Por Chiavelli Falavigno e Vinicius de Vasconcellos -
O debate sobre os rumos da política criminal brasileira comporta aspectos formais e materiais. Para além das críticas ainda incipientes que a doutrina vem fazendo à própria confecção das normas, cabe ainda o questionamento das decisões legislativas, tanto em âmbito de Direito Penal material como processual. No que tange especificamente à legislação processual, a expansão dos espaços de consenso para imposição de sanção penal com conformidade do acusado vem sendo analisada pela doutrina há algum tempo. Isso inclui desde aspectos probatórios, com o uso cada vez mais frequente da colaboração premiada e de acordos de leniência, até questões diretamente ligadas à economia processual, com propostas que dão uma maior abrangência a modelos negociais que suprimem a necessidade da instrução probatória e do processo penal, como uma “transação penal” alargada. Dispositivos que possibilitam a imposição de sanções penais a partir do consenso do imputado, obtido por meio do oferecimento de benefícios, como a redução da pena ou até o perdão judicial, aparecem em diversos atos normativos e projetos legislativos atuais.
Recentemente, houve amplo debate acadêmico em relação à edição da Resolução 181 do Conselho Nacional do Ministério Público, que visa regular o procedimento investigatório que se dá no âmbito daquela instituição. O artigo 18 cria o chamado “acordo de não persecução” no caso de crimes cometidos sem violência e grave ameaça, cuja pena mínima não extrapole quatro anos, possibilitando a aplicação imediata de sanção restritiva de direitos, desde que haja o cumprimento de uma série de requisitos adicionais. A redação original da resolução, de agosto de 2017, foi amplamente criticada pela doutrina, por ausência de controle judicial e falta de critérios para sua aplicabilidade, o que resultou em rápida alteração do texto, em janeiro de 2018, pela Resolução 183 do CNMP. Contudo, ainda permanecem questionamentos sobre a sua constitucionalidade, por violação à reserva legal de matéria processual, além das críticas gerais que podem ser apontadas a tais mecanismos negociais, que serão abordadas ao final deste artigo.
Ademais, diversas previsões sobre o tema podem ser observadas em projetos normativos atualmente em discussão no Congresso Nacional. Anteprojeto liderado pelo ministro do STF, Alexandre de Moraes, visa “aperfeiçoar o combate à criminalidade organizada, aos delitos de tráfico de entorpecentes, tráfico de armas e milícia privada, aos crimes cometidos com violência ou grave ameaça e crimes hediondos, bem como agilizar e modernizar a investigação criminal e a persecução penal”. A partir de redação semelhante à da Resolução 181 do CNMP, o artigo 28-A do referido texto altera o Código de Processo Penal e estabelece a possibilidade de não persecução no caso de crimes praticados sem violência e grave ameaça, com pena mínima inferior a quatro anos, tendo como requisito a confissão formal e circunstanciada da prática da infração pelo investigado. O projeto ainda apresenta a mesma alteração na Lei 8.038 de 1990, que disciplina os processos de competência originária dos tribunais superiores. A isso se soma uma inovação no Código Penal, que prevê a suspensão do prazo prescricional do delito até o cumprimento ou rescisão do acordo.
Há o Projeto de Lei 8.045/2010, que visa a confecção de um novo Código de Processo Penal. Originalmente, o artigo 283 estabelecia a possibilidade, em procedimento sumário, de aplicação direta de pena privativa de liberdade em crimes com pena máxima não superior a oito anos, desde que houvesse a confissão total ou parcial dos fatos, expressa concordância das partes e estipulação da pena no mínimo cominado no tipo. Contudo, na redação do último substitutivo apresentado na Câmara dos Deputados em 17 de abril, o artigo 297 prevê o “julgamento antecipado do mérito e a aplicação imediata da pena” aos crimes cuja sanção máxima cominada não ultrapasse oito anos, podendo as partes estabelecer a pena a ser aplicada, de modo distinto à redação original, que previa a fixação da pena sempre no mínimo cominado.
Por um lado, a expansão dos espaços de consenso por mecanismos negociais deve ser abstratamente criticada ao desvirtuar a essência do processo penal como instrumento de limitação do poder punitivo, ao esvaziar a presunção de inocência, que em seu viés como regra probatória impõe o ônus da prova, além da dúvida razoável, ao acusador. Assim, em lugar de evitar, o processo penal potencializa o risco de condenação de inocentes. Além disso, a Justiça criminal negocial ocasiona a distorção dos papéis dos atores da Justiça criminal, corrompendo, inclusive, a própria relação entre imputado e defensor técnico. Assim, inevitavelmente, são abertas brechas para abusos e arbitrariedades em meio ao cenário já intrusivo e seletivo da persecução penal.
Por outro lado, em concreto, deve-se repudiar especialmente as proposições que possibilitam a imposição de sanções privativas de liberdade por meio de acordos com conformidade do imputado, a partir de sua confissão. Sem dúvidas, a abusividade inerente ao sistema negocial é levada ao seu extremo com a simbiose entre barganha e prisão, em um cenário de expansão do Direito Penal e hiperencarceramento. Com relação ao texto do substitutivo apresentado ao PL 8.045/10, mostra-se intensamente questionável o dispositivo previsto no artigo 304, que afirma: “O julgamento antecipado não constitui direito público subjetivo do réu”. Trata-se de disposição contrária à orientação consolidada pela doutrina e pelos tribunais superiores brasileiros quanto à realização da transação penal, mecanismo semelhante ao proposto no referido projeto.
Sem dúvidas, o cenário de expansão dos espaços de consenso no processo penal é uma tendência mundial. Contudo, são claros e inegáveis os riscos de uma generalização indevida dos institutos negociais, o que findaria pela completa desvirtuação das bases da dogmática processual penal, intensificando o cenário de caos que permeia o sistema penal brasileiro.