Valéria Diez Scarance Fernandes -
Furor e euforia da mesma intensidade inundaram as redes sociais após o tema da redação do ENEM deste ano: “A persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira”.
O tema ressuscitou o debate sobre gênero nas escolas. E o fez com sabedoria e perspicácia. Falar em “persistência” significa reconhecer que a violência ainda é presente, séria, generalizada, embora se tente a todo o momento infantilizar, satirizar e minimizar a violência, como se fosse uma questão privada ou “briga de casal”.
Em seu artigo “O medo urbano e a violência de gênero”, Lia Zanotta Machado conclui que “a violência de gênero é a violência mais banalizada e invibilizada”, mas refletir pode “resgatar o grito ainda mudo daquelas e daqueles submetidos ao medo e à violência, e ao poder arbitrário daqueles ainda surdos em relação aos pedidos de enfrentamento às violências que deveria ser facilmente evitáveis” (in: A Cidade e o Medo. Brasilia:2014, p. 124/125).
Lançado recentemente, o Mapa da Violência 2015 demonstra numericamente a gravidade da questão em nosso país, em que há um verdadeiro “generocídio”:
- O Brasil passou de 7º para 5º no índice de feminicídios. São 4,8mortes por 100.000 habitantes.
- Aqui, mata-se 48 vezes mais do que no Reino Unido, 24 vezes mais do que na Irlanda e 16 vezes mais do que no Japão.
- Apenas quatro países têm índices maiores do que o Brasil: El Salvador (8.9), Colômbia (6.3), Guatemala (6.2) e Federação Russa (5.3), por 100.000 habitantes.
- Ocorreram 106.093 mortes de mulheres entre 1980 e 2013.
Inegável que refletir sobre “persistência” da violência não é uma abordagem feminista ou política, mas uma realidade numérica.
O tema do ENEM trouxe também implícita a necessária abordagem sobre as causas da violência.
Por que tantas mulheres morrem aqui?
O início da violência está no início da vida. Desde muito cedo, aprende-se que ser homem é ser valente e ser mulher é ser generosa (daí a hermenêutica do perdão nos casos de violência). Homens usam azul e mulheres usam rosa. Homens são conquistadores e mulheres castas. Homens são donos das mulheres. E assim os comportamentos estereotipados vão se transmitindo entre as gerações.
Não por outra razão, a Convenção CEDAW da ONU prevê, no art. 5º, “a”, o dever estatal de adotar medidas para “modificar os padrões socioculturais de conduta de homens e mulheres, com vistas a alcançar a eliminação de preconceitos e práticas consuetudinárias e de qualquer outra índole que estejam baseados na ideia de inferioridade ou superioridade de qualquer dos sexos ou funções estereotipadas de homens e mulheres” (grifo nosso)
Os padrões de superioridade do homem e inferioridade da mulher estão presentes em todos os setores da vida e da sociedade. Desde as brincadeiras, piadas, músicas, mídia. Ainda se associa o corpo da mulher ao prazer, à bebida alcóolica ou aos serviços domésticos.
Em âmbito regional, a Convenção de Belém do Pará também prevê que o direito de ser livre de violência compreende (art. 6º, “b”) “o direito da mulher a ser valorizada e educada livre de padrões estereotipados de comportamentos e costumes sociais e culturais baseados em conceitos de inferioridade e subordinação” (grifo nosso).
Em âmbito nacional, a Lei Maria da Penha – em que pese a resistência à inclusão do tema nos Planos de Educação – prevê em seu artigo 8º, IX, o “destaque” nos currículos de todos os níveis de ensino de conteúdo relativo a igualdade de gênero, raça, etnia e violência.
As vulnerabilidades somam-se em gênero e raça. Ser mulher é perigoso, mas ser mulher negra é ainda um risco maior na relação afetiva. O Mapa da Violência demonstra exatamente o aumento das mortes de mulheres negras em 54,2%, enquanto a morte de mulheres brancas caiu 9,8%, no período de 2003 e 2013.
Nos dizeres de Maria Sylvia Aparecida de Oliveira, do Instituto Geledés, a mulher negra “sofre opressão por ser mulher e sofre opressão por ser negra. Isso é histórico. Além disso, a mulher negra está na base da pirâmide social: tem os piores índices de educação, saúde, salário etc. Isso faz com que a sociedade dê pouca atenção à questão” (1,5 Milhão de Mulheres Negras são Vítimas de Violência Doméstica no Brasil. Disponível em: http://www.geledes.org.br/15-milhao-de-mulheres-negras-sao-vitimas-de-violencia-domestica-no-brasil/#gs.EJ6HyMM. Acesso em 20 nov.2015).
Educar modifica os padrões, mas ao mesmo tempo permite o empoderamento das mulheres de todas as raças e origens.
Não se pode mais negar a realidade do Brasil. Não se pode mais ensurdecer os ouvidos para os gritos de nossas mulheres. Não se pode enturvecer o olhar com o preconceito e machismo. É preciso evitar o evitável, desde a educação primária de todos até a capacitação de autoridades.
Este ano vivenciamos o trágico momento em que o Rio Doce se transformou em rio de lama. Mas uma barragem pode mudar o destino. No enfrentamento à violência contra a mulher essa barragem é a educação e a capacitação, capaz de conter as águas tóxicas do desrespeito e de livrar mulheres da lama do medo e da morte.