Gustavo Badaró -
O presente artigo analisa o tema das interceptações telefônicas, a partir de duas decisões proferidas no âmbito da chamada Operação Lava-Jato. A primeira, do juiz federal Sérgio Moro, determinando o levantamento do sigilo das conversas telefônicas interceptadas, tendo por alvo o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. A segunda, do Ministro Teori Zavascki, que deslocou a investigação para o Supremo Tribunal Federal.
A Lei 9.296/1996 prevê, no art. 8º, que as gravações das conversas telefônicas e suas transcrições devem ser mantidas sob sigilo. O juiz Sérgio Moro fez uma distinção entre conteúdos que interessavam à investigação, e por isso tiveram o sigilo afastado, e conversas privadas, cujo sigilo foi preservado. Não é isto que prevê a lei, que estabelece, sem distinções, um sigilo absoluto, não podendo ser levantado em caso algum.
Quanto ao interesse público à informação e sua colisão com o direito à intimidade e sua proteção, pelo sigilo dos autos do processo, o tema é objeto de intensa discussão. Como já visto, a Lei de Interceptações Telefônicas, sem qualquer exceção, fez prevalecer o direito à intimidade. Essa, contudo, não foi a posição adotada na chamada Reforma do Poder Judiciário, quanto aos atos processuais. A nova redação do inciso IX do art. 93 da Constituição, deu claramente primazia ao interesse público na informação: “todos os julgamentos serão públicos ..., podendo a lei limitar a presença em determinados atos, às próprias partes e seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação”. Esse último dispositivo, contudo, não trata dos autos do processo, isto é, a documentação e registro dos atos processuais e dos meios de obtenção de prova, mas dos atos processuais, especialmente as audiências.
Assim, à luz do direito posto, a única conclusão possível é que a decisão de levantamento do sigilo das comunicações telefônicas foi ilegal, violando frontalmente o artigo 8º da Lei 9.296/1996.
O segundo ponto a ser analisado diz respeito à decisão do Ministro Teori Zavascki, determinado que a investigação relativa ao ex-presidente Lula fosse remetida ao Supremo Tribunal Federal, em razão de haver, no conteúdo das conversas interceptadas, diálogos com pessoas com foro por prerrogativa de função, em especial, a Presidente Dilma Rousseff, sujeita à competência originária daquele tribunal, em caso de crime comum.
Ressalte-se que a Presidente da República, até então, não estava sendo investigada. O juiz federal de primeiro grau não decretou a interceptação telefônica de qualquer pessoa com foro por prerrogativa de função. Foi determinada a interceptação de linha telefônica utilizada pelo investigado Luiz Inácio Lula da Silva que, em algumas de suas conversas, licitamente gravadas, teve como interlocutores algumas figuras egrégias da República, para as quais se prevê foro por prerrogativa de função.
O fato de um investigado, que tem suas ligações telefônicas interceptadas por ordem judicial, conversar com uma pessoa detentora de foro por prerrogativa de função não transfere, automaticamente, a investigação para o tribunal competente. Imagine-se que, na conversa, apenas se formule um convite para a autoridade comparecer a uma festa de aniversário, ou tratem de amenidades cotidianas. Se o teor do que foi conversado não indicar a mais leve probabilidade de o funcionário público graduado, no caso, a Presidente da República, ou algum Membro do Congresso Nacional, ou ainda um Ministro de Estado, tenha cometido um crime, não há porque deslocar a investigação para o STF.
No caso concreto, contudo, o STF foi provocado a se manifestar sobre sua competência pela própria defesa de Luiz Inácio Lula da Silva, e o Ministro considerou ser do Tribunal a competência para a investigação, ao menos num primeiro momento.
Tal decisão tem dois importantes significados, um jurídico, outro político.
Se há probabilidade de que um cidadão comum tenha cometido um crime conexo (CP, art. 76) com outro delito praticado por quem goza de foro por prerrogativa de função, deverá haver um processo único (CP, art. 79). O mesmo se diga no caso de concurso de agentes entre o cidadão e o funcionário público graduado, ocorrendo relação de continência, por cumulação subjetiva (CPP, art. 77, I). Nesses casos, o “foro prevalecente”, isto é, daquele que terá sua competência ampliada, é o de maior hierarquia (CPP, art. 77, III), no caso, o STF, em detrimento do foro de primeiro grau, que perderá competência. O STF, contudo, visando não ampliar demasiadamente sua atuação, julgando quem a Constituição não lhe atribuiu competência para o fazer, tem desmembrado processos em que há conexão e continência, ficando no próprio tribunal somente a investigação de quem detém foro por prerrogativa de função. Quanto aos demais, sem foro por prerrogativa de função, determina-se o prosseguimento da persecução penal em primeiro grau.
Evidente que, no caso em que ocorre o desmembramento, tal decisão caberá ao próprio Supremo Tribunal Federal, por ser de maior hierarquia, e nunca aos juízes de primeiro grau. Caso contrário, a decisão do julgador de menor hierarquia estaria condicionado o julgamento do juiz de maior grau. Mais do que isso, o julgador menos graduado estaria impondo ao mais graduado a separação dos processos, quando no caso concreto o tribunal de maior hierarquia poderia, tendo um conhecimento completo dos fatos, optar por não desmembrar o feito, como ocorreu, por exemplo, na Ação Penal 470/MG.
Isso não impede, evidentemente, que decidindo o STF pelo desmembramento do feito, resolva ficar consigo somente com os investigados que gozam de foro por prerrogativa de função, devolvendo ao primeiro grau, a investigação dos demais. Nesse caso, haverá o retorno da investigação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva para a 13ª Vara Federal da Subseção Judiciária de Curitiba.
Essa, pois, a relevância jurídica da decisão.
E seu significado político? Ao ver do STF, ao menos em uma conversa do ex-presidente Lula, seja com a Presidente da República, seja com um membro do Congresso Nacional, seja, ainda, com algum Ministro de Estado, há indícios da prática de crime pelo detentor do foro por prerrogativa de função. Caso contrário, se as conversas fossem republicanas ou mesmo frívolas, mas sem conteúdo criminoso, não teria porque a competência ter se deslocado para o STF. Como um Hamlet, a Corte Suprema está dizendo: “tem algo de podre no reino de Brasília”!