Por Marcos Vinicius Manso Lopes Gomes, Maurilio Casas Maia e Rachel Gonçalves Silva -
Em março, em polêmica ainda atualíssima, houve a instauração, ex officio, de um inquérito criminal (4.781) no âmbito do Supremo Tribunal Federal, por iniciativa do presidente da própria corte. O referido inquérito teria o escopo de investigar notícias fraudulentas (fake news), ofensas e ameaças que atingem a honorabilidade e a segurança de membros do STF.
Trata-se de evidente violação do sistema acusatório. Isso porque a suprema corte, por conta e iniciativa própria, estaria investigando e julgando — medidas essas cujos germes remontariam ao tempo da Inquisição. Não bastasse isso e agravando a referida situação, o relator do inquérito teria sido escolhido sem sorteio, inexistindo qualquer indivíduo supostamente investigado com foro privilegiado, sendo certo que não houve qualquer provocação do órgão ministerial. Como se não bastasse, no âmbito do referido inquérito, foram tomadas medidas de constitucionalidade extremamente duvidosa, a exemplo da retirada de notícia de site jornalístico, medida considerada por alguns juristas como uma espécie de censura.
E nesse ponto deve ser ressaltado: a Constituição Federal idealizou uma rigorosa repartição de funções no sistema de Justiça — integrado pelo Poder Judiciário e demais funções essenciais à Justiça. No retrocitado sistema, mais especificamente na seara processual penal e pública, aos juízes cabe tarefa estritamente judicante, aos membros do Ministério Público, a atividade persecutória, e à Defensoria Pública, em regra, a missão da defesa de interesses dos cidadãos sob a mira do poder punitivo estatal. Trata-se da contemporânea separação de funções do Estado brasileiro no sistema de Justiça, a qual deve ser considerada uma garantia orgânica para a liberdade e direitos dos cidadãos. A referida repartição de funções, integrada ainda pelos advogados (artigo 133, CF) — indispensáveis à administração da Justiça —, compõe o lastro do denominado sistema acusatório, constitucionalmente adotado enquanto mecanismo de evitabilidade ou, ao menos, de redução da ocorrência de arbítrios atentatórios às liberdades dos cidadãos no sistema.
Repise-se que o sistema acusatório caracteriza-se pela distinção absoluta entre as funções de acusar, defender e julgar, sendo certo que, por conta dessa separação, a produção das provas cabe às partes, não cabendo ao juiz se substituir a elas, o que claramente ocorreu no caso em análise, considerando que já tinham sido expedidos sete mandados de busca e apreensão sem sequer ciência do Ministério Público. Ao instaurar inquérito para apuração de notícias sobre ofensas e ameaças que atingem a honorabilidade e a segurança do STF, o presidente da suprema corte desrespeitou por completo o sistema acusatório, rememorando os tempos em que esteve em vigor o sistema inquisitivo.
Note-se que pelo sistema inquisitivo o início da persecução, a produção de prova e a prolação da decisão concentram-se na figura do magistrado. O texto originário do Código de Processo Penal de 1941 seguiu essa linha de raciocínio por ter sido inspirado no Código Rocco da Itália, nascido em período fascista, marcadamente autoritário. O código centralizava no juiz a produção da prova com a possibilidade de produção sem provocação das partes, o que lhe dava poderes de iniciar inclusive ação penal através do procedimento denominado judicialiforme.
Desse modo, com o advento da Constituição de 1988, o CPP, embora inspirado em princípios inquisitivos, passou a ser — ou deveria ser — lido de acordo com os princípios emanados da Constituição Federal, além de ter adquirido contornos mais democráticos com reformas ulteriores. Assim, pode-se afirmar que atualmente o ordenamento jurídico adota o sistema acusatório, com a característica marcante da outorga da gestão das provas às partes.
Com efeito, diante de uma notória crise político-jurídica — a qual levanta temas polêmicos tais como o ativismo judiciário ou, noutro extremo, como a omissão judicial em temas socialmente sensíveis —, agiganta-se aos olhos do cidadão brasileiro uma suprema corte oficiosa na persecução penal. As câmeras e holofotes estão sobre o STF e seu exemplo pode impactar no incentivo ao manejo judicial oficioso de “inquisições judiciais”, por toda parte — seja por juízes de primeiro grau, cortes estaduais, regionais etc. Exatamente nesse cenário temerário, juridicamente caótico e inusitado provocado pelo “guarda da Constituição”, questiona-se: qual seria o papel da Defensoria Pública, o “Estado defensor”, para buscar conter a quebra do sistema acusatório constitucional?
A Defensoria Pública possui legitimidade para atuar na defesa dos direitos coletivos, na forma do artigo 134, da Constituição Federal, e artigo 4º, X, da Lei Complementar 80/94. A referida pauta de atuação foi consolidada por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.943, julgada pelo Supremo Tribunal Federal. Noutro passo, o Recurso Extraordinário com repercussão geral 733.433 é também oriundo do STF e ratifica a legitimidade defensorial em casos envolvendo tutela de direitos difusos. Em tal contexto da legitimidade constitucional do Estado defensor, as próximas linhas argumentativas serão desenvolvidas.
Ora, sendo o sistema acusatório um dos pilares do Estado brasileiro — sua opção constitucional e democrática —, é natural que violações ao multicitado sistema resvalem no interesse da Defensoria Pública, a qual possui especial missão com os cidadãos alvo do poder punitivo, face à vulnerabilidade detida frente ao Estado e seus braços punitivos — polícia, Ministério Público e até mesmo o Poder Judiciário. Assim sendo, nos termos do artigo 134 da tábula axiológica, a Defensoria Pública é expressão e instrumento do regime democrático, devendo defender e promover os direitos humanos. Seguindo essa linha de raciocínio, com fulcro no artigo 4º, X, da LC 80/94, cabe à instituição defensorial promover a mais ampla defesa dos direitos fundamentais dos necessitados, sendo admissíveis todas as espécies de ações capazes de propiciar sua adequada e efetiva tutela.
Na atualidade, o Estado defensor brasileiro vem despontando, por vezes, como último bastião do reforço da tutela da presunção de inocência e das liberdades do cidadão, uma garantia institucional mormente àqueles em situação de vulnerabilidade (LC 80/1994, artigo 4º, XI), em uma legítima missão e intervenção de custos vulnerabilis (guardiã do vulnerável).
Entrementes, face ao potencial de repetição da atividade inquisitivo-judicial oficiosa em nível nacional inspirada pelo STF e diante da incerteza dos cidadãos e cidadãs potencialmente atingidos por uma atividade persecutória deflagrada por órgão não legitimado constitucionalmente para tanto, deve-se, sim, levantar a legitimidade institucional do Estado defensor para um HC coletivo com caráter dúplice — repressivo, quanto ao procedimento já iniciado, e preventivo quanto aos eventuais procedimentos que possam ser abertos em território nacional com base no precedente decorrente do modus operandi do STF.
Assim, como instrumento e expressão do regime democrático, a Defensoria Pública seria plenamente legitimada a impetrar Habeas Corpus coletivo, em nome próprio, buscando trancar o referido inquérito, diante da falta de justa causa, ausência de provocação ministerial e evidente violação do sistema acusatório, afastando-se medidas incompatíveis com o atual estágio democrático nacional. Nesse cenário, tratar-se-ia de atuação coletivo-solidarista, emancipatória e com alcance dos vulneráveis lato sensu, atuação na qual a Defensoria Pública tutelaria legítimo interesse público defensivo.