FIANÇA DEVE SER EMPREGADA PARA INDENIZAR VÍTIMAS E CONCRETIZAR DIREITOS

Fernando Procópio Palazzo -  

  1. Introdução 

Juris praecepta sunt haec: honeste vivere, alterum non laedere, suum cuique tribuere (tais são os preceitos do homem: viver honestamente, não ofender ninguém, dar a cada um o que lhe pertence). O célebre adágio latino, apregoado pelo eminente jurisconsulto romano Eneo Domitius Ulpianus, condensa virtudes reputadas como essenciais para uma pacífica convivência social. 

Os valores éticos apontados nessa máxima representam para o referido jurista um conjunto de preceitos que devem ser almejados por todos os integrantes do corpo social, destacando-se, na espécie, o dever de não ofender a ninguém e de restaurar o direito que venha a ser agredido.

Como decorrência dessa concepção, resultou a formatação do postulado do alterum non laedere, cujo conteúdo constitui um dos cernes estruturantes históricos da responsabilidade civil. Toda conduta que gere prejuízos a outrem implicará a inexorável necessidade de reparação daquele que dela tenha sido vítima. 

O ordenamento pátrio agasalha essa compreensão, consoante se extrai do disposto no artigo 186 do Código Civil. Esse comando normativo versa sobre a prática de atos ilícitos que ocasionem danos, sendo que essas mesmas condutas, mediante um processo de seleção realizada pelo legislador, também poderão ser censuradas na seara criminal. 

Vale dizer, existem ações conflitivas que propiciam gravames, os quais atrairão a tutela penal, porém, outras, reputadas de menor gravidade, concentram-se na resolução de forma não institucionalizada. Eugênio Raúl Zaffaroni e José Henrique Pierangeli prelecionam que “nem todas as ações imorais ou indesejáveis e conflitivas abrem a possibilidade de uma solução penal”. 

Vê-se, nessa perspectiva, que um mesmo ato ilícito apresentará uma ambivalência, na medida em que poderá implicar a obrigação de ressarcimento pelos danos causados ao ofendido, assim como também estar sujeito às sanções previstas pela legislação criminal.

Ocorre, porém, que, a despeito da irrefragável necessidade de reparação da vítima, quando se está diante de um dano relacionado a um episódio delitivo, essa obrigação acaba sendo injustificadamente relegada e despida de mecanismos mais eficientes para que ocorra a sua efetiva restauração.

Dentro desse contexto, evidencia-se a premente necessidade de aproveitar a persecução penal como um oportuno instrumento para o ressarcimento do dano, de modo que se faz imprescindível a sua capacitação com mecanismos adequados para um melhor desempenho e alcance desse desiderato.

  1. O processo penal moderno e o seu caráter multifacetário 

Em sua percepção tradicional, o processo penal forma o conjunto de regras a serem seguidas para que o Estado exerça o seu ius puniendi diante daquele que incorre na prática de determinada infração penal. É certo, no entanto, que essa visão estanque atualmente se encontra revisitada, sobretudo à luz dos ditames democráticos preconizados pela Carta de Outubro de 1988, na qual o processo penal é visto como instrumento de efetivação das garantias constitucionais em favor daquele que se encontra sujeito à persecução penal. 

Irrefutável, ressalte-se, a necessidade de o processo penal propiciar meios para que se assegure um devido processo legal ao indivíduo a ele submetido. A seu turno, não se pode olvidar a importante advertência ministrada por Aury Lopes Jr. no sentido de que “há que se compreender que o respeito às garantias fundamentais não se confunde com a impunidade, e jamais se defendeu isso. O processo penal é um caminho necessário para chegar-se, legitimamente, à pena”. 

Não obstante essas importantes ponderações que têm vigorosamente aprimorado o processo penal hodierno, urge-se, pois, destacar que o ato ilícito originado da prática do delito tem exigido uma nova percepção sobre outras repercussões que dele emanam e exorbitam o prisma sancionatório do cárcere.

Em que pese o processo penal ser tradicionalmente vocacionado à análise de questões atreladas à punição institucionalizada, essa concepção encontra-se defasada e anacrônica, motivo pelo qual se consubstancia imprescindível estimular o seu caráter multifacetário e instrumental, sobretudo visando alcançar uma tutela efetiva das vítimas das ações delituosas.

Impõe-se ter presente, nesse aspecto, que o processo penal em sua gênese concentrou sua normatização na articulação de procedimentos para regular a punição institucionalizada, abrindo, no entanto, sutilmente, caminhos para a reparação da vítima, a exemplo da ação civil ex delicto, prevista no artigo 63 do diploma processual.

No entanto, nada justifica, nos dias de hoje, esse isolamento da norma processual. O processo penal possui desdobramentos multifacetários que precisam ser aproveitados e não podem ser deliberadamente ignorados pelos órgãos responsáveis pela condução da persecução criminal. Cite-se, a esse propósito, ser um dos critérios elencados na Lei 9.099/95 a reparação do ofendido, nos moldes dispostos em seu artigo 62.

Nessa perspectiva, merece destaque a edição da Lei 11.719/08, que inseriu no artigo 387 do Código de Processo Penal o inciso IV, cujo conteúdo material prescreve a possibilidade de o juiz na sentença penal fixar “valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração, considerando os prejuízos sofridos pelo ofendido”.

Atente-se, pois, ter o legislador buscado, em uma visão instrumental, aproveitar a discussão encetada no processo penal para atender os interesses das vítimas. Sob esse prisma, observa-se que a sentença penal precisa superar a visão adstrita à punição do réu e ampliar o seu feixe de atuação. Uma conduta ilícita, catalogada como delito, será passível de reparação na órbita cível, sendo que, inclusive, a sentença penal condenatória constituirá título executivo judicial, nos termos do artigo 515, inciso VI, do Código de Processo Civil.

Com efeito, verifica-se que o novel artigo 387, inciso IV, do diploma processual, buscou avigorar esse ideário; contudo, a prática forense tem demonstrado um certo comodismo e uma baixa movimentação em prol da concretização desses objetivos.

Nesta ordem de ideias, deve-se pontuar que essa forma compartimentada de compreender o processo penal necessita de uma urgente atualização, sobretudo na ruptura paradigmática e introjeção nos seus operadores das novas possibilidades de concreção de direitos que se abrem na própria ação penal.

Não se sustente, por outro ângulo, que um magistrado, cujo ingresso na carreira exigiu imensurável esforço e conhecimento jurídico, ao assumir atribuições em uma Vara Criminal seja reputado como incapaz de aferir questões atinentes à responsabilidade civil do caso concreto.

Respeitado o devido processo legal, encontra-se o respectivo juízo em adequadas condições para aquilatar a ocorrência de danos patrimoniais e extrapatrimoniais e fixar a respectiva indenização. Resta indagar, portanto, o comodismo que impede uma melhor aplicação do artigo 387, inciso IV, do Código de Processo Penal, e a subsequente indenização da vítima.

Não se olvide a respeito da tão questionada ineficácia dos fins de prevenção e reprovação da pena. Ocorre, no entanto, que o dever de reparar a vítima é incontroverso, uma vez que se trata de um escopo consequencial, lídimo e razoável, sendo, inclusive, elencado como efeito da condenação, na forma do artigo 91, inciso I, do Código Penal.

Vale lembrar, a propósito, que a própria Carta Magna enuncia a necessidade de indenização das vítimas de delitos, conforme o seu artigo 245, verbis: “A lei disporá sobre as hipóteses e condições em que o Poder Público dará assistência aos herdeiros e dependentes carentes de pessoas vitimadas por crime doloso, sem prejuízo da responsabilidade civil do autor do ilícito”.

A respeito desse dispositivo, segue observação crítica do eminente Ives Gandra Martins:“O princípio do art. 245 é, indiscutivelmente, positivo. Sua prática, todavia, decepcionante, à medida que a lei ainda não foi editada nove anos após a promulgação da Constituição e nenhum mandado de injunção ou ação de inconstitucionalidade por omissão foram propostos para obrigar o Legislativo a produzi-la. Dessa forma, os herdeiros e dependentes das pessoas que forem vitimadas por crimes dolosos, por falta de segurança pública e por omissão do Estado, que não destina verbas necessárias a esse setor, continuam sem qualquer assistência.O princípio é salutar: a prática, indignificante, pela falta de visão dos nossos políticos”. 

  1. A fiança como instrumento de reparação da vítima 

Observando-se esse quadro legislativo, pode-se inferir não ser mais possível examinar o processo penal à luz de uma temática limitada e unifocal. Existem diversos interesses dispostos na persecução penal, de modo que a sua tutela deve ser integral, atendendo, assim, não só os interesses de resguarda de direitos do acusado, mas também da sociedade. 

Na lição de Douglas Fischer: 

“Quer-se dizer com isso que, em nossa compreensão (integral) dos postulados garantistas, o Estado deve levar em conta que, na aplicação dos direitos fundamentais (individuais e sociais), há a necessidade de garantir também ao cidadão a eficiência e segurança, evitando-se a impunidade. O dever de garantir a segurança não está em apenas evitar condutas criminosas que atinjam direitos fundamentais de terceiros, mas também (segundo pensamos) na devida apuração (com respeito aos direitos dos investigados ou processados) do ato ilícito, e, em sendo o caso, da punição do responsável”.

No particular da fiança, denota-se que as discussões empreendidas pela doutrina se concentram em examiná-la essencialmente sob a ótica do acusado, sendo que a contracautela em comento possui, desde a sua gênese, outras funções que acabaram injustificadamente relegadas. É preciso mudar essa mentalidade e otimizar a persecução penal a fim de conferir uma resposta eficiente a todos os interesses envolvidos. Veja-se que não se está propondo um recrudescimento da reprimenda corporal, mas, sim, apenas um aproveitamento de um mecanismo processual já existente, o qual, devidamente aplicado, conferiria uma tutela penal dinâmica para ambos os lados do litígio criminal.

Presente esse contexto, impende-se considerar a extrema pertinência da fiança como um instrumento adequado para a indenização do ofendido. Vale rememorar, a seu respeito, que a Lei 6.416/1977 permitiu a concessão da liberdade provisória sem fiança em nosso ordenamento, razão pela qual a aplicação da referida contracautela restou extremamente reduzida.

No entanto, com a reforma produzida pela Lei 12.403/2011, sua estrutura foi revitalizada, passando, então, a ser considerada como uma medida cautelar alternativa à prisão provisória, cujos fins se destinam a “assegurar o comparecimento a atos do processo, evitar a obstrução do seu andamento ou em caso de resistência injustificada à ordem judicial”.

Logo, erige-se importante resgatar a aplicabilidade desse instituto de acordo com a nova perspectiva empregada pelo legislador, de tal forma a conciliá-lo, inclusive, com o ideário reparador acima explanado.

Vale referir, nesse panorama, preceituar o artigo 336 do Código de Processo Penal que “o dinheiro ou objetos dados como fiança servirão ao pagamento das custas, da indenização do dano, da prestação pecuniária e da multa, se o réu for condenado”.

Soam pertinentes as lições de Eugenio Pacelli e Douglas Fischer quando afirmam que “atualmente, com a previsão da parcela mínima a ser fixada na sentença condenatória (art. 387, IV, CPP), para reparação dos danos, o dispositivo em comento ganha importância, já assegurando a recomposição patrimonial, ou, quando nada, parte dela”. 

Resta indagar, portanto, por qual motivo esse comando não tem sido aplicado. Por que o dinheiro recolhido não é devidamente direcionado aos ofendidos?

Lembre-se, por outro vértice, que a Lei 9.613/98, em seu artigo 7º, inciso I, inclusive prevê a perda da fiança como efeito da condenação. Sendo assim, por que tal providência não pode ser adotada para os demais crimes em favor das vítimas? Ubi eadem ratio, ibi ius idem esse debet (onde há a mesma razão, há o mesmo direito). Pondere-se que, ainda que o dano patrimonial seja reduzido a violação moral, pode ser avaliado, tal qual faria o juízo cível.

Ressalve-se, por oportuno, que a presente intelecção não se confunde com os preceitos envolvendo fianças que forem quebradas ou perdidas, cujos valores constituirão recursos do Fundo Penitenciário Nacional, nos moldes do artigo 2º, inciso VI, da Lei Complementar 79/94, mas sim versa sobre um fragmento do artigo 336 do Código de Processo Penal despido de regulamentação pertinente.

Isso significa, portanto, que o referido preceptivo carece de uma melhor compreensão e projeção na práxis judiciária. Os valores adimplidos a título de fiança precisam de um efetivo direcionamento para as vítimas, sob pena de perder-se uma preciosa oportunidade de restauração àqueles que tenham sido vítimas de delitos. Insista-se, trata-se de um valor já recolhido em juízo, cujo respectivo aproveitamento necessita apenas de uma adequada operacionalização.

A fiança, assim, deve ser apreciada como uma alternativa válida e, mais do que isso, ter o devido encaminhamento aos ofendidos.

  1. Regulamentação do valor da fiança para a indenização da vítima 

Em abono dessas premissas, vislumbra-se o relevante papel a ser exercido pela fiança, pois, além de ser empregada como uma alternativa à prisão preventiva, poderá ser empregada no intuito de indenizar as vítimas. 

O valor recolhido a título de fiança muitas vezes perde-se quando poderia ser direcionado à vítima que padeceu acentuado gravame. Guilherme de Souza Nucci, ao comentar o citado artigo 336, sustenta que “não se admite, sem ter havido o devido processo legal em relação à reparação civil do dano, pretenda-se reservar parte da fiança para uma potencial indenização futura”. 

Não obstante esse entendimento, deve-se questionar, à luz de toda carga axiológica que permeia a tutela penal integral e um processo instrumental, se seria razoável ignorar que determinada quantia financeira já disponibilizada na ação penal não pudesse ser enveredada às vítimas mediante regular procedimento articulado para tanto.

À toda evidência, dessume-se que o aludido artigo precisa de uma efetiva normatização e consequente operacionalização.

Nessa esteira, cumpre-se ressaltar que a criação desse procedimento não afasta o preconizado pelo artigo 387, inciso IV, do diploma processual, mas sim busca garantir e otimizar o destino do valor da fiança acaso não estipulada qualquer indenização prévia. Tratam-se, pois, de estágios processuais distintos.

Uma vez que a sentença penal condenatória constitui título executivo judicial, passível, então, de discussão apenas do an debeatur, após o exaurimento da fase cognitiva da ação penal propiciar-se-á um novo momento de liquidação e satisfação dos valores a que a vítima tem direito. Encerrar a discussão sem oportunizar o ofendido a explicitação dos danos sofridos parece prematuro e cômodo, desatendendo-se, assim, os escopos de uma tutela justa e específica.

De lege ferenda, sugere-se, então, a criação de procedimentos voltados a esse fim, mediante a introdução de parágrafos no referido artigo 336 do diploma processual:

Artigo 336. (...) 

1º. Transitado em julgado a sentença penal condenatória, o ofendido será comunicado nos termos do artigo 201, §2º sobre a decisão proferida e dos valores recolhidos a título de fiança; §2º. Devidamente comunicado, iniciar-se-á o prazo de 06 (seis) meses para que o ofendido liquide os danos padecidos, sem prejuízo do disposto nos artigos 63 e 387, inciso IV. §3º. Este procedimento tramitará em apenso à ação principal, sem prejuízo da execução da pena privativa de liberdade ou restritivas de direitos e incidentes que se seguirem. §4º. Nos crimes em que não houver vítimas individualizadas, não havendo fundo específico, o valor reverterá a fundos destinados à reparação das vítimas, a serem regulados por lei federal. 

Em atendimento ao já disposto no artigo 201, §2º, do codex processualis, deverá o ofendido ser comunicado para que no prazo decadencial de seis meses habilite-se no processo, liquide os danos padecidos, aproveitando, então, os valores recolhidos a título de fiança, sem prejuízo de posterior complementação pela via própria. Diante da inércia do ofendido, porém, deverá o valor adimplido ser devolvido ao acusado, conforme prescreve o artigo 347 do Código de Processo Penal. No entanto, respeitado o respectivo prazo prescricional, poderá o mesmo buscar ainda a indenização por intermédio da ação civil ex delicto. 

Outrossim, importante se registrar que esse procedimento em nada conflitará com a regular execução das penas, uma vez que tramitaria em apartado após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória.

Ademais, nos delitos considerados vagos, à luz dos ditames apregoados pela legislação dos direitos coletivos e do disposto no artigo 245 da Carta Magna, deverá o valor ser destinado para fundos criados para este fim.

Ressalve-se, por imprescindível, não desconhecer a necessidade de ponderação de outras nuances para a escorreita elaboração deste procedimento. No entanto, busca-se encetar caminhos para que este comando seja concretizado. O que não pode ocorrer é por uma desídia dos agentes responsáveis pela persecução penal este valor perder-se quando já existe uma disponibilidade financeira apta a reparar a vítima. É incompreensível não diligenciar na ação penal em favor deste objetivo.

  1. Considerações finais 

Posta a questão nestes termos, urge-se, pois, introjetar a compreensão de que a compensação da vítima também deve ser sopesada no processo de decisões que permeiam a persecução penal. 

O processo penal contemporâneo já se encontra provido de mecanismos voltados a este desiderato, sendo que o aprimoramento da destinação da fiança constitui uma medida importante para a obtenção de um melhor resultado. É uma questão de adaptação e normatização para que se propague uma perspectiva multifacetária e instrumental do processo penal em que serão atendidos interesses integrais na tutela penal.

Após a reforma de 1977 a fiança, inexplicavelmente, foi deixada de lado na persecução penal. Contudo, devidamente compreendida poderá exercer um papel proeminente no balizamento da substituição das prisões preventivas e a indenização da vítima.

A normatização do artigo 336 do Código de Processo Penal apresenta-se, destarte, como uma medida de extrema relevância, pois propiciará condições adequadas para um melhor aproveitamento da ação penal e concretização de direitos fundamentais mediante a efetivação do dever de reparação das vítimas de delitos.

 

Comments are closed.