões são reformadas pelo STF). De guardião da Carta Magna passou a estuprador explícito dela. 

Rasgou-se a Constituição (tal como está escrita). Em lugar de elucidar, o STF criou polêmica. Mais: violou-se totalmente a jurisprudência da Comissão e da Corte Interamericanas de Direitos Humanos (veja o caso Equador 11.992ª, item 100 e o caso Suárez Rosero). 

O lado positivo: o assunto ganhou relevância nacional. Efervesceu. Com urgência deveria ser disciplinado pelo Parlamento, para adoção do segundo paradigma (duplo grau). Depois de dois julgamentos dos fatos, das provas e do direito passa-se para a execução da pena. Dois julgamentos dos fatos, provas e do direito, no entanto, não é a mesma coisa que uma (isolada) condenação no segundo grau de jurisdição (réu absolvido em primeira instância e condenado na segunda). 

Recorde-se: o segundo modelo (duplo grau) exige dois julgamentos de mérito para se derrubar a presunção de inocência, tal como previsto no art. 8º, 2, “h”, da Convenção Americana de Direitos Humanos (e jurisprudência correspondente). De acordo com nossa opinião, dois julgamentos condenatórios de mérito. A chance de erro nesse caso é pequena. 

Estou plenamente de acordo com o espírito do julgamento do STF, que está pretendendo dar um basta, embora muito tardiamente, à sensação de impunidade generalizada, sobretudo das pilhagens, corrupção e roubalheiras dos poderosos, leia-se, dos barões ladrões, que são os criminosos donos da “ordem social”, cujo serviçal proeminente é o - indevido - Estado de Direito, que normalmente é o veículo escravizado da ordem social e sua ideologia, salvo em momentos de ruptura, como estamos vendo agora na Lava Jato. 

Violando flagrantemente a CF (como disseram Celso de Melo e Marco Aurélio) assim como o Sistema Interamericano, o STF não resolveu o assunto definitivamente, visto que ele exige uma rápida Emenda Constitucional (relativamente simples) para solucioná-lo. De minha parte, já estou lutando nesse sentido e falando com todos os parlamentares a que tenho acesso. 

A presunção de inocência, prevista na CF-88 (“ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”), não é um direito (e uma garantia) absoluto. O legislador não está impedido de disciplinar o assunto. 

Note-se que todos os tratados e documentos internacionais (desde o art. 9º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789) dizem que a presunção de inocência se derruba “de acordo com a lei” (de acordo com a legislação de cada país). O estágio civilizado do Ocidente exige para isso o duplo grau de jurisdição. Nesse sentido é a Convenção Americana (art. 8º) assim como a jurisprudência interamericana. 

A discussão parlamentar deve ser retomada a partir da proposta de Peluso (2011), ex-presidente do STF. Mas eu diria que somente depois de dois graus de jurisdição condenatórios forma-se a coisa julgada. Os recursos especial e extraordinário para o STJ e o STF (respectivamente) são convertidos em ações rescisórias. Correto! E tudo isso sem prejuízo do habeas corpus, que é o instrumento adequado para impedir que uma decisão escatológica (de segundo grau) seja executada imediatamente, privando-se indevidamente a liberdade de uma pessoa. 

Elaborada a Emenda Constitucional necessária e explicitada a adoção do segundo sistema (duplo grau), o Brasil vai se alinhar com a quase totalidade dos sistemas jurídicos do mundo Ocidental e internacionais. E vai colocar em saia justa os barões ladrões cleptocratas que acionam mil recursos nos tribunais superiores (previstos na lei) para retardar a execução da pena (leia-se, a certeza do castigo, o império da lei). 

Recursos extraordinários em nenhuma parte do mundo impedem a execução imediata da sentença penal condenatória. Mas veja a mudança: a partir da regulamentação da matéria já não falaríamos em execução provisória, sim, em execução imediata da pena (que pressupõe sempre a análise dupla dos fatos, das provas e do direito). 

Isso significa trabalhar em função da certeza do castigo (do império da lei), para todos, o que traz resultados muito mais profícuos para a sociedade que a charlatã e demagógica política de editar novas leis penais mais duras (que só engana os tolos desavisados ávidos por vitimização). 

 

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