Rafael Francisco Marcondes de Moraes e Henrique Hoffmann Monteiro de Castro -
Na próxima terça-feira, 1º de novembro de 2016, entra em vigor a parcela de dispositivos da Lei 13.281/16 que se encontrava em vacatio legis. O artigo 7º da Lei dispôs que seus artigos 3º e 4º entrariam em vigor na data da publicação, estabelecendo vacância de 180 dias para os artigos 1º, 2º, 5º e 6º. A Lei 13.281/16 altera o Código de Trânsito Brasileiro (Lei 9.503/97) e traz importantes mudanças nas searas administrativa, penal e processual penal.
Já estavam em plena vigência algumas alterações administrativas:
a) nova infração administrativa de manifestação ilegal por meio de bloqueio de via pública (artigo 253-A do CTB), com correlata anistia das multas decorrentes das manifestações iniciadas dia 9/11/2015 até 5/5/2016 (artigo 4º da Lei 13.281/16);
b) possibilidade de reparar fora do depósito, por órgão público ou particular, o veículo apreendido (artigo 271, §3º do CTB);
c) autorização para não apenas órgão público, mas também particular (mediante licitação) realizar serviços de remoção, depósito e guarda de veículo (artigo 271, §4º do CTB), com pagamento pelo proprietário diretamente ao contratado ou mediante taxa instituída em lei (artigo 271, §§ 11 e 12 do CTB) e restituição de cobrança indevida pelo ente público (artigo 271, §13 do CTB);
d) faculdade de notificar o proprietário ausente de veículo removido por via postal, meio tecnológico ou edital (artigo 271, §6º do CTB);
e) limitação em 6 meses para pagamento de despesas de depósito (artigo 271, §10 do CTB);
f) possibilidade de integração dos órgãos do Sistema Nacional de Trânsito para ampliação e aprimoramento da fiscalização de trânsito, inclusive por meio do compartilhamento da receita arrecadada com a cobrança das multas de trânsito (artigo 320-A do CTB);
g) faculdade do proprietário ou condutor do veículo de optar por ser notificado por meio eletrônico (artigo 282-A do CTB).
Agora entram em vigor mais transformações administrativas, sendo as principais:
a) autorização para o órgão municipal fiscalizar o trânsito em locais públicos e inclusive em edificações privadas de uso coletivo, neste caso aplicando multas somente para infrações de uso de vagas reservadas em estacionamentos (artigo 24, VI do CTB);
b) alteração do limite de velocidade em rodovias (artigo 61, §1º, II do CTB);
c) estipulação de valores em reais aplicáveis às infrações administrativas de acordo com a gravidade (leve, média, grave ou gravíssima), substituindo a obsoleta UFIR (Unidade Fiscal de Referência), indexador instituído pela Lei 8.383/91 (artigo 1º) e empregado como parâmetro para débitos de valores ao Poder Público, oficialmente extinto pela Medida Provisória 1.973-67/00 (artigo 29, § 3º);
d) permissão para retenção dos veículos que saírem do território nacional sem o prévio pagamento ou o depósito dos valores correspondentes às infrações de trânsito cometidas e ao ressarcimento de danos que tiverem causado ao patrimônio público ou de particulares (artigo 119, §2º do CTB);
e) dispensa do porte do Certificado de Licenciamento Anual quando, no momento da fiscalização, for possível ter acesso ao sistema informatizado para verificar se o veículo está licenciado (artigo 133, parágrafo único do CTB);
f) criação de infração administrativa consistente na recusa do motorista (quando envolvido em acidente de trânsito ou for alvo de fiscalização) a ser submetido a teste, exame clínico, perícia ou outro procedimento que permita certificar influência de álcool ou outra substância psicoativa (artigo 165-A do CTB).
Quanto a este controverso artigo 165-A do CTB, até então a recusa à submissão aos procedimentos para aferir a influência de álcool ou outra substância psicoativa já implicava as penalidades da infração administrativa afeta à conduta de dirigir alcoolizado do artigo 165 do CTB, de acordo com a antiga redação do artigo 277, §3º do mesmo diploma, que também teve seu texto reformulado.
Apesar de a penalidade administrativa ter continuado semelhante, existe uma utilidade para a mudança. Antes da Lei 13.281/16 a punição era feita com base em uma presunção legal absoluta de que o condutor estava embriagado, decorrente da mera recusa em fazer o teste, presunção esta de duvidosa constitucionalidade. Agora o recém criado artigo 165-A e a nova redação do artigo 277, §3º do CTB sancionam o indivíduo por se recusar a cumprir uma obrigação legal, e não em virtude de mera presunção.
Todavia, essa artimanha não elimina a polêmica sobre a constitucionalidade do dispositivo. Isso porque o artigo 8.2, g, da Convenção Americana de Direitos Humanos assegura o direito da pessoa de “não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a declarar-se culpada”. De um lado, alguns defendem que esse dispositivo seria inconstitucional por punir administrativamente o motorista pelo exercício de um direito a não se autoincriminar. Lado diverso, outros sustentam que a regra é constitucional e que pode perfeitamente o Estado sancionar na esfera administrativa aquele que se omite face a uma legítima determinação fiscalizatória estatal (tal como ocorre também no âmbito tributário), dividindo-se essa corrente em duas subcorrentes, conforme a argumentação utilizada: a) o nemo tenetur se detegere se restringe à esfera criminal, o que se depreende da própria expressão utilizada pelo texto legal (pessoa acusada de delito tem direito), portanto o sujeito pode ser obrigado a produzir prova em seu desfavor no campo administrativo; b) tanto na seara administrativa quanto na criminal o indivíduo não é obrigado a produzir prova contra si mesmo, mas no âmbito administrativo, como não se aplica a regra probatória derivada do princípio da presunção de inocência, a recusa do agente em se submeter ao exame pode ser interpretada em seu prejuízo e acarretar a inversão do ônus da prova, resultando em sanção administrativa — posição que adotamos.
Obviamente, mesmo para os defensores da constitucionalidade da infração administrativa, a mera recusa do motorista em se submeter a teste, exame clínico ou perícia não pode caracterizar infração criminal. Para a configuração do crime de embriaguez ao volante (artigo 306 do CTB), reclama-se forma de verificação adicional que não dependa do comportamento do agente, tal como vídeo ou prova testemunhal (artigo 306, §2º do CTB).
No campo criminal, dentro desse conjunto de mudanças da Lei 13.281/16 que entram em vigor, há duas de maior relevância:
a) obrigatoriedade de a pena restritiva de direitos eventualmente imposta pelo juiz ser de prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas, que desempenhem atividades afetas ao resgate, atendimento e recuperação de vítimas de acidentes automobilísticos (artigo 312-A do CTB);
b) revogação da famigerada pseudoqualificadora do homicídio culposo (artigo 302, §2º do CTB, introduzida pela Lei 12.971/14), cujos desdobramentos serão explicados a seguir.
O mencionado arremedo de circunstância qualificadora veiculava em seu preceito secundário pena de reclusão ao invés da detenção cominada ao homicídio culposo simples do caput do artigo 302 do CTB, e mantinha, contudo, o mesmo patamar de pena (de 2 a 4 anos). O incremento da sanção penal da qualificadora era irrisório, pois:
Como se sabe, a teor do artigo 33 do CP, a diferença entre a detenção e reclusão limita-se à determinação do regime inicial do cumprimento de pena. Esse detalhe perde relevância ao considerarmos que o condenado não reincidente cuja pena seja igual ou inferior a 4 anos poderá desde o início cumpri-la em regime aberto (artigo 33, §2º, c do CP). Ademais, a previsão de pena de reclusão não impede que o juiz promova a substituição por penas restritivas de direitos, que pode ocorrer independentemente da quantidade da pena nos crimes culposos (artigo 44, I, do CP).
Como se não bastasse, a pseudoqualificadora tipificava conduta semelhante à qualificadora do racha (artigo 308, §2º do CTB — apenada com 5 a 10 anos de reclusão), criando situação teratológica de conflito aparente de leis penais dentro do mesmo documento legal. Agora a barbeiragem legislativa é desfeita, pois a morte culposa decorrente de racha doloso não tem mais como ser encaixada no revogado §2º do artigo 302 do CTB.
De outro lado, no que tange aos acidentes com vítimas fatais causados por motoristas embriagados, a retirada da qualificadora do § 2º do artigo 302 do CTB reacende o debate quanto à possibilidade de concurso entre os delitos de homicídio culposo de trânsito e embriaguez ao volante. Há quem defenda essa possibilidade, aberta quando a Lei 11.705/08 revogou a majorante de homicídio praticado por condutor embriagado (artigo 302, §1º, V do CTB), permitindo o concurso de crimes ante a inexistência de causa de aumento de pena específica. Lado outro, parcela considerável da doutrina e jurisprudência repele o concurso de crimes, em razão da absorção do crime de perigo pelo crime de dano, já que, pelo princípio da subsidiariedade, não se admite a punição de crime de perigo, existente para evitar a concretização do delito de dano, quando o dano já se efetivou.
Outra discussão que o legislador não solucionou é a polêmica acerca da aplicação irrefletida do dolo eventual para os crimes de trânsito cometidos por motoristas embriagados, com vítimas fatais ou feridas. Devem perdurar as discussões e as pressões por interpretações distorcidas envolvendo a configuração de dolo eventual em detrimento da culpa consciente, distanciando-se do tratamento legal mais adequado há muito aguardado.
Importa frisar que, para a caracterização do dolo eventual, exige-se que as circunstâncias do caso concreto denotem que houve representação e aceitação do resultado pelo agente e, sobretudo, que ele demonstrou indiferença às eventuais consequências de sua atitude, com total desapreço ao bem jurídico tutelado como sua própria vida e a de terceiros. A modalidade culposa constitui a regra, na espécie de culpa consciente, na qual o sujeito prevê a possibilidade do resultado danoso, porém supõe que poderá evitá-lo com sua habilidade.
Não disciplinada a questão de modo satisfatório, a cada acidente de trânsito que gere repercussão midiática, os setores sensacionalistas, atentos aos índices de audiência, contudo carentes de aptidão técnico-jurídica e descompromissados com a atuação estatal legalista, continuarão a teimar pela banalização do instituto do dolo eventual, com a pretensão de imputá-lo como se regra fosse.
Malgrado as sucessivas reformas realizadas no CTB, as controvérsias que em torno dele gravitam não findam. As falhas do Poder Legislativo saltam aos olhos: (a) não insere qualificadoras decentes para os delitos de dano de homicídio e lesão corporal de trânsito resultantes de embriaguez ou de racha, (b) olvida-se de ajustar a sanção da lesão corporal de trânsito conforme o grau da ofensa, e (c) insiste em incongruentes figuras qualificadas em crimes de perigo como no caso do racha do qual resulte morte ou ferimentos graves, ignorando a lógica jurídica e o princípio da subsidiariedade. Não é exagero concluir que o CTB é uma colcha de retalhos mal acabada.