JUIZ DAS GARANTIAS: UM ANO E MEIO DE ESPERA

Por Raquel Nuvolini Wajngarten e Lucas Catib de Laurentiis -  

23 de janeiro de 2020. Nesse dia entrou em vigor a Lei nº 13.964/2019, apelidada de pacote "anticrime", que, entre outras modificações à legislação penal e processual penal, introduziu o juiz das garantias. Em síntese, essa figura tem a função de monitorar o devido respeito aos direitos e garantias fundamentais do suspeito ou indiciado, na primeira fase da persecução penal, sem prejuízo de também preservar o direito do Estado de investigar o fato e apurar a sua autoria, visando à devida aplicação da norma penal violada . E, no intuito de regulamentar essa atuação, foram inseridos no Código de Processo Penal (CPP) os artigos 3º-A a 3º-F, cujo intuito é regulamentar a atuação desse magistrado.

Já não era sem tempo. De forma geral, o artigo 3º-A simplesmente adequa o CPP à ordem constitucional de 1988, fazendo opção expressa pelo sistema processual acusatório (artigo 129, inciso I e VIII, da Constituição Federal) e corroborado pelos direitos ao devido processo legal, à ampla defesa e ao contraditório (artigo 5º, incisos LIV e LV). Reafirmou-se, pela lei, aquilo que já era óbvio na ótica constitucional e da proteção internacional de direitos humanos: deve existir uma separação rígida entre os momentos da acusação e do julgamento. Disso decorrem algumas consequências, duas delas de especial significado constitucional. Em primeiro lugar, o magistrado não deve exercer um papel ativo na fase de investigação e de acusação, preservando-lhe sua neutralidade para eventual julgamento das imputações. O objetivo dessa medida é evitar, ou atenuar, o risco de que se formem pré-compreensões em qualquer sentido. Em segundo lugar, o sistema acusatório busca promover a paridade de armas, fazendo com que que as partes se encontrem dissociadas e, ao menos idealmente, equidistantes do Estado-juiz. Mais uma vez, o óbvio: o magistrado deve ser inerte, cabendo à acusação e à defesa o ônus de desenvolverem seus argumentos à luz do material probatório disponível. E, com isso, é afastada a dinâmica inquisitorial em que a figura do juiz se confunde com a de um acusador, direcionando a sentença, quase sempre, no sentido de um juízo condenatório .

Com exceção das infrações de menor potencial ofensivo, a competência do juiz das garantias abrange todas as infrações penais e cessa com o recebimento da denúncia ou queixa, momento em que todas as questões pendentes passam a ser decididas pelo juiz da instrução e julgamento. As decisões proferidas pelo juiz das garantias não vinculam o juiz da instrução e seu julgamento, cuja imparcialidade será assegurada pela separação dos autos relativos à investigação e ao processo, ressalvados os documentos relativos às provas irrepetíveis, medidas de obtenção de provas ou de antecipação de provas, que deverão ser remetidos em apartado (artigo 3º-C). A figura do juiz das garantias mostra-se, portanto, um instituto-chave, pois com ele ocorre a separação das atribuições funcionais desse magistrado e daqueles que atuam na fase processual propriamente dita, garantindo uma prestação jurisdicional efetivamente neutra e comprometida com o equilíbrio das partes ao longo de toda a relação processual.

Estava tudo certo até que surgiu o Supremo Tribunal Federal. No dia 15 de janeiro de 2020, ou seja, mesmo antes de a Lei 13.694/2019 entrar em vigor, o então presidente do Supremo Tribunal Federal, o ministro Dias Toffoli, em decisão liminar proferida em plantão judicial no âmbito das Ações Diretas de Inconstitucionalidade nºs 6298, 6299 e 6230, suspendeu a eficácia dos dispositivos regulamentadores do juiz das garantias até que houvesse sua implementação nas comarcas pelos tribunais, o que deveria ocorrer no prazo de 180 dias contados da publicação da sua decisão. Uma semana depois, o relator do caso, ministro Luiz Fux revogou a decisão do presidente da corte e, em sede de medida cautelar, suspendeu a própria implementação do juiz das garantias, isto é, determinou que nada fosse feito para tornar efetiva a alteração legislativa até que se reúnam, nas suas palavras, "melhores subsídios que indiquem, acima de qualquer dúvida razoável, os reais impactos do juízo das garantias (…)".

Sob o ângulo processual, o que foi feito é basicamente um completo sem sentido: suspenção da decisão que suspendia a eficácia da lei que ainda estava suspensa. Pior, a segunda suspenção cautelar ocorreu em uma das ações diretas propostas contra a lei em questão (ADI 6.305) e foi determinada pelo vice-presidente do tribunal, sendo que a mesma matéria já havia sido analisada pela presidência do Supremo na decisão que englobou os pedidos cautelares de quatro outras ADIs. Os resultados, mais do que inusitados, sob o ponto de vista processual, são: a) a suspenção de decisões da presidência pelo vice-presidente; b) a substituição da decisão proferida em três ações diretas pela decisão proferida em uma ação paralela; c) a desnecessidade de se utilizar recurso apropriado para a cassação de medida liminar (basta propor nova ação com novo pedido liminar); d) a concessão de medida liminar, que pressupõe a urgência e a urgência pressupõe efeitos da lei, sem que a lei nem mesmo tivesse efeitos práticos. Com razão, por isso, no mês de março deste ano o ministro Gilmar Mendes afirmou que:

"A liminar precisa ser submetida ao plenário do Supremo, e até agora não foi. Devemos evitar dar liminar sem submeter a matéria ao plenário. Porque foi o Congresso que aprovou a lei. (...) Se nós formos decidir pela suspensão, isso tem que ser feito pelo Supremo Tribunal Federal. Só em hipóteses raríssimas, como o período do recesso, se justificaria, muito excepcionalmente, uma liminar que suspendesse uma lei (...). Liminares, com relação a leis, têm que passar pelo Supremo. Nesse caso do juiz das garantias, é um escândalo" .

As afirmações do ministro fazem referência à Lei nº 9.868/99, que em seu artigo 10 dispõe que, como regra, as decisões em medidas cautelares proferidas em ações diretas de inconstitucionalidade devem observar o quórum da maioria absoluta dos membros do Supremo Tribunal Federal, exceção feita somente aos períodos de recesso. O sentido dessa regra é reproduzido pelos artigos 21 e 170, §1º, do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal.

O tempo passou, veio a pandemia e todos passaram a ter outras preocupações. Mas o tratamento dispendido ao juiz das garantias merece atenção. Se do ponto de vista procedimental é essencial compreender o papel e a contribuição deste instituto para a criação de um modelo de persecução penal mais equânime e equilibrado, do ponto de vista constitucional a situação é dramática. Sob essa última ótica, o que se fez foi uma costura procedimental sem sentido, com o único propósito de superar a decisão legitima do poder competente para avaliar a pertinência da alteração da lei processual (Legislativo). Nesse ponto, são particularmente graves afirmações como "dados da vida real são essenciais para a análise da inconstitucionalidade formal dos dispositivos atacados" (ministro Luiz Fux), não só porque elas não o menor embasamento fático, mas também porque a "realidade" do sistema penal e prisional brasileiro é retratada diariamente em presídios superlotados, excesso de presos provisórios, prisões sumárias de pessoas carentes que pertencem a grupos estigmatizados, enfim, processos em que o juiz atua como parte interessada do começo ao fim.

Tudo isso mostra não só que o Supremo, no caso, o relator de uma das ações diretas, impôs a sua própria compreensão da realidade, desconsiderando tudo o que o Parlamento disse e fez a respeito do tema, mas também, ao não colocar a sua decisão em debate perante o Plenário da corte, exclui tudo e todos do debate. Não é só como o jogador que pega a bola e quer jogar sozinho, mas alguém que quer jogar um jogo criando as próprias regras e jogando contra si mesmo. É o exemplo mais típico e acabado de monólogo constitucional, por meio do qual o julgador se coloca acima da lei devidamente aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo presidente da República. Na prática, um ano e meio depois, é essa a decisão que vale: a arbitrária e individual. Mais grave é constatar que talvez o Supremo e seus ministros ainda não perceberam que situações bizarras como essas minam a sua própria autoridade e podem fazer com que, no futuro, uma autoridade tão desarrazoada e autoritária quanto a dele se volte contra ele. Afinal, quem um dia entra no jogo do autoritarismo e das decisões sem sentido deve ou estar preparado para enfrentar alguém que seja tão autoritário quanto ele ou estar conformado com a sua própria extinção.

 

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