JUÍZES E REDES SOCIAIS: UMA QUESTÃO ALÉM DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO

Por Alexandre Secco -  

Os vários textos que abordam o assunto, desde a antiguidade, concordam que, além de exercer a imparcialidade, a conduta dos juízes, inclusive em sua vida pessoal, não pode deixar espaço para dúvidas. Inevitável que sua presença nas redes sociais produza estranhezas e questionamentos. A mídia vem mostrando alguns casos que realmente parecem ter passado ao largo do crivo do bom senso. São exceções que pouco ajudam a entender o quadro. Há uma zona de sombra, entre o que pode e o que não pode ser feito por magistrados no mundo digital, que vai além das tensões naturais entre imparcialidade e liberdade de expressão. É aí que mora o perigo. Enfrentar esse assunto e definir se devem haver limites é do interesse de toda sociedade. 

O que o cidadão comum faz em seu nome pesa apenas sobre os seus próprios ombros. É diferente de quem representa os valores e a imagem de uma instituição. Se um juiz extrapola em um tuíte, acaba chamando a atenção para o Judiciário, com o qual sua imagem se confunde. No limite, estamos falando da necessidade de se preservar uma percepção de imparcialidade ampla a respeito do sistema de Justiça — fundamental para sustentar uma democracia. Essa é a pedra-de-toque dessa conversa. 

No campo prático-existencial, as perguntas são muitas. Juízes podem ser “amigos” das partes de um processo sob sua responsabilidade? O simples like na página de um político configura alguma infração? E retuitar uma notícia sobre candidato, pode? Magistrados precisam se identificar como tal em seus perfis pessoais? Estes precisam ser separados de seus perfis profissionais? Justifica-se, em alguma circunstância, o uso de pseudônimos por um juiz? E se um magistrado passar a ser seguido e a receber likes de notórios malfeitores? Eles devem eliminar de suas redes amigos e seguidores com os quais não concordam? A eliminação desses, em benefício daqueles, não revelaria inclinações? Juízes devem apagar de seus perfis sociais posts antigos, como o registro de uma bebedeira, em cena típica dos excessos da juventude? 

A tecnologia avança e deixa um rastro de dúvidas... 

Quem se aventura, seja em busca de likes, ou para se comunicar e expressar suas opiniões, assume tacitamente que suas palavras poderão ser usadas e repetidas fora de contexto. Precisa estar igualmente bem informado sobre a possibilidade concreta de vir a ter que enfrentar criaturas como trolls, hackers e detratores, tipos que deixaram de ser apenas desagradáveis e ganharam um grande poder para criar problemas reais e manchar reputações no mundo das verdades paralelas da internet. Precisa estar ciente que mesmo postagens apagadas podem facilmente ser recuperadas e compartilhadas. O que vai para internet fica gravado em pedra — seja verdade ou mentira — como na conhecida expressão verba volant, script moment. 

Aliás, o ambiente digital no Brasil é especialmente arriscado. Temos um dos maiores índices de crianças vítimas de cyberbullying, no mundo. Nada menos do que 30% revelaram ter sofrido algum tipo de constrangimento. Não precisamos ir tão longe, quem participou de grupos no WhatsApp durante as últimas eleições descobriu novas e profundas camadas sob o conceito de civilidade. 

E nem precisamos falar das famigeradas fake news, de questões relacionadas à privacidade e manipulação de dados pessoais. O escândalo da manipulação da eleição para o Brexit, em 2016, produziu provas de que as grandes empresas de tecnologia podem invadir a alma dos eleitores atrás de suas emoções a fim de conduzi-los. Não só de eleitores: consumidores, adolescentes, quem sabe de juízes? Afinal, se é possível interferir em como se vota, a lógica abre possibilidades assustadoras.  

Como se vê, existem, inúmeras razões para uma avaliação ampla e cautelosa porque a questão é complexa. 

Vários países já enfrentaram esses questionamentos e o Brasil também precisa de regras claras, em defesa dos interesses dos juízes, do Judiciário, mas sobretudo da sociedade, que só tem a ganhar conhecendo melhor e estando mais próxima dos representantes do judiciário. 

Aqui, uma das primeiras tentativas de regulamentar o assunto foi a edição do Provimento 71, do Conselho Nacional de Justiça, em junho de 2018, que definiu regras para magistrados em redes sociais, como a necessidade de agir com “reserva, cautela e discrição” em suas postagens. Apesar de não extrapolar entendimentos pacificados sobre a conduta pública de juízes, como o expresso na carta de Bangalore, por exemplo, a medida foi criticada e objeto de questionamento no STF. No começo de maio deste ano, o tema voltou ao debate em resposta à decisão do presidente do STF, Dias Toffoli, de criar um grupo para estabelecer regras sobre a presença de juízes em redes sociais. Mais uma vez, ouviram-se palavras como “mordaça” e “censura”.  Dias atrás, um decreto que instituiu uma política de segurança da informação no âmbito do Tribunal de Justiça da Bahia produziu uma reação tão forte que levou à suspensão quase imediata do dispositivo. 

Vale a pena insistir em um ponto: a conversa vai além da discussão sobre os limites da liberdade de expressão dos juízes. Nesse sentido, os termos do trabalho do grupo coordenado no CNJ pelo ministro do Tribunal Superior do Trabalho Aloysio Corrêa da Veiga estão suficientemente amplos e bem colocados: “avaliar parâmetros para uso adequado das redes sociais pelos magistrados”. É isso, precisamos de parâmetros. 

O que essas manifestações contrárias revelam, no fundo, é que o Brasil está muito atrasado na discussão desse tema. Nos Estados Unidos, onde na maioria das unidades federativas os juízes são conduzidos ao cargo por meio de eleições, o uso de redes sociais por magistrados vem sendo analisado em detalhes e regulado há mais de uma década. Reino Unido, Grécia, Austrália, Espanha e vários países já enfrentaram o assunto, assim como já fizeram o setor privado, as ONGs e vários ramos do Executivo.

Em novembro do ano passado, um grupo de juízes e membros de cortes superiores de diversos países se reuniu em Viena, para discutir o assunto sob o guarda-chuva do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC). O órgão tem entre suas atribuições implementar medidas destinadas a aumentar a transparência na administração pública e promover a integridade e a prestação de contas no sistema de justiça criminal. Chegou-se à conclusão de que não cabe discutir se os juízes podem ou não participar das redes sociais, a questão é como prepará-los para utilizar esses recursos. Um documento preliminar assinado pela rede global de integridade judicial listou 38 tópicos para orientar debates sobre o tema. Abrange questões como riscos e oportunidades, cuidados para identificação de juízes em redes sociais, conteúdos e comportamento, relacionamento de juízes e partes, privacidade, segurança e treinamento. 

Uma das mais importantes recomendações é treinamento. Dentro de limites adequados, as redes sociais podem criar boas oportunidades para aproximar a sociedade do judiciário, ampliar a compreensão a respeito do trabalho dos juízes e o respeito e admiração pelo Judiciário.

 

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