Grampos no caso Lava Jato: legalidade

César Dario Mariano da Silva -  

Considerando as recentes interceptações telefônicas que atingiram conversas entabuladas entre o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e a Presidente da República Dilma Rousseff travaram-se intensos debates sobre a legalidade, ou não, das medidas adotadas pelo Juiz Sérgio Moro. 

Os fatos merecem reflexões não só à luz do direito positivo, mas também dos princípios constitucionais alusivos ao tema, notadamente o da proporcionalidade. 

Cumpre-nos antes de mais nada tecer considerações sobre os chamados encontros fortuitos. 

É possível que durante a interceptação surjam conversas que indiquem a ocorrência de outros crimes, até então ignorados, praticados por um dos interlocutores investigados ou por outra pessoa identificada somente após o início do procedimento. Se esses delitos forem daqueles que propiciem a interceptação telefônica (punidos com reclusão), nada impede que a prova produzida seja empregada validamente em Juízo. 

Do mesmo modo, se a interceptação levar ao esclarecimento de outro participante do(s) delito(s) investigado(s), a prova também deverá ser aceita, uma vez que obtida por meio lícito.  Dessa forma, v.g., se durante a investigação de roubo de carga surgir o nome de outro integrante da associação criminosa, obviamente a prova é apta a ser levada em consideração pelo Juiz para a condenação também deste último criminoso. 

Entretanto, a situação pode complicar quando durante o procedimento da interceptação telefônica surgir prova da participação no delito de alguém que detenha prerrogativa de foro em virtude de suas funções. Nesse caso, a partir do momento em que essa situação for verificada, os autos deverão ser imediatamente encaminhados para a autoridade judiciária competente, que poderá ratificar a medida. Caso não haja o encaminhamento e a interceptação continue a ser realizada, a prova, no que diz respeito à pessoa com prerrogativa de foro, será nula de forma absoluta, nos termos do artigo 564, I, primeira parte, do Código de Processo Penal, uma vez que produzida por Juiz absolutamente incompetente. No que concerne às demais pessoas envolvidas na interceptação e no delito, a prova reveste-se de plena valia, uma vez que obtida por meio lícito e determinada por juiz competente. 

Devemos ressaltar, porém, que não basta que haja interceptação de conversa com agente público que detenha prerrogativa de foro para que seja necessário o envio dos autos para a autoridade judiciária competente (deslocamento de competência ou de foro). Há necessidade de que existam indícios de que esse agente público tenha participado do crime em apuração. Mero diálogo sem indicar participação no crime não enseja o deslocamento do foro, uma vez que o alvo da interceptação certamente conversará com várias pessoas alheias ao delito. 

Surgindo indícios de que o agente público com prerrogativa de foro tenha participado de outro delito, que não o em apuração, deverá o Magistrado extrair cópia das conversas interceptadas e remetê-la juntamente com outras peças que entender pertinentes à autoridade judiciária competente para o processamento das investigações pelo delito estranho ao objeto do processo ou procedimento já em curso. Ao magistrado destinatário caberá avaliar a legalidade das provas encaminhadas. 

Com efeito, somente nos casos em que houver indícios de que o agente público com prerrogativa de foro flagrado na interceptação telefônica (encontro fortuito) tenha participado do delito em apuração é que os autos deverão ser encaminhados ao juízo competente (Tribunais de Segundo Grau ou Superiores). 

No caso da conversa interceptada entre a Presidente Dilma Rousseff e Lula não havia elementos a indicar a prática de crime, assim entendido como um fato típico e antijurídico previsto na legislação penal. Pode ter ocorrido crime de responsabilidade e ato de improbidade administrativa. O crime de responsabilidade não é na realidade crime, assim entendido como conduta descrita na legislação penal, mas uma infração político-administrativa que é julgada pelo Senado Federal, após admissão da acusação pela Câmara dos Deputados. Nesse caso, não havia como os autos serem enviados ao Parlamento e muito menos ao Supremo Tribunal Federal. Ao Parlamento não cabe apurar os demais delitos, mas somente o crime de responsabilidade, que, como já dito, é na realidade uma infração político-administrativa sem natureza penal. E parece não ter sido vislumbrado pelo Magistrado crime, na acepção penal do termo, cometido pela Presidente da República ou por outra pessoa com prerrogativa de foro. 

E não há prerrogativa de foro para ato de improbidade administrativa. 

Outra questão a ser colocada é sobre o levantamento do sigilo das conversações telefônicas interceptadas. 

A questão não é simples e é motivo de debates em todo o mundo, justamente pelo conflito entre o direito à intimidade e o direito público à informação. 

Tentaremos de maneira objetiva solucionar essa intrigante questão. 

Quando no processo ou procedimento investigatório houver documentos ou o processamento de medidas que importem necessidade da preservação da intimidade dos envolvidos ou do segredo das investigações deve ser imposto o sigilo; contudo, não é exigida a decretação do sigilo a todo processo ou procedimento, podendo ser limitado apenas àqueles documentos ou medida. 

A regra é a publicidade dos atos processuais, sendo o sigilo a exceção. No caso de interceptações telefônicas essa regra é invertida, pois a Lei nº 9.296/1996, no seu artigo 8º, determina que seja preservado o sigilo das diligências, gravações e transcrições respectivas. Aliás, a quebra indevida do sigilo de seu conteúdo é considerada crime pela mesma lei (art. 10). 

Ao final das investigações (fase investigativa) ou antes da prolação da sentença (fase judicial), os autos com a gravação das conversas deverão ser apensados ao procedimento ou processo, tornando acessível à defesa, a fim de ser possibilitado o contraditório. A partir desse momento não mais se vislumbra necessidade do sigilo para preservação da utilidade da prova, pois a medida já é de conhecimento dos investigados ou acusados. Remanesce a proteção que pode ser dada ao conteúdo das interceptações em face da preservação da intimidade das pessoas que tiveram a conversa gravada. Cuidando-se de agentes políticos, o direito à preservação da intimidade é mitigado, uma vez que ao escolherem essa função renunciaram à parcela de sua intimidade.  Há fatos que interessam ao público em geral quando tiverem repercussão social. Nesses casos, o direito à intimidade cede espaço ao direito público à informação, podendo as conversas interceptadas ser reveladas com fundamento no artigo 93, inciso IX, da Constituição Federal. No conflito entre o direito à intimidade (individual) e o direito público à informação (coletivo), prevalece este último, aplicando-se o princípio da proporcionalidade. 

No entanto, não havendo interesse público ao conhecimento das conversas interceptadas, o direito à intimidade prepondera sobre o direito à informação, devendo ser preservado o sigilo. Aliás, quando a gravação das conversas interceptadas não interessar às investigações ou ao processo deverá ser inutilizada, mediante ordem judicial, a pedido do Ministério Público ou da parte interessada, nos termos do artigo 9º da Lei nº 9.296/1996. 

Inegável, portanto, o interesse público na divulgação do conteúdo das interceptações telefônicas mantidas entre o ex-presidente Lula, a Presidente da República e Ministros de Estado, que demonstram total desrespeito às Instituições. 

E não pode ser esquecido que a ninguém é dado, por mais importante que seja o cargo que ocupe na administração pública, valer-se de direitos e garantias fundamentais para a salvaguarda de práticas ilícitas. 

Concluindo, não vislumbro ilegalidade nas interceptações e na divulgação das conversas entabuladas entre o ex-presidente Lula e integrantes da alta cúpula do Governo Federal.

 

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