Por Marcello Miller -
O juiz das garantias, instituído pela Lei 13.964/2019, sancionada nesta quarta-feira (25/12), representa enorme e evidente avanço civilizatório no processo penal brasileiro. Com efeito, a cisão da competência funcional para a etapa pré-processual e de admissibilidade da acusação e para a fase de instrução e julgamento vigora, já há bastante tempo, na vasta maioria dos países ocidentais. Com arranjos procedimentais e institucionais variados, tanto países mais desenvolvidos, como França, Itália e Alemanha, quanto países de menor desenvolvimento relativo, como Colômbia e Chile, adotam essa cisão. Mesmo no ordenamento jurídico dos EUA, filiado à common law, a instituição do grand jury tem competência funcional coincidente com a de uma instância judiciária pré-processual, não se confundindo com o júri competente para julgar as questões de fato encartadas no mérito da pretensão punitiva.
O modelo de juiz das garantias agora adotado no Brasil prestigia e adensa o sistema acusatório e se afasta de forma muito clara da figura do juiz de instrução, na medida em que traz a vedação à iniciativa do juiz na fase de investigação e à substituição da atuação probatória do órgão de acusação. O âmbito dessa nova competência funcional será o controle de legalidade da investigação criminal e o juízo de admissibilidade da acusação. No controle de legalidade da investigação criminal, o juiz das garantias funcionará como juiz da liberdade e da custódia pré-processual e como filtro de legalidade das iniciativas probatórias do Ministério Público e da autoridade policial que dependam de intervenção judicial. No juízo de admissibilidade da acusação, o juiz das garantias decidirá sobre o recebimento provisório e o definitivo da denúncia ou da queixa, presidindo o contraditório no juízo de absolvição sumária.
A natureza jurídica do juiz das garantias é a de uma norma de competência funcional por fase do processo. Não se trata, ressalte-se, de um acréscimo institucional: a implementação do juiz das garantias não exige a criação de cargos de juiz, mas a adoção de formatos e critérios inovadores de fixação de competência. Na França e na Alemanha, por exemplo, a competência para o juízo das garantias incumbe a órgãos de segundo grau (Tribunal de Grande Instance e Landsgericht); embora não seja passível de replicação no Brasil sem alteração constitucional, essa solução evidencia o equívoco de imaginar que a implementação do juiz das garantias exija a criação de órgão judicial próprio em cada comarca e subseção judiciária. Nesse sentido, não haveria impedimento constitucional ou legal para soluções como a criação de juízos regionais ou itinerantes de garantias, territorialmente competentes para grupos de comarcas ou subseções judiciárias, ou ainda o estabelecimento de mecanismos de tabelaridade entre juízos de comarcas ou subseções judiciárias vizinhas para o exercício dessa competência.
A função constitucional do juiz das garantias é muito clara: ele constitui, a um só tempo, mecanismo de reforço da imparcialidade dos julgamentos criminais do Poder Judiciário e de qualificação da presunção de inocência. É amplamente conhecido o fenômeno da contaminação psicológica e intelectual do juiz que exerce jurisdição na etapa pré-processual e no recebimento da denúncia — essa atividade torna muito menos provável o julgamento do mérito da pretensão punitiva sem viés negativo relativamente ao réu, o que, por sua vez, embota a capacidade do juiz de reconhecer a existência de dúvidas razoáveis determinantes da absolvição.
Quanto ao reforço da imparcialidade da jurisdição criminal, não se desmerece o esforço de todos os juízes para julgar com imparcialidade — é da deontologia de sua função e de sua própria vocação. Mas é intuitivo que a falta de contato prévio com a formação da prova e da justa causa propicia ao juiz que julgará o mérito condições de se desinvestir dos resultados processuais até então alcançados. Afinal de contas, a crítica é psicológica e intelectualmente mais fácil que a autocrítica.
A propósito da qualificação da presunção de inocência, um dos aspectos sobre esse princípio menos estudados no Brasil é o que dele extrai consequências jurídicas na forma de neutralização das percepções derivadas do recebimento da denúncia. Todos sabem que há um paradoxo na arquitetura essencial do processo penal: por um lado, a ação penal, diversamente do que ocorre no foro cível, só pode ser proposta com base em conjunto probatório que torne ao menos plausível a imputação; mas, por outro lado, o juiz que julgará o mérito não pode tomar essa plausibilidade como critério de análise de provas ou sequer como premissa intelectual. O juiz do mérito é obrigado pelo princípio da presunção de inocência a postar-se diante da ação penal como se postaria diante de uma ação civil no que diz respeito às posições e narrativas do autor e do réu; a tratar a controvérsia penal como um jogo que ainda não começou a ser jogado, afastando o dado da realidade do recebimento da denúncia.
É interessante lembrar, a esse respeito, que a Lei 2000-516, de 15 de junho de 2000, que instituiu, na França, a figura do juge des libertés et de la détention, análoga ao juiz das garantias, é conhecida como “lei sobre a presunção de inocência”.
Questão relevante é a relativa ao funcionamento do juiz das garantias nos tribunais. O vetor de desate dessa questão pode estar no artigo 13 da Lei 13.694/2019, que, ao possibilitar a criação de varas criminais colegiadas para processo de e julgamento de certos crimes, confere a elas competência para todos os atos jurisdicionais no decorrer da investigação, da ação penal e da execução da pena.
Há, aí, exceção legal à competência do juiz das garantias. O motivo dessa exceção é o escopo de proteção dos magistrados contra ameaças e retaliações por meio da coletivização da responsabilidade decisória. Mas o que possibilita, sem problemas de coerência, excepcionar o juiz das garantias nas varas criminais colegiadas é, justamente, a própria colegialidade, que constitui, ela própria, mecanismo de reforço da imparcialidade, uma vez que propicia o escrutínio recíproco dos membros do colegiado e torna menos provável o comprometimento psicológico e intelectual de todos eles ao mesmo tempo com teses que tenham prevalecido na fase pré-processual.
Observa-se que a Lei 13.394/2019 não prevê — embora tampouco proíba — a adoção do sistema de relatoria para as decisões das varas criminais colegiadas. Nos tribunais, em que Lei 8.038/90 prevê o sistema de relatoria para o processo e julgamento das ações penais originárias, tende a incumbir ao relator, como já ocorre, a competência do juiz das garantias. Não se afigura acertado, contudo, entender que o relator ficará impedido de funcionar no processo. Três fatores levam a essa conclusão: (1) a regra de impedimento estabelecida no novo artigo 3º-D do Código de Processo Penal fala em juiz, e não em magistrado, que é a denominação genérica dos exercentes da judicatura, sabendo-se que os magistrados da maior parte dos tribunais ostenta títulos outros que não o de juiz; (2) a Lei 13.394/2019 previu, em seu artigo 16, uma única modificação na Lei 8.038/90, para admitir o acordo de não-persecução penal nas ações penais originárias — não há por que entender que o legislador não teria previsto a aplicabilidade, no que coubesse, da figura do juiz das garantias no processo penal nos tribunais se tal fosse sua intenção; (3) a colegialidade constitui, ela própria, como visto, mecanismo autônomo de reforço da imparcialidade, tornando desnecessária a figura do juiz das garantias nos tribunais.
Não é raro — e é preocupante — ouvir de participantes do sistema de Justiça Criminal que a imparcialidade não existe ou é uma quimera. E é mesmo verdade que todo indivíduo, inclusive os juízes, é o resultado enviesado de suas próprias experiências e embute longa série de concepções prévias. Mas é igualmente verdade que a magistratura impõe ao indivíduo o esforço honesto, intenso e permanente de alcançar a imparcialidade possível, de lutar contra os próprios preconceitos e pôr a prova, em cada processo, modelos fechados de visão de mundo. O juiz das garantias poderá, com o passar do tempo, refinar e aperfeiçoar a cultura de imparcialidade que, mais que agendas de combate ou garantia, deve ser o primeiro item da pauta deontológica de todo juiz.