Ruiz Ritter -
Há pouco mais de uma semana, tendo em vista a declaração do desembargador Paulo Espírito Santo, do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, de que perdoava os advogados por defenderem seus clientes, teci, aqui no ConJur, duras críticas a sua jurisdição, que manifestamente ilegítima, por conta de sua parcialidade.
Na ocasião, ainda que em apertada síntese, pontuei os principais aspectos a respeito dessa qualidade do poder jurisdicional, esclarecendo, cabe recordar, que falar em jurisdição, a título de definição, é falar de um direito fundamental de qualquer cidadão de ser julgado por um juiz natural (pré-determinado por lei e não escolhido) e imparcial, característica que reflete justamente a essência dessa jurisdição, sua verdadeira condição de validade.
Também fiz questão de acentuar, vale reiterar, que tal imparcialidade, em pleno século XXI, nada tem a ver com a superada ideia de neutralidade (ausência de pré-conceitos inerentes a subjetividade humana), tratando-se de uma construção jurídica, que visa preservar a cognição do julgador, para que não beneficie uma parte em detrimento da outra, involuntariamente ou não, impondo, para tanto, limites à sua atuação no processo, no sentido de conduzi-lo como terceiro desinteressado (alheio) em relação às partes, comprometendo-se, contudo, em apreciar na totalidade ambas as versões apresentadas sobre o fato e proporcionar sempre igualdade de tratamento e oportunidades aos envolvidos. É de pressuposto de legitimidade e limite que se trata, portanto.
Logo, voltando a crítica inicialmente mencionada, no momento em que o respectivo magistrado declarou sua preferência pela parte acusadora, a qual não necessitaria de perdão para atuar, esvaziou sua jurisdição, comprometendo sua a legitimidade.
Mas para fins de se examinar a jurisdição do ministro Gilmar Mendes, no âmbito dos habeas corpus 146.666/RJ e 146.813/RJ, impetrados em favor de Jacob Barata Filho e Lelis Marcos Teixeira, respectivamente (cujos pedidos liminares restaram deferidos para o fim de substituir as prisões preventivas que vigoravam por medidas cautelares diversas) — levando-se em consideração que Sua Excelência é padrinho de casamento da filha de Jacob, e sua esposa, Guiomar Feitosa de Albuquerque Lima, é sócia do escritório Sérgio Bermudes Advogados, que atua em nome da Federação das Empresas de Transportes de Passageiros do Estado do Rio de Janeiro, entidade da qual Lelis era presidente e que representa as empresas de ônibus dele e de Barata Filho — há mais a ser dito sobre imparcialidade.
Há que se trazer à discussão a classificação, em forma de definição, dada a essa imparcialidad pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos (desde 1982, a partir do caso Piersack vs. Bélgica), que permitiu analisá-la sob dois aspectos, sendo um subjetivo e outro objetivo, vinculado a teoria da aparência. Aí está o pano de fundo.
Em outras palavras, trata-se de situar a polêmica no âmbito da conceituação de imparcialidade proposta pelo TEDH, que a concebe como subjetiva e objetiva, sendo a primeira relativa ao íntimo da convicção do magistrado, para evitar que um processo seja conduzido por alguém cuja opinião sobre o fato em si ou sobre as partes já foi anteriormente manifestada; e a segunda relacionada à postura do julgador, que não deverá deixar qualquer espaço para dúvida de que conduz(irá) o processo sem preterir uma parte a outra. “Em ambos os casos, a parcialidade cria a desconfiança e a incerteza na comunidade e nas suas instituições. Não basta estar subjetivamente protegido; é importante que se encontre em uma situação jurídica objetivamente imparcial (é a visibilidade).”
Compreendendo-se isso e a relevância dessa construção no cenário jurídico internacional, que, inclusive, diga-se, já foi utilizada no Brasil, pelo próprio STF (a exemplo do habeas corpus 94.641/BA), desnecessário fazer maiores elucubrações acerca dos artigos 252 e 253, que tratam das hipóteses de impedimento, 112 que trata das incompatibilidades, e 254, que trata das hipóteses de suspeição, todos do Código de Processo Penal, que apesar de úteis para os casos específicos neles previstos, evidentemente não dão conta de todas as situações em que poderá haver dúvida sobre a parcialidade ou não do julgador no processo. Basta que se compreenda que todo o esforço deve ser no sentido de afastar qualquer dúvida sobre a imparcialidade do representante do Poder Judiciário (estética da aparência), sob pena de criar desconfiança da sociedade na correta administração da justiça, colocando em risco o próprio Estado de Direito.
E com isso, veja-se, nem se está dizendo que não deva haver uma reformulação legislativa para que a legislação infraconstitucional seja mais precisa nesse sentido e nem que a decisão em si do ministro Gilmar Mendes é inadequada, no que diz respeito ao seu fundamento. A única questão que se está a ponderar é que um juiz que julga o processo de alguém, tendo sido padrinho de casamento da filha deste alguém, não passa pelo filtro dado pela teoria da aparência, por não afastar todas as dúvidas sobre sua imparcialidade, tendo-se, portanto, violada a imparcialidade dessa jurisdição. Ponto e nada mais.
De qualquer sorte, para além de tudo isso, a pergunta é: por que tanta celeuma? Não sairíamos todos ganhando se sempre que possível for se evitassem problemas dessa natureza, impedindo que participassem da distribuição dos processos os magistrados que tivessem alguma vinculação aos mesmos? Pois é. É hora de se repensar essas e outras várias situações questionáveis (a exemplo da nomeação dos ministros pelo Presidente da República), antes que a credibilidade do Poder Judiciário desapareça.