Por Mauro Guilherme Messias dos Santos -
O princípio do estado de inocência encontra-se difundido pelo mundo inteiro, com grande acolhida em diplomas internacionais. A título exemplificativo, tem-se: 1º) o artigo 11 da Declaração Universal dos Direitos Humanos ; 2º) o artigo 6º, 2, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem; 3º) o artigo 14, 2, do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos; 4º) o artigo 8, 2, da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH) ; 5º) o artigo 7º, 1, b, da Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos; 6º) o dispositivo V, a, da Declaração dos Direitos Humanos no Islã; e 7º) o artigo 48, 1, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. A Convenção Interamericana sobre o Cumprimento de Sentenças Penais no Exterior, conhecida por Convenção de Manágua, também aborda o princípio da não culpabilidade em seu artigo I, 3.
Em diplomas nacionais, o grau de positivação do princípio do estado de inocência é variado entre os países. Veja-se o quadro abaixo, formulado a partir dos dados fornecidos pela pesquisa de Barbagalo:
O grau de positivação do princípio da não culpabilidade nos diversos países
Sem positivação | Positivação genérica | Proteção até a comprovação da culpa | Julgamento definitivo |
Alemanha, Chile, Estados Unidos da América e Uruguai. | Espanha e Paraguai. | Canadá, México, Peru e Venezuela. | Itália, Portugal e Brasil. |
No ordenamento jurídico pátrio, até a entrada em vigor da Constituição de 1988 – CRFB, o princípio da não culpabilidade existia apenas de forma implícita. Nada obstante, é certo que, tamanha a sua envergadura, mesmo que ele não contasse com quaisquer positivações, seria, ainda, garantia fundamental: “o princípio da presunção de inocência não precisa estar positivado em lugar nenhum: é pressuposto”. Inclusive, essa é a interpretação do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha relativamente à Lei Fundamental alemã de 1949.
Todavia, a positivação do princípio de estado de inocência na CRFB trouxe uma vantagem inegável, compartilhada, entre outros, por Brasileiro de Lima, apesar de bastante esquecida no bojo dos recentes debates acerca do princípio em tela. A CADH prevê que os direitos nela estabelecidos não poderão ser interpretados no sentido de restringir ou limitar a aplicação de normas mais amplas que existam no Direito interno dos países signatários (artigo 29, b).
Como a lei maior é claríssima ao estabelecer, em seu artigo 5º, LVII, que somente o trânsito em julgado de uma sentença penal condenatória poderá afastar o estado de inocência de que todos gozam, seu caráter mais amplo e protetivo deve prevalecer sobre o teor da CADH, a qual protege a presunção de não culpabilidade somente “até a comprovação legal da culpa” (artigo 8, 2), que, a depender do ordenamento jurídico do Estado-Parte, pode ocorrer antes do esgotamento dos recursos cabíveis. Portanto, o artigo 29, b, da CADH, impede que o teor do seu artigo 8, 2, prevaleça sobre a redação do artigo 5º, LVII, da CRFB.
Em adição à vantagem acima, vale lembrar que, no Brasil, autores de escol defendem a aplicação da teoria do duplo estatuto, segundo a qual os tratados internacionais sobre direitos humanos, não ratificados em votação semelhante à das emendas constitucionais (artigo 5º § 3º, da CRFB), não possuem status igual ao dos dispositivos previstos na lei maior, embora estejam acima das leis ordinárias. Em outras palavras, com base nessa teoria, a presunção de não culpabilidade prevista na CRFB prevalece sobre as disposições da CADH, as quais possuem status inferior.
Há uma corrente de pensamento, contudo, que defende a força de norma constitucional aos tratados internacionais sobre direitos humanos ratificados no Brasil, pois o artigo 5º § 2º, da CRFB, teria desatado ou aberto o ordenamento constitucional para o influxo de direitos e garantias fundamentais previstos em tratados internacionais, de modo a contemplar tanto uma fonte interna dotada de força constitucional (CRFB) quanto uma fonte internacional (tratados internacionais sobre direitos humanos).
Nada obstante as considerações acima, a partir do julgamento do HC n.º 84.078/MG, o chamado argumento de direito comparado surge no STF com bastante força. Tal argumento defende que a maioria dos países democráticos possibilita o cumprimento da pena após a segunda instância, garantindo apenas o duplo grau de jurisdição, havendo casos, inclusive, em que a execução antecipada da pena ocorre a partir da sentença condenatória de primeira instância.
Em seu voto no HC n.º 84.078/MG, a ministra Ellen Gracie asseverou que, mesmo em países de reconhecido histórico democrático, a exemplo do Reino Unido, a regra é a de que o réu seja recolhido à prisão a partir da decisão condenatória de primeiro grau.
Ocorre que, como a própria ministra afirma em seu voto, ao citar as palavras do ministro Francisco Rezek no HC n.º 71.026/SP:
Há países onde se pode conviver, sem consequências desastrosas, com a tese segundo a qual a pessoa não deveria ser presa senão depois do trânsito em julgado da decisão condenatória. São países onde o trânsito em julgado ocorre com rapidez, porque não conhecem nada semelhante à nossa espantosa e extravagante prodigalidade recursiva.
Dito isso, uma importante observação merece ser posta. Utilizando a linha argumentativa da própria ministra Ellen Gracie, ao citar o ministro Francisco Rezek, nota-se que o problema não reside na “tese segundo a qual a pessoa não deveria ser presa senão depois do trânsito em julgado da decisão condenatória”, e sim, na “nossa espantosa e extravagante prodigalidade recursiva”, responsável por impedir que o trânsito em julgado ocorra com a desejada rapidez. Ao buscar as lições do ministro Francisco Rezek, os termos do voto da ministra Ellen Gracie assumiram uma grande quantidade de incoerência, pois, para o ministro, o problema é a “prodigalidade recursiva”, a lentidão, a morosidade processual, e não a exigência de trânsito em julgado.
Em que pese a referida incoerência, o argumento de direito comparado ainda é frequente, diante das diversas experiências estrangeiras democráticas acerca da positivação do estado de inocência. Em seu voto no recente HC n.º 152.752/PR, o ministro Luiz Fux pontuou que:
[...] na maioria dos países democráticos, o título condenatório constitui fundamento suficiente para o encarceramento, dotado de força legitimadora per se, sem submetê-lo a fundamentos cautelares característicos da prisão que antecede o julgamento de mérito.
Acontece que, como demonstrado alhures e pontuado por Badaró em artigo publicado na Conjur, os constituintes de 1988 seguiram os modelos italiano e português, que exigem solução definitiva para a formação da culpa penal, além do que, é consabido, a Constituição brasileira não deve ser submetida a ordenamentos jurídicos alienígenas. Como os demais, o Estado brasileiro é soberano, e, por isso, dotado de independência de origem externa.
A soberania de um Estado pode ser enxergada tanto sob o ponto de vista interno quanto externo. Husek divide a soberania em supremacia interna – em seu território, o Estado exerce poder de modo incondicionado – e independência de origem externa – impossibilidade de o Estado ter seu poder subjugado. Portanto, o Estado brasileiro não reconhece nenhum poder maior de que dependam a definição e o exercício, de forma plena e exclusiva, de suas competências, incluindo-se, por certo, o marco temporal exigido constitucionalmente para o reconhecimento da culpa penal em terrae brasilis.
É verdadeiro dizer que, com o advento da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, supera-se a dicotomia outrora existente entre direito interno e o direito internacional, de modo que o conceito de soberania passa a ser interpretado conjuntamente com o dever de cooperar. Afinal, segundo o artigo 27 da Convenção de Viena, “Uma parte não pode invocar as disposições de seu direito interno para justificar o inadimplemento de um tratado”. Todavia, como já salientado, a própria CADH prevê que os direitos nela estabelecidos não poderão ser interpretados no sentido de restringir ou limitar a aplicação de normas mais amplas que existam no Direito interno dos países signatários. Como a CRFB é clara ao dispor que apenas o trânsito em julgado de uma sentença penal condenatória poderá afastar o estado de inocência, seu caráter mais amplo e protetivo deve prevalecer sobre o teor da CADH.
Portanto, até onde se pode ver, o próprio direito internacional garante a prevalência da Constituição brasileira no tocante ao marco temporal do estado de inocência, o que evidencia a estranheza do chamado argumento de direito comparado, comumente empregado por alguns ministros do STF ao apreciarem a execução provisória do acórdão condenatório recorrível.